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sábado, 13 de setembro de 2025

Um olhar sobre João 3,13-17 - Festa da Exaltação da Santa Cruz

A festa da Exaltação da Santa Cruz, celebrada em 14 de setembro, é um mergulho no mistério paradoxal da fé cristã: aquilo que aos olhos do mundo parecia derrota, humilhação e fim, torna-se sinal de vitória, amor e vida plena, tem a seguinte liturgia: a   1ª leitura Números 21,4b-9;Salmo 77(78),1-2.34-35.36-37.38 (R. cf. 7c); a 2⁰ leitura Filipenses  2,6-11 e Evangelho  de  João 3,13-17 que iremos aprofundar

A primeira leitura (Nm 21,4b-9) recorda a serpente de bronze erguida por Moisés no deserto, pela qual o povo, ao olhar, era curado do veneno da serpente. É um anúncio simbólico: quem contempla com fé o Crucificado encontra salvação e cura para as feridas mais profundas da existência.O hino de Filipenses (2,6-11) mostra a dinâmica da cruz: Cristo, sendo Deus, não se apegou a sua condição divina, mas esvaziou-se, assumindo nossa humanidade até a morte de cruz. Essa humilhação, porém, não é fracasso, mas caminho para a exaltação, pois é no amor radical e na entrega total que Deus manifesta sua glória.

A liturgia deste dia, portanto, não celebra o sofrimento em si, mas a transformação da cruz em fonte de esperança. Olhar para a Cruz é olhar para o amor extremo de Deus, que se faz frágil por nós e nos abre um horizonte de vida e ressurreição.



A Festa da Exaltação da Santa Cruz, tem uma origem que remonta ao século IV, ligada à dedicação da Basílica do Santo Sepulcro, em Jerusalém, construída por ordem do imperador Constantino, após a descoberta da cruz por sua mãe, Helena. Não se trata de um culto à cruz como objeto material, mas da memória viva e celebrativa do mistério pascal: a cruz é exaltada porque nela Cristo não apenas sofreu, mas venceu o pecado e a morte, transformando o que era sinal de humilhação em fonte de vida nova. A liturgia deste dia proclama o Evangelho de João 3,13-17, passagem que coloca em palavras a síntese do amor de Deus: “Deus amou tanto o mundo que deu o seu Filho unigênito, para que todo o que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna” (Jo 3,16). Aqui, a cruz é interpretada não como derrota, mas como o ápice da revelação do amor, o momento em que Deus assume o abismo da dor humana e o transforma em caminho de salvação.

A liturgia usa este texto também no 4º Domingo da Quaresma, chamado Laetare, justamente como alento no meio do caminho penitencial, recordando que o centro da fé cristã não é a dor, mas a esperança que brota da entrega de Cristo. João apresenta a cena do diálogo com Nicodemos, um mestre da Lei que procura Jesus de noite, movido pelo desejo sincero de compreender, mas ao mesmo tempo cheio de receios. A noite em João é mais que uma referência temporal: é símbolo de incerteza, de ambiguidade, de busca entre sombras (Jo 3,2). Ali, Jesus evoca a serpente erguida por Moisés no deserto (Nm 21,4-9), quando o povo, mordido pelas serpentes, recebia a vida ao olhar para o sinal levantado. O paralelo é direto: “assim como Moisés levantou a serpente no deserto, assim também o Filho do Homem deve ser levantado, para que todo o que nele crê tenha vida eterna” (Jo 3,14-15).

A cruz, portanto, é a nova serpente: sinal paradoxal, escândalo para uns, loucura para outros (1Cor 1,18), mas força de Deus para os que creem. Na carta aos Gálatas, Paulo insiste: “Quanto a mim, longe esteja gloriar-me, a não ser na cruz de nosso Senhor Jesus Cristo” (Gl 6,14). E aos Filipenses ele escreve: “Humilhou-se a si mesmo, tornando-se obediente até a morte, e morte de cruz. Por isso Deus o exaltou sobremaneira” (Fl 2,8-9). A exaltação da cruz já está inscrita no próprio movimento pascal: humilhação e glória se entrelaçam no mesmo mistério.

Nos sinóticos, a cena da crucifixão é relatada com intensidade. Marcos e Mateus sublinham o clamor de Jesus: “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?” (Mc 15,34; Mt 27,46), ecoando o Salmo 22, que começa em tom de lamento, mas termina em confiança. Lucas nos dá outra chave, mostrando o crucificado que perdoa: “Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem” (Lc 23,34) e que se entrega confiante: “Pai, em tuas mãos entrego o meu espírito” (Lc 23,46). João, por sua vez, mostra Jesus como quem reina do alto da cruz, entregando sua mãe ao discípulo amado (Jo 19,26-27) e consumando a missão: “Tudo está consumado” (Jo 19,30). A cruz é o centro da revelação: nela se encontra a justiça do Servo sofredor de Isaías 53, que levou sobre si as nossas dores e foi traspassado por causa de nossas iniquidades.

Na antropologia, toda cultura humana lida com símbolos de dor e superação. A cruz, no Império Romano, era o símbolo máximo da humilhação pública, reservado aos escravos e subversivos. Que um crucificado seja proclamado Filho de Deus é uma inversão radical da lógica social. Por isso Paulo escreve aos Coríntios: “Pregamos Cristo crucificado, escândalo para os judeus e loucura para os pagãos, mas para os que são chamados, força e sabedoria de Deus” (1Cor 1,23-24). A sociologia da religião mostra que símbolos assim podem ser instrumentalizados: quantas vezes a cruz foi usada para legitimar conquistas coloniais, cruzadas, discursos nacionalistas e até práticas de exclusão? Mas o Cristo da cruz é aquele que se identifica com os pobres e pequenos (Mt 25,31-46), que se fez servo (Mc 10,45), que não tinha onde reclinar a cabeça (Lc 9,58).

Na filosofia, Hegel dizia que a cruz revela a reconciliação dos contrários: a morte gera vida, a finitude abre para o infinito. Nietzsche, por sua vez, via na cruz um símbolo de negação da vida. Mas a teologia cristã responde que, longe de negar a vida, a cruz é a afirmação plena de que nenhuma dor é inútil quando se torna oferta de amor. O próprio Jesus declarou: “Se o grão de trigo não cair na terra e não morrer, ficará só; mas se morrer, produzirá muito fruto” (Jo 12,24). Para os Padres da Igreja, a cruz é árvore da vida. Santo Irineu já dizia: “A glória de Deus é o homem vivo, e a vida do homem é a visão de Deus”. São João Crisóstomo pregava: “A cruz é mais luminosa que o sol”. Santo Agostinho comentava: “A paixão de Cristo é suficiente para ser modelo de toda a vida” (In Ioannem, tr. 84).

O texto joanino nos convoca a romper com a visão mercantilizada da fé. A teologia da prosperidade reduz a cruz a um amuleto contra sofrimento, quando na verdade ela denuncia sistemas que geram dor. A teologia do domínio transforma a cruz em bandeira política, quando deveria ser memória da entrega gratuita. O individualismo a reduz a símbolo decorativo no peito, sem compromisso comunitário. A fé-mercadoria vende crucifixos caros, mas silencia diante dos crucificados de hoje: pobres, negros, indígenas, mulheres violentadas, jovens sem futuro, trabalhadores descartados. Mas a Escritura é clara: “Se alguém disser: ‘Eu amo a Deus’, mas odeia o seu irmão, é mentiroso” (1Jo 4,20). O clericalismo também trai a cruz: quando o clero se coloca acima do povo, esquece que o Cristo da cruz lavou os pés dos discípulos (Jo 13,14-15) e se fez servo.

O Papa Francisco denuncia isso na  Evangelii Gaudium, ao afirmar que a Igreja deve ser “casa paterna onde há lugar para todos” (EG 47), e em Fratelli Tutti, quando chama à fraternidade que rompe exclusões: “Ou nos salvamos todos, ou ninguém se salva” (FT 137). O Concílio Vaticano II, em Gaudium et Spes (63–66), recorda que o ser humano só se realiza no dom de si.

A psicologia nos mostra que a cruz toca também nossa dimensão interior. Carregar a cruz, no sentido evangélico, não é buscar sofrimento, mas aprender a lidar com nossas sombras, limites e perdas. É o convite à resiliência, à capacidade de transformar a dor em sentido, o luto em memória fecunda, a perda em solidariedade. O próprio Jesus, ao falar da cruz, convida a seguir com liberdade e entrega: “Quem quiser vir após mim, renuncie a si mesmo, tome a sua cruz cada dia e siga-me” (Lc 9,23).

A ciência histórica recorda que a festa surgiu não como devoção intimista, mas como celebração pública da vitória do cristianismo sobre a perseguição. Mas, em tempos de cristandade, o risco foi usar a cruz como símbolo de poder político. Hoje, em tempos de neoliberalismo, a cruz pode ser reduzida a símbolo de mercado religioso. Daí a necessidade de recuperar seu sentido original: não objeto de ostentação, mas sinal do amor de Deus que se esvazia e se dá.

A antropologia nos lembra que povos indígenas e africanos, ao se encontrarem com a cruz, reinterpretaram-na em chave de resistência: a cruz erguida em quilombos e aldeias não era símbolo de colonizador, mas sinal de esperança e força espiritual. A cruz, assim, pode ser ressignificada como símbolo de libertação, como eco da palavra de Jesus: “Vinde a mim, todos os que estais cansados e sobrecarregados, e eu vos aliviarei” (Mt 11,28).

Por tudo isso, a Festa da Exaltação da Santa Cruz é chamada a ser um ato de memória e profecia. Memória, porque nos recorda a raiz da fé, o amor incondicional de Deus que entrega o Filho. Profecia, porque denuncia todos os sistemas que ainda crucificam e conclama a Igreja a estar junto dos crucificados. Como dizia São Romero da América: “Se me matarem, ressuscitarei no povo”. A cruz é exatamente isso: morte e ressurreição, derrota e vitória, fragilidade e potência do amor.

Celebrar este dia é fazer a pergunta que Nicodemos fez no silêncio da noite: “Como pode ser isso?” (Jo 3,9). E ouvir de Cristo que só o Espírito pode gerar a vida nova. É perguntar-nos se estamos dispostos a deixar que a cruz não seja apenas adorno, mas critério de vida, modo de amar, compromisso com os últimos. É deixar-se iluminar pela palavra de Paulo: “A linguagem da cruz é loucura para os que se perdem, mas para nós que somos salvos é força de Deus” (1Cor 1,18). A cruz exaltada é o espelho em que a Igreja deve se olhar, não para se enfeitar, mas para se converter


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DNonato – Teólogo do Cotidiano


sexta-feira, 12 de setembro de 2025

Um breve olhar sobre Lucas 6, 43-49

A passagem de Lucas 6,43-49 é proclamada no sábado da 23ª semana do Tempo Comum, conforme o Leccionário Litúrgico da Igreja Católica. Neste sábado, a Palavra nos chama a refletir sobre a solidez de nossa vida espiritual e a coerência entre fé e prática, lembrando que ouvir a Palavra sem vivê-la é como construir sobre areia: fragilidade diante das tempestades da vida. Jesus nos apresenta duas imagens profundas: a árvore que se conhece pelos frutos e a construção que se mantém ou desmorona conforme o alicerce. O vento que sacode a árvore, a chuva que inunda a terra, o barro que cede sob os pés são imagens das tempestades internas e externas que todos enfrentamos. Como afirma o Salmo 1,3: “Ele é como árvore plantada junto a correntes de águas, que dá fruto no tempo certo, e cuja folha não murcha; tudo o que fizer prosperará.”

Quando Jesus fala da árvore boa que produz frutos bons e da árvore má que produz frutos ruins, ele nos convida a um exame profundo do coração. Lucas 6,45 afirma: “Do coração procedem as más intenções e as boas intenções; é disso que a boca fala.” Mateus 7,16-20 reforça: “Pelos frutos os conhecereis.” Isaías 5,1-7 denuncia o fracasso de uma vinha que deveria produzir frutos de justiça, mas que apenas produz clamor e sangue; Jeremias 17,7-8 contrapõe a confiança em Deus à esterilidade daqueles que se afastam da rocha divina. Provérbios 11,30 lembra que “o fruto do justo é árvore de vida, e quem ganha almas é sábio”, enquanto Salmo 92,13 descreve: “O justo florescerá como a palmeira, crescerá como o cedro do Líbano.” Lucas enfatiza que os frutos se manifestam concretamente: justiça, misericórdia e solidariedade são sinais de uma fé viva, não meras palavras.

Jesus elogia os pobres, denuncia os ricos e satisfeitos, e instrui seus discípulos a amar inimigos, abençoar os que os maldizem, fazer o bem sem esperar retribuição (Lc 6,20-36). A árvore boa transforma relações e denuncia injustiças; a fé encarnada desafia o individualismo, a fé como mercadoria e a teologia da prosperidade que promete sucesso em troca de dízimos. Líderes que vendem bênçãos financeiras podem parecer frutíferos, mas suas raízes apodrecem. A árvore ruim, por sua vez, produz frutos de aparências e envenena a vida alheia, seja pelo clericalismo opressor, seja por fé espetáculo que entretém sem formar, como alerta Amós 5,21-24: “Não quero a vossa festa, nem me agrada o vosso culto; traga-me justiça como água, e retidão como riacho perene.”

A parábola da casa construída sobre a rocha e sobre a areia convida à profundidade. Lucas 6,48 enfatiza que o homem que constrói sobre a rocha cavou fundo e pôs o alicerce sobre a pedra firme. O cavar simboliza esforço, discernimento e compromisso. No Oriente Médio, casas sobre areia eram vulneráveis às cheias; apenas o alicerce profundo resistia. A rocha é Cristo, a Palavra encarnada que sustenta a vida diante das tempestades (Mt 7,24-25; Mc 4,1-20; Is 28,16). A areia representa falsas seguranças: riqueza, prestígio, autoridade clerical, fé como investimento pessoal. Ouvir sem praticar gera fragmentação, angústia e hipocrisia (Tg 1,22-25). Kohlberg observa que a maturidade ética se mede na ação; ouvir sem agir mantém a moral em estado infantil.

A árvore que produz frutos bons e a casa firme sobre a rocha revelam a integração de fé, razão, emoção e ação. Comunidades que constroem sobre areia – luxo ritualístico, poder clerical, fé espetáculo – desmoronam diante de crises. A crítica de Jesus é direta à teologia do domínio e da prosperidade: fé que se transforma em mercadoria promete sucesso, mas não sustenta vidas. Kierkegaard lembra que a fé exige salto existencial; Hannah Arendt alerta que superficialidade conduz à banalidade do mal. Como Mateus 23,23-24 adverte, não se deve negligenciar justiça, misericórdia e fé.

A patrística reforça essa perspectiva: Santo Agostinho ensina que ouvir sem praticar é olhar o reflexo sem entrar na água; São João Crisóstomo destaca a importância da firmeza do fundamento; Orígenes afirma que o que não está enraizado na rocha divina será levado pela maré da vaidade; Gregório de Nissa reforça que a sabedoria divina constrói alicerces invisíveis, mas firmes. A tradição da Igreja confirma que fé autêntica se manifesta na coerência entre palavra, ação e comunidade. O Concílio Vaticano II denuncia a busca de riqueza e poder em detrimento da dignidade humana; Evangelii Gaudium enfatiza que a fé transforma o mundo e convoca à ação concreta; Fratelli Tutti alerta para sociedades construídas sobre egoísmo e exclusão.

A humanidade sempre buscou fundamentos sólidos. A pedra simboliza estabilidade e divindade em diversas culturas. Construir sobre a rocha é gesto existencial: buscar segurança última naquilo que transcende. Pseudorrochas – dinheiro, prestígio, autoridade clerical – conduzem à ruína; Cristo sustenta vidas e gera comunidade. Provérbios 24,3-4 nos lembra: “Com sabedoria se edifica a casa, e com discernimento ela se firma; com conhecimento, os cômodos se enchem de todas as riquezas preciosas e deleitosas.”

O clericalismo é diretamente desafiado: a rocha não é a autoridade humana, mas a Palavra encarnada que exige conversão, serviço e humildade. Verdadeira autoridade é do discípulo que escuta, pratica e constrói com os outros, não do líder que se impõe. A Igreja é casa construída sobre a rocha, não fortaleza sobre areia. A Palavra de Jesus é alicerce que sustenta a vida comunitária; coerência entre fé e prática garante a solidez. O Papa Francisco, já falecido, lembrava que a Igreja deve ser uma comunidade de discípulos missionários, não uma instituição que busca poder ou prestígio. Pergunta-se ao final: 

  • Qual é a raiz da minha vida? 
  • Sobre qual rocha tenho construído meu ser? 

A resposta define não apenas o presente, mas também a resistência às tempestades futuras, reafirmando que a fidelidade à Palavra é a única base que não se abala.



DNonato - Teólogo do Cotidiano 


segunda-feira, 8 de setembro de 2025

Um breve olhar sobre Lucas 6,12-19

O Evangelho proclamado  na Terça-feira da  23ª semana do Tempo Comum (Lucas 6,12-19) é uma passagem que também aparece em outras ocasiões da liturgia, sobretudo quando a Igreja celebra a memória dos santos apóstolos, pois trata diretamente da escolha dos Doze. Essa narrativa é ao mesmo tempo simples e grandiosa: Jesus passa a noite em oração, escolhe aqueles que, pelo nome, se tornarão testemunhas de sua vida e de sua obra, e desce da montanha para se encontrar com uma multidão de pessoas vindas de toda parte, que o escutam, buscam sua cura e experimentam a força que dele saía e que a todos curava. Não é apenas uma memória distante; é um acontecimento que fala à vida da Igreja em todos os tempos, porque nela se radica a origem da comunidade missionária e participativa que somos chamados a ser.

O primeiro elemento que chama atenção é que Jesus não age de modo precipitado nem isolado. Antes de tomar decisões, retira-se para rezar. Lucas sublinha com frequência essa dimensão orante de Jesus, mais até do que Marcos e Mateus. Aqui vemos que ele passa a noite inteira em oração a Deus (Lc 6,12). Isso remete imediatamente à necessidade de discernimento: a escolha dos Doze não é resultado de estratégia política, nem fruto de cálculos humanos, mas brota do diálogo profundo com o Pai. Nisso se manifesta uma chave hermenêutica fundamental: o Reino não é obra de indivíduos geniais nem de líderes carismáticos autossuficientes, mas nasce da obediência ao desígnio de Deus e se concretiza em comunidade. É importante notar que, em diversas passagens do Antigo Testamento, as grandes decisões são precedidas por escuta e oração: Samuel, ainda menino, aprende a responder “Fala, Senhor, teu servo escuta” (1Sm 3,10); Moisés permanece no Sinai em diálogo com Deus antes de guiar o povo (Ex 24,18). Jesus, novo Moisés, reatualiza e plenifica esse dinamismo: sobe ao monte não para receber tábuas de pedra, mas para se oferecer ao Pai e deixar-se conduzir por Ele.

Na tradição sinótica, encontramos paralelos que iluminam essa cena. Marcos 3,13-19 mostra Jesus subindo ao monte e chamando os que ele quis, instituindo doze para estarem com ele e para serem enviados a pregar e expulsar demônios. Mateus 10,1-4, por sua vez, enfatiza que lhes deu autoridade sobre espíritos impuros e sobre doenças, vinculando a missão diretamente à experiência do envio. Lucas, diferentemente, ressalta primeiro a oração de Jesus e depois o chamado pelo nome, destacando a dimensão da relação pessoal e comunitária. Há ainda um paralelo mais amplo com a experiência de Moisés no Sinai: ele sobe à montanha para estar diante de Deus, recebe as tábuas da Lei e desce para o povo. Jesus, novo Moisés, sobe para rezar, desce para chamar e formar um novo povo, sinal da nova aliança, não fundada em pedras, mas em pessoas concretas, frágeis e chamadas pelo nome.

Essa escolha pelo nome é significativa antropologicamente e biblicamente. O nome, na tradição semita, não é mero rótulo, mas identidade, vocação, missão. Chamar alguém pelo nome é reconhecer sua singularidade e dignidade. Isaías já havia proclamado em nome de Deus: “Eu te chamei pelo nome, tu és meu” (Is 43,1). O próprio Jesus revela em João 10,3 que o bom pastor “chama as suas ovelhas pelo nome”. O chamado pelo nome é também promessa de futuro, como no caso de Abraão, que recebe um novo nome como sinal de missão (Gn 17,5). Ao nomear Simão como Pedro, Jesus confere uma missão específica; ao escolher Judas, mesmo sabendo de sua traição futura, mostra que a graça de Deus passa também pelo mistério da liberdade humana. Isso revela que a comunidade não é formada por perfeitos, mas por homens concretos, com suas luzes e sombras, chamados a caminhar juntos. Davi, escolhido entre os filhos de Jessé, não era o mais forte nem o mais promissor segundo critérios humanos, mas Deus viu seu coração (1Sm 16,7). Assim também acontece com os apóstolos: a eleição não se baseia em currículos, mas em confiança divina.

Aqui emerge também uma crítica necessária às tendências individualistas de nossa época. Quantas vezes, em nossas pastorais e comunidades, repetimos a lógica da autossuficiência, acreditando que sozinhos podemos resolver tudo, e que os outros mais atrapalham do que ajudam. Essa mentalidade gera clericalismo, em que o padre se vê como dono da paróquia; gera pastoralismo individualista, em que líderes leigos concentram poder e não permitem participação; gera espiritualidades de mercado, em que pregadores digitais buscam likes e não comunhão. Jesus rompe essa lógica: ele poderia, de fato, ter realizado sua missão sozinho, mas escolhe o caminho da partilha e da comunhão. A Igreja é, por essência, sinodal, comunitária, participativa, como recorda o Vaticano II: “Aprouve a Deus salvar e santificar os homens não individualmente e separados de qualquer ligação, mas constituí-los em povo que O conhecesse em verdade e O servisse em santidade” (Lumen Gentium 9). O Papa Francisco retoma esse ensinamento em Evangelii Gaudium (n. 31), ao afirmar que não podemos reduzir a missão a uma elite clerical, mas é necessário abrir espaço para os leigos, para as mulheres, para todos os batizados corresponsáveis. E em Fratelli Tutti (n. 95-96), denuncia os fechamentos grupais e as falsas seguranças que nos impedem de construir fraternidade universal.

Do ponto de vista psicológico, podemos perceber aqui um ensinamento profundo. A tentação do perfeccionismo, da centralização e do controle absoluto nasce muitas vezes da insegurança e da incapacidade de confiar no outro. Projetamos nos outros nossas próprias sombras e acabamos excluindo-os em nome de uma pretensa eficiência. A escolha de Jesus desconstrói isso: ele confia em pessoas frágeis, forma um grupo heterogêneo, dá poder e envia. É um ato de confiança radical na ação do Espírito. Como diria Santo Agostinho, “Deus, que te criou sem ti, não te salvará sem ti” (Sermo 169). Ou seja, Deus nos chama a colaborar, mesmo sendo imperfeitos. Esse ensinamento tem também uma dimensão pedagógica: Jesus não escolhe pessoas prontas, mas acompanha, educa, corrige, forma ao longo do caminho. É um modelo de liderança servidora que confia no processo e não descarta quem falha.

Do ponto de vista sociológico, a escolha dos Doze tem um valor simbólico fundamental. O número doze remete às doze tribos de Israel, indicando que a comunidade de Jesus é o novo Israel, não substitutivo, mas plenitude da promessa. É um gesto de refundação da identidade do povo de Deus, agora aberto a todos os povos. O texto de Lucas mostra a multidão vinda não apenas da Judeia e de Jerusalém, mas também do litoral de Tiro e Sidônia, regiões estrangeiras. Já aí se insinua a dimensão universal da missão. O Reino não é propriedade de uma etnia ou de uma tradição religiosa fechada, mas dom de Deus para todos. Aqui também somos convidados a criticar toda forma de teologia do domínio que reduz o cristianismo a bandeira política de uma nação ou grupo ideológico. A Igreja não é partido nem milícia; é sacramento universal de salvação, sinal de unidade do gênero humano (Gaudium et Spes 42). Isso se torna ainda mais urgente quando assistimos à apropriação da fé por projetos de extrema-direita, que usam símbolos cristãos para legitimar exclusão, ódio e violência.

Quando Lucas afirma que “toda a multidão procurava tocar em Jesus, porque dele saía uma força que a todos curava” (Lc 6,19), encontramos um ponto de contato com a dimensão antropológica da fé. O ser humano busca cura, não apenas física, mas integral: deseja ser reconhecido, reintegrado, encontrar sentido e dignidade. O toque simboliza proximidade, confiança, vulnerabilidade. Em Marcos 5, vemos a hemorroíssa que toca o manto de Jesus e é curada. Em Mateus 14,36, muitos o tocavam e eram curados. O toque é linguagem de afeto e de fé. Em tempos de relações virtuais e de individualismos exacerbados, esse evangelho denuncia a falta de proximidade que corrói a vida comunitária e cria seres humanos isolados, presos em suas bolhas digitais. A cura de Jesus devolve pertença e identidade: quem estava excluído por doença, por possessão, por impureza, agora é reintegrado no povo de Deus.

A patrística percebeu essa dimensão com profundidade. Orígenes afirmava que a força que saía de Jesus era o próprio Logos, que curava não apenas corpos, mas também inteligências enfermas pela mentira e vontades adoecidas pelo pecado. São João Crisóstomo insistia que os apóstolos foram escolhidos não por seus méritos, mas para que ficasse claro que era Deus quem operava por meio deles. Essa leitura patrística reforça que a comunidade e a missão não são obras de homens geniais, mas da graça de Deus que age em vasos de barro (cf. 2Cor 4,7). Santo Irineu, por sua vez, via nos Doze um ícone da recapitulação: como Israel foi formado pelas doze tribos, assim a Igreja nasce dos Doze apóstolos para recapitular a humanidade inteira em Cristo.

A filosofia nos ajuda a compreender o alcance da escolha comunitária. Emmanuel Levinas diria que a verdadeira transcendência se manifesta no rosto do outro, que me interpela e me retira do meu egocentrismo. Jesus, ao escolher os Doze, abre um horizonte ético: não posso salvar-me sozinho, mas somente com e pelos outros. A modernidade individualista, marcada pelo “cogito ergo sum” cartesiano, precisa ser convertida para o “sou porque somos”, que ressoa tanto na filosofia africana do ubuntu quanto na antropologia bíblica. Dietrich Bonhoeffer, mártir do nazismo, lembrava que “a Igreja só é Igreja quando existe para os outros”, e isso ecoa o gesto de Jesus que chama colaboradores e desce para servir as multidões.

A sociologia, por sua vez, alerta para os perigos de transformar a fé em mercadoria. As igrejas da prosperidade vendem bênçãos, prometem sucesso financeiro e fazem da religião uma empresa. Isso perverte o sentido do evangelho, que não é comércio, mas dom gratuito. Paulo já advertia contra tais falsificadores da palavra (2Cor 2,17). A crítica de Jesus aos vendedores do templo permanece atual: quando a fé se torna mercado, perde-se a gratuidade e a comunhão. A religião espetáculo, feita de palcos, holofotes e slogans motivacionais, cria “apóstolos-influencers” que substituem a cruz por câmeras e curtidas. Em contrapartida, o evangelho de hoje mostra um Jesus que desce da montanha não para brilhar, mas para tocar feridas e curar. Não é palco, mas encontro; não é performance, mas proximidade.

A teologia do domínio, que transforma o cristianismo em projeto de poder político, também é denunciada pelo evangelho de hoje. Jesus escolhe discípulos para anunciar, curar e libertar, não para conquistar territórios ou impor leis. “Entre vós não deve ser assim: quem quiser ser o maior, seja aquele que serve” (Mc 10,43). A Igreja trai sua identidade quando se alia a regimes autoritários, quando busca privilégios em vez de serviço. A instrumentalização política da fé produz ídolos que não salvam, falsos messias que prometem segurança e estabilidade, mas geram violência e exclusão.

O clericalismo, por sua vez, é uma das mais graves doenças espirituais de nosso tempo. Quando o clero se fecha em si mesmo, quando se vê como elite separada do povo, trai o gesto de Jesus que chama pelo nome e forma uma comunidade de irmãos. O Papa Francisco tem insistido: “O clericalismo anula a personalidade dos cristãos, apaga a graça batismal que o Espírito Santo pôs no coração do nosso povo e destrói a força da comunhão” (Carta ao Povo de Deus, 2018). O evangelho de hoje pede uma Igreja de irmãos, não de castas. Não há espaço para donos de comunidades, mas para servidores que caminham juntos.

Por fim, é importante lembrar que essa passagem de Lucas é proclamada em momentos litúrgicos significativos: nas memórias dos apóstolos, quando celebramos a origem apostólica da Igreja; em certas festas marianas, pois Maria é a mãe da Igreja apostólica; e nesta terça-feira da 23ª semana, quando somos convidados a redescobrir a dimensão comunitária da missão. A liturgia, que é sempre atualização do mistério, nos convida a viver hoje a mesma experiência: colocar-nos em oração antes das decisões, reconhecer que somos chamados pelo nome, e descer da montanha para encontrar a multidão de homens e mulheres que têm sede de cura, de sentido e de vida plena. Aqui ecoa a missão narrada em Atos 1,8: “Recebereis a força do Espírito Santo… e sereis minhas testemunhas até os confins da terra”. A força que saía de Jesus continua saindo pela Igreja quando ela é fiel à oração, à comunhão e ao serviço.

Diante disso, somos chamados a ser testemunhas proféticas. Num mundo marcado pela política de resultados, pela idolatria do sucesso e pela mercantilização da fé, a Igreja deve ser sinal de gratuidade, comunhão e serviço. Num tempo de fragmentação e individualismo, deve ser escola de fraternidade. Num contexto de clericalismo e autoritarismo, deve ser espaço de participação e corresponsabilidade. Como lembrava São Romero da América, “a Igreja não pode ser neutra diante da injustiça: ou está ao lado dos pobres, ou está ao lado dos opressores”. A profecia consiste exatamente em denunciar as falsas seguranças e anunciar o Reino que não se impõe pela força, mas se oferece como dom.

Jesus não quis realizar sozinho a obra do Reino, mas chamou e continua chamando colaboradores. Não há discípulos sem comunidade, nem missão sem partilha. O evangelho de hoje é, portanto, um convite a deixarmos de ser adoradores de nós mesmos para nos tornarmos servidores de um Reino que é sempre maior do que nós. Somos convocados a ser Igreja que ora antes de decidir, que chama pelo nome, que confia nos pequenos, que desce para servir, que toca e deixa-se tocar, que cura e reintegra, que denuncia idolatrias e anuncia esperança. Só assim poderemos dizer, com os primeiros cristãos, que “o que vimos e ouvimos, isso vos anunciamos, para que estejais em comunhão conosco” (1Jo 1,3).



✍️ DNonato – Teólogo do Cotidiano


quarta-feira, 3 de setembro de 2025

Um breve olhar sobre Lucas 5,1-11

O evangelho proclamado no 5º Domingo do Tempo Comum do Ano C e também na quinta-feira da 22ª semana do Tempo Comum do ano impar nos apresenta um dos relatos mais significativos da vocação dos primeiros discípulos. Às margens do lago de Genesaré, Jesus se aproxima de homens comuns, fatigados por uma noite de trabalho sem frutos, e transforma sua rotina em um sinal profético. A cena é simples e grandiosa ao mesmo tempo: barcas vazias, pescadores desanimados, uma palavra que desconcerta e uma obediência que gera abundância.

Jesus entra na barca de Simão e pede que ele se afaste um pouco da margem. De dentro da barca, ensina a multidão. Depois, dirige-se a Simão com uma ordem paradoxal: “Avança para águas mais profundas e lançai as vossas redes para a pesca” (Lc 5,4). Pedro reage com lógica humana: “Mestre, trabalhamos a noite inteira e nada pescamos” (Lc 5,5). Aqui está o pretexto da narrativa: a experiência do esforço inútil, da fadiga sem resultado, do cansaço que paralisa. Quantos de nós não conhecemos esse mesmo sentimento em nossas vidas pessoais, familiares, pastorais e sociais?


Mas Pedro não para no cansaço. Ele dá um salto de confiança: “Mas em atenção à tua palavra, lançarei as redes” (Lc 5,5). O milagre acontece: redes cheias a ponto de se romper, barcos quase a afundar. O fracasso se transforma em abundância. A cena não é mero relato de sucesso profissional, mas símbolo da missão cristã: quando obedecemos à Palavra, mesmo contra a lógica humana, a graça se manifesta em plenitude.

Esse relato encontra paralelos em Mateus 4,18-22 e Marcos 1,16-20, onde a narrativa é mais direta: Jesus chama os irmãos pescadores, e eles o seguem imediatamente. Em João 21,1-14, após a ressurreição, a cena se repete com a pesca milagrosa, lembrando aos discípulos que a missão só é fecunda quando obediente à voz do Ressuscitado. O Antigo Testamento também ilumina essa passagem. Elias, ao chamar Eliseu (1Rs 19,19-21), encontra um homem ocupado no trabalho que larga tudo para segui-lo. Jonas resiste ao chamado, mas depois obedece e evangeliza Nínive (Jn 1–3). Israel, ao atravessar o mar (Ex 14), aprende que só a confiança em Deus pode abrir caminhos no meio do impossível. O salmo 107 descreve os que trabalham no mar e clamam ao Senhor em meio às ondas, e Ele os salva (Sl 107,23-30).

O simbolismo das águas é central. Nas culturas semitas, o mar é lugar do caos e do perigo, mas também da vida e da purificação. Avançar para águas mais profundas é, portanto, metáfora existencial: deixar a superficialidade e enfrentar o mistério. Aqui a filosofia nos ajuda: Kierkegaard falaria do salto da fé, esse movimento que vai além da razão; Heidegger lembraria que a autenticidade exige sair da mesmice do impessoal; Hannah Arendt diria que se trata de um ato de natalidade, de um novo começo. Jesus convida Pedro e convida a nós: ousem, arrisquem, não fiquem presos ao raso, mergulhem no profundo da vida em Deus.

A psicologia nos mostra a dimensão humana desse relato. Pedro expressa a frustração de quem já tentou e falhou. Esse é um retrato das crises que vivemos: no casamento, no trabalho, na comunidade. Mas a atitude de Pedro é terapêutica: ele reconhece sua limitação e se abre à confiança. O medo que sente ao reconhecer o poder de Jesus — “Afasta-te de mim, Senhor, porque sou um pecador” (Lc 5,8) — não é rejeição, mas consciência da própria pequenez. O medo é curado pela palavra de Jesus: “Não tenhas medo. De agora em diante serás pescador de homens” (Lc 5,10). A confiança transforma o medo em missão.

Na sociologia, a escolha de pescadores é profundamente significativa. Jesus não chama os sábios da sinagoga, nem os ricos ou poderosos, mas trabalhadores anônimos, explorados por um sistema econômico que os oprimia com impostos e tributos. A missão começa na periferia, não no centro. Isso ecoa a lógica de toda a Escritura: Deus escolhe Abraão, um velho sem filhos; Moisés, um fugitivo; Davi, o menor dos irmãos; Maria, uma jovem de Nazaré. O chamado divino sempre reverte expectativas.

Do ponto de vista da teologia, o núcleo da passagem é a vida comunitária. Lucas ressalta que Pedro precisa chamar os companheiros para ajudá-lo, e todos participam da abundância. O milagre não enriquece um indivíduo, mas envolve toda a comunidade. Contra a teologia da prosperidade, que transforma a fé em busca de bênçãos pessoais, o evangelho mostra que a graça de Deus é para todos. Contra a teologia do domínio, que vê a missão como conquista e poder, o evangelho mostra que ser pescador de homens não é capturar para dominar, mas resgatar para libertar. Contra a fé como mercadoria, que vende milagres e bênçãos, o evangelho recorda que a graça é dom gratuito, acessível na obediência confiante.

Esse texto também denuncia o clericalismo. Jesus não centraliza sua missão em si nem delega apenas aos sacerdotes do templo. Ele chama trabalhadores comuns e os faz protagonistas da missão. O Concílio Vaticano II, em Lumen Gentium, recorda que todos os batizados participam do sacerdócio comum. A Evangelii Gaudium insiste que o clericalismo sufoca a iniciativa dos leigos e enfraquece a Igreja. Uma Igreja missionária precisa ser povo de Deus em comunhão, não pirâmide de poder.

Os Padres da Igreja leram essa passagem com profundidade. Santo Agostinho via a barca como imagem da Igreja que atravessa o mar da história. São João Crisóstomo sublinhava que a abundância não vinha da técnica de Pedro, mas da obediência à palavra de Cristo. Orígenes interpretava a pesca como o anúncio do Evangelho que reúne povos de todas as nações. Gregório Magno comparava a paciência do pescador à paciência necessária ao cuidado pastoral. Tertuliano dizia que os cristãos são “peixinhos” que nascem nas águas do batismo.

A ciência histórica nos ajuda a não romantizar o episódio. A Galileia era explorada economicamente pelo império romano, e os pescadores sofriam com tributos pesados. A cena mostra que Jesus não chama para uma espiritualidade alienada, mas para uma missão enraizada na realidade social. A abundância de peixes é símbolo de uma nova economia da graça, não de lucro, mas de partilha.

Esse texto, lido hoje, é convite e denúncia. Convida a sair da margem da fé superficial e a lançar-se na profundidade da Palavra. Denuncia o cristianismo reduzido a espetáculo, a consumo religioso, a mercadoria vendida em templos e redes sociais. Denuncia o clericalismo que sufoca os leigos e a teologia da prosperidade que transforma o Evangelho em barganha. Denuncia também o individualismo religioso que esquece a comunidade e só busca benefícios pessoais.

Os documentos da Igreja reforçam esse chamado. A Dei Verbum (n. 21) lembra que a Palavra é alimento da alma. A Gaudium et Spes nos recorda que as alegrias e esperanças, as tristezas e angústias dos homens são também as da Igreja. A Christus Vivit fala aos jovens: “Não tenhas medo de arriscar e lançar-se em águas profundas” (cf. n. 132-134). O Documento de Aparecida (n. 362) insiste: a Igreja deve estar em estado permanente de missão. A Fratelli Tutti sonha com uma fraternidade universal que rompe muros e constrói pontes.

O evangelho de Lucas 5,1-11 é, portanto, uma palavra profética para hoje. Somos convidados a reconhecer nossos cansaços e fracassos, mas a confiar na Palavra que nos pede o impossível. Somos chamados a obedecer mesmo contra a lógica, a avançar para águas profundas, a viver uma fé que não é mercadoria, mas graça gratuita. Somos chamados a formar comunidades missionárias, não elites religiosas. Somos chamados a transformar redes vazias em abundância compartilhada.

Assim, repetimos as palavras de Jesus a Pedro: “Não tenhas medo”. Não tenhamos medo de enfrentar nossos fracassos, de sair de nossas zonas de conforto, de arriscar no mar aberto da vida. Quem obedece à Palavra experimenta a abundância. Quem segue Jesus, mesmo na fraqueza, se torna pescador de homens e mulheres, não para aprisionar, mas para libertar. Avancemos, pois, para águas mais profundas.



DNonato – Teólogo do Cotidiano


domingo, 31 de agosto de 2025

Um breve olhar sobre Lucas 4,16-30

 
Era sábado em Nazaré. O pequeno vilarejo, perdido entre colinas da Galileia, respirava o silêncio sagrado do dia consagrado ao Senhor. As ruas de pedra, iluminadas pela luz clara da manhã, conduziam homens, mulheres e crianças à sinagoga. O ar estava carregado de expectativa: Jesus, o filho do carpinteiro, aquele que crescera ali, que aprendera as Escrituras desde menino, estava de volta depois de percorrer outras cidades. Sua fama começava a ecoar discretamente pelos povoados; falava-se de curas, palavras de sabedoria e gestos de compaixão. Os olhares se cruzavam em curiosidade e orgulho local: 

  • “Será que é verdade o que dizem? Nosso conterrâneo seria mesmo um profeta?”.

A sinagoga, simples e austera, se enchia do murmúrio dos salmos recitados em coro. O rolo das Escrituras foi entregue a Jesus. Ele o abriu, não como quem apenas lê, mas como quem respira cada palavra. Procurou Isaías e encontrou: “O Espírito do Senhor está sobre mim, porque me ungiu para anunciar a Boa Nova aos pobres, a libertação aos cativos, a vista aos cegos, para pôr em liberdade os oprimidos e proclamar um ano da graça do Senhor”. A assembleia suspendeu a respiração. Jesus fechou o livro, entregou-o ao ministro e, sentado, pronunciou: “Hoje se cumpriu esta passagem da Escritura que acabais de ouvir”.

O silêncio da admiração foi logo rompido pelo ruído das interrogações. O mesmo olhar que antes reluzia em orgulho agora se enevoava em desconfiança. “Não é este o filho de José? Como ousa aplicar a si palavras tão grandes? E como ousa lembrar-nos que Deus age também entre estrangeiros, viúvas de Sarepta, sírios leprosos, gente que não é do nosso povo?”. O ambiente se incendiou em fúria. O que começou como celebração terminou em rejeição. Os que O haviam acolhido queriam agora expulsá-Lo.

Colocada no início da vida pública de Jesus, esta passagem constitui, conforme Lucas, o programa de toda a atividade de Jesus. Isaías 61,1-2 anunciara que o Messias iria realizar a missão libertadora dos pobres e oprimidos. Jesus aplica a passagem a si mesmo, assumindo-a no hoje concreto em que se encontra. No ano da graça eram perdoadas todas as dívidas e se redistribuíam fraternalmente todas as terras e propriedades: Jesus encaminha a humanidade para uma situação de reconciliação e partilha, que tornam possíveis a igualdade, a fraternidade e a comunhão. A dúvida e a rejeição de Jesus por parte de seus compatriotas fazem prever a hostilidade e a rejeição de toda a atividade de Jesus por parte de todo o seu povo. No entanto, Jesus prossegue seu caminho, para construir a nova história que engloba toda a humanidade.

Este texto ocupa um lugar privilegiado tanto no Evangelho de Lucas quanto na vida litúrgica da Igreja. É proclamado em sua totalidade na segunda-feira da 22ª semana do Tempo Comum, mas também aparece parcialmente, nos versículos 14-21, no 3º Domingo do Tempo Comum do ano C, que desde 2019 foi instituído pelo Papa Francisco como o Domingo da Palavra de Deus. A coincidência é profundamente significativa: a Palavra de Deus é celebrada no dia em que Jesus, na sinagoga de Nazaré, proclama que “Hoje se cumpriu esta passagem da Escritura que acabais de ouvir” (Lc 4,21). A liturgia nos ajuda a perceber duas dimensões complementares. No domingo, somos chamados a contemplar a força da Palavra que se atualiza e se encarna no hoje da comunidade; na segunda-feira, experimentamos a resistência que esta mesma Palavra provoca quando desestabiliza certezas, privilégios e exclusivismos. A Palavra consola e liberta, mas também inquieta e provoca, porque denuncia estruturas de opressão e convoca à conversão.

A cena é carregada de densidade teológica, antropológica e histórica. Jesus entra na sinagoga, lugar de memória e identidade, onde a Escritura era lida e interpretada. O gesto de levantar-se para ler não é apenas litúrgico, é também político e profético: ele se coloca de pé diante da tradição para reatualizá-la. O rolo que lhe entregam contém o texto de Isaías 61, que anunciava o envio do Espírito sobre o ungido para libertar os pobres, proclamar a libertação dos cativos, dar vista aos cegos e libertar os oprimidos. Esse texto, profundamente enraizado na esperança de Israel, ganha um horizonte novo em Jesus, porque não é mais promessa futura, mas realidade presente. O termo “hoje” ressoa aqui como palavra-chave: a salvação não é adiada, mas se concretiza no agora da história.

A menção ao “ano da graça do Senhor” remete diretamente ao jubileu descrito em Levítico 25, quando as dívidas eram perdoadas, os escravos libertos e as terras devolvidas aos seus donos originais. Era a grande festa da justiça restaurada e da igualdade social. A leitura que Jesus faz de Isaías projeta essa tradição para além do ritualismo: não se trata apenas de um calendário religioso, mas da transformação radical da vida social, econômica e política. Aqui a teologia se encontra com a antropologia e a sociologia: a fé bíblica não se reduz a práticas privadas, mas gera consequências concretas para a organização da sociedade. O jubileu, ao ser assumido por Jesus, denuncia todas as formas de acumulação que excluem, todas as lógicas de exploração que concentram poder e riqueza, e aponta para a utopia do Reino, onde o pão é partilhado, os corpos são curados e a dignidade é restituída.

A reação dos ouvintes é ambígua. Primeiro, todos se admiram das palavras cheias de graça que saíam da boca de Jesus. Mas logo o fascínio cede lugar à rejeição: “Não é este o filho de José?” (Lc 4,22). Essa pergunta revela uma dificuldade antropológica e psicológica recorrente: o preconceito diante do conhecido, a resistência em reconhecer grandeza e novidade no próximo. A psicologia social explica que o grupo tende a rejeitar aquele que, vindo de dentro, rompe os limites do esperado. O profeta incomoda porque mostra que o real pode ser diferente, que o destino não é inevitável, que a história pode mudar.

Jesus, no entanto, não recua. Ele recorda a tradição profética de Elias e Eliseu, mostrando que a graça de Deus não se limita a Israel, mas alcança também a viúva de Sarepta, em Sidônia, e o general Naamã, da Síria (cf. 1Rs 17,9; 2Rs 5,1-14). Aqui está o coração universalista do Evangelho de Lucas: o Reino não é monopólio de um povo ou de uma religião, mas dom oferecido a todos, especialmente aos que vivem nas periferias geográficas e existenciais. Essa ampliação do horizonte é insuportável para os que querem uma fé domesticada, nacionalista e excludente. O resultado é a violência: arrastam Jesus para fora e querem matá-lo. É o prenúncio da cruz, sinal de que a fidelidade ao projeto do Pai não se faz sem conflito com os poderes estabelecidos.

Esse relato encontra paralelos nos outros sinóticos. Em Marcos 6,1-6 e em Mateus 13,53-58, a cena do profeta rejeitado em sua terra aparece em contexto diferente, mas com a mesma mensagem: a incredulidade impede a acolhida do Reino. Lucas, porém, dá maior ênfase programática, colocando essa cena logo no início da missão de Jesus. É como se dissesse: este será o caminho – proclamar a libertação, enfrentar a rejeição, abrir as fronteiras, seguir até Jerusalém, onde a recusa culminará na cruz e, pela ressurreição, se transformará em vida nova para toda a humanidade.

Santo Irineu via nela a confirmação de que Cristo recapitula toda a história em si mesmo, inaugurando um novo tempo onde o Espírito age no hoje da Igreja. Orígenes, em sua homilia sobre Lucas, sublinhava que o “hoje” da Palavra não está preso ao passado, mas acontece sempre que o Evangelho é proclamado na assembleia. Santo Agostinho insistia que a Palavra de Deus não é letra morta, mas verbo vivo que transforma a vida daquele que a escuta com fé. A tradição patrística nos convida, portanto, a viver essa atualização não como memória distante, mas como compromisso presente.

Percebemos também o alcance sociopolítico dessa passagem. A proclamação de Jesus confronta sistemas de dominação e desigualdade. Hoje, a mesma Palavra denuncia as teologias distorcidas que instrumentalizam o Evangelho. Contra a teologia da prosperidade, recorda-se que o Messias não veio acumular riquezas nem prometer sucesso material, mas anunciar boas notícias aos pobres. Contra a teologia do domínio, mostra-se que Jesus não busca poder, mas serviço. Contra o individualismo, proclama-se que a salvação é comunhão e partilha. Contra a fé mercadoria, que transforma rituais em negócios e igrejas em mercados de milagres, afirma-se que a graça é gratuita, dom de Deus, e não produto de consumo.

O clericalismo também é desmascarado nesse texto. Quando a fé se reduz a poder clerical, perde-se o dinamismo profético de Jesus. O Papa Francisco recorda, na Evangelii Gaudium (n. 102), que o clericalismo é uma das tentações mais nocivas da Igreja, porque gera uma elite separada do povo, sufocando a profecia. Em Lucas 4, Jesus se coloca não como um sacerdote distante, mas como um profeta inserido no meio do povo, com autoridade que nasce do Espírito e da fidelidade à Palavra.

 Gaudium et Spes (n. 63-66) reforçam que as alegrias e esperanças, as tristezas e angústias dos pobres e de todos os que sofrem são também as alegrias e esperanças dos discípulos de Cristo. A Fratelli Tutti (n. 39) denuncia a globalização da indiferença e convoca a uma fraternidade aberta. Nesse horizonte, Lucas 4,16-30 nos interpela a reconhecer que a Palavra viva de Jesus continua a nos chamar a construir uma sociedade mais justa, solidária e inclusiva.

Por fim, essa passagem revela uma verdade antropológica universal: o ser humano tende a resistir ao novo, sobretudo quando o novo exige conversão de mentalidade e abandono de privilégios. A filosofia existencial ajuda a compreender esse drama: a liberdade assusta, porque implica responsabilidade. A psicologia aponta como os mecanismos de defesa, como a negação e a projeção, surgem diante da Palavra que desinstala. Mas é justamente nesse confronto que a salvação acontece. Jesus passa pelo meio deles e segue adiante (Lc 4,30): não se deixa deter pelo medo ou pela violência, porque sua missão é maior do que a rejeição.

Hoje, diante desse Evangelho, somos chamados a perguntar: 

  • Qual é o nosso projeto “hoje”? 
  • Onde precisamos deixar que a Palavra se cumpra? 
  • Onde resistimos, como os nazarenos, porque a mensagem nos incomoda? 
  • E como comunidade, estamos dispostos a abrir espaço para os pobres, os estrangeiros, os diferentes, ou continuamos a reproduzir muros e exclusões? 

A Boa Nova de Jesus não cabe em templos fechados, nem em projetos de poder, mas floresce quando a Palavra é acolhida como fermento de vida nova, reconciliação e justiça.



DNonato – Teólogo do Cotidiano


quarta-feira, 27 de agosto de 2025

Um breve olhar sobre Mateus 24,42-51

A Boa Nova proclamada em Mateus 24,42-51 na quinta-feira da 21ª semana do Tempo Comum nos convida desde o início a um estado de alerta que é também esperança e fidelidade. Não se trata apenas de uma advertência para o futuro distante, mas de um chamado contínuo a viver despertos, atentos à presença do Senhor no cotidiano da história, nos gestos simples e nas decisões de cada dia. A vigilância não é fruto de medo, mas de amor e responsabilidade, e ressoa em toda a Escritura, do Antigo ao Novo Testamento, lembrando-nos que o tempo de Deus não coincide com nossas agendas humanas, mas que cada instante da vida é oportunidade para viver na luz.

No sono, temos de estar preparados para acordar facilmente. Com efeito, diz a Escritura: «Estejam cingidos os vossos rins e acesas as vossas lâmpadas. Sede semelhantes aos homens que esperam o seu senhor, ao voltar do seu noivado, a fim de lhe abrirem a porta assim que ele chegar e bater» (Lc 12,35-36). Porque um homem adormecido serve para o mesmo que um homem morto. É por isso que devemos levantar-nos frequentemente durante a noite para bendizer a Deus. Felizes aqueles que velam por Ele, pois se tornam semelhantes aos anjos a que chamamos da guarda. Um homem adormecido vale o mesmo que um homem sem vida. Mas o que tem a luz está acordado, e as trevas não têm poder sobre ele, nem as trevas nem o sono. Está, pois, acordado para Deus, aquele que foi iluminado, e esse vive, porque nele está a vida.

«Feliz o homem que me ouve e que vela todos os dias à entrada da minha porta», diz a Sabedoria, «e que é assíduo no umbral da minha casa» (Prov 8,34). «Não durmamos, pois, como os outros, mas vigiemos e sejamos sóbrios», como diz a Escritura, «porque os que dormem, dormem de noite, e os que se embriagam, embriagam-se de noite», ou seja, na obscuridade da ignorância; «mas nós, que somos filhos do dia, sejamos sóbrios» (1Ts 5,6-8). «Porque todos vós sois filhos da luz e filhos do dia. Nós não somos filhos da noite nem das trevas» (1Ts 5,5).

A exortação à vigilância ressoa de modo profundo em outros evangelhos. Marcos nos lembra: “Vigiai, pois, porque não sabeis quando virá o senhor da casa” (Mc 13,33-35), e Lucas acrescenta a promessa: “Felizes os servos que o Senhor, ao chegar, encontrar acordados” (Lc 12,37). Mateus, mais adiante, reforça a mesma mensagem nas virgens prudentes (Mt 25,1-13) e no exemplo do servo fiel que administra a casa do senhor com fidelidade (Mt 24,45-51). Esses paralelos sinóticos mostram que a tradição da Igreja primitiva compreendeu o apelo de Jesus como insistência fundamental: vigiar é existir diante de Deus no presente, sem adormecer no passado nem se perder em cálculos sobre o futuro. Já Antigo Testamento  ecoava essa lógica de alerta e preparação. Habacuc diz: “Se demorar, espera, porque virá certamente, e não tardará” (Hab 2,3). Isaías convida: “Anda, povo meu, entra nos teus quartos, fecha as tuas portas por um momento, até que passe a indignação” (Is 26,20), mostrando que a vigilância também é refúgio e discernimento. Daniel anuncia: “Os que têm entendimento brilharão como o fulgor do firmamento, e os que ensinam a muitos a justiça, como as estrelas, por toda a eternidade” (Dn 12,3). No Novo Testamento, Paulo insiste: “Já é hora de despertar do sono” (Rm 13,11) e o Apocalipse reafirma: “Eis que venho como ladrão. Feliz aquele que vigia e guarda as suas vestes” (Ap 16,15).

A vigilância é o contrário da anestesia espiritual. Psicologicamente, é consciência e discernimento frente às ilusões. Sociologicamente, é resistência a sistemas que anestesiam e adormecem. Filosoficamente, é viver com responsabilidade diante da finitude. Teologicamente, é fidelidade amorosa à Palavra e à comunidade, rejeitando clericalismos e toda fé transformada em mercadoria ou espetáculo.

Os Padres da Igreja compreendiam a vigilância como postura de vida. Orígenes ensinava que quem permanece desperto participa antecipadamente da vida eterna. Santo Agostinho dizia que vigiar é recusar o sono do pecado e manter acesa a chama do amor. São Basílio indicava que a oração noturna é exercício de sobriedade espiritual, mantendo cingidos os rins e acesa a lâmpada da alma. O Concílio Vaticano II (Gaudium et Spes, n. 63-66), adverte que o mundo apresenta falsas seguranças e ídolos modernos; o Papa Francisco, na Evangelii Gaudium e na Fratelli Tutti, insiste que a vigilância se traduz em cuidado com os outros e rejeição da indiferença global. A vigilância é, portanto, ação ética e compromisso comunitário.

A reflexão de hoje retomamos  a advertência de Jesus: vigiai, porque não sabeis em que dia virá o vosso Senhor. Estar desperto é permanecer em amor, ser sensível aos sinais de Deus na história, servir aos irmãos e não aos próprios interesses. É como a noiva do Cântico dos Cânticos que vigia em busca do amado (Ct 3,1-4), é como a comunidade apostólica reunida na fração do pão que se mantém na esperança (1Cor 11,26). É o chamado a viver não na ansiedade, mas na fidelidade, na justiça, na esperança e na caridade, de modo que, quando o Senhor vier, nos encontre vigilantes, firmes e luminosos na fé.



DNonato – Teólogo do Cotidiano


terça-feira, 22 de julho de 2025

Um breve Olhar Sobre Mateus 13,1-9.

A Palavra como Semente, o Mundo como Solo
Era uma vez um mar, uma barca e uma multidão. E no centro, um semeador essa é cena da pericope proclamada na quarta-feira da 16ª semana do tempo comum Mateus 13,1-9. Assim começa um dos ensinamentos mais densos de Jesus, não com dogmas nem decretos, mas com sementes lançadas ao vento. A Palavra, como o sopro da criação (Gn 1,3), percorre os ares e busca morada nos corações. Jesus sai de casa, senta-se à beira do mar, entra num barco e dali fala (Mt 13,1-2). O mar – símbolo do caos, da travessia e do mistério – torna-se palco de uma revelação silenciosa. Como em Gênesis o Espírito pairava sobre o Tehom, o abismo primordial (Gn 1,2), assim agora Jesus, o Verbo feito carne, paira sobre o mar, anunciando um novo tempo de criação. A barca – figura da comunidade eclesial – sustenta o Verbo que semeia. E a multidão – imagem da humanidade fragmentada – escuta à distância, cada um com seu próprio tipo de solo interior.
A pedagogia de Jesus desconcerta: Ele não oferece respostas prontas, mas parábolas que desinstalam. A do semeador (Mt 13,3-9), ecoada por Marcos (4,1-9) e Lucas (8,4-8), é mais que metáfora agrícola – é denúncia e apelo. Deus semeia com generosidade absurda: lança sementes até mesmo sobre o caminho, entre pedras e espinhos. É o Reino semeado sem cálculo, sem meritocracia, sem exclusivismo religioso. Deus insiste em semear onde a lógica humana desistiria. Isso por si só já confronta a teologia da prosperidade, que só enxerga graça onde há colheita abundante, ignorando a presença divina nas secas e nos desertos.
O caminho, primeiro solo mencionado, representa os corações endurecidos pela passagem dos muitos – é o lugar da banalização, da fé reduzida a jargões. A Palavra ali não penetra; é comida pelas aves, símbolo do maligno (Mt 13,4.19). São os que ouvem, mas não escutam; que frequentam, mas não se deixam transformar. São as calçadas da religião formalista, onde o Evangelho é atropelado por dogmas ocos e por tradições que matam o espírito (cf. Mc 7,13). Isaías já havia denunciado: “Este povo me honra com os lábios, mas o seu coração está longe de mim” (Is 29,13; Mt 15,8).
As pedras falam dos corações entusiasmados, mas rasos. É a fé emocionalizada, que celebra milagres mas não suporta a cruz. Aqueles que recebem com alegria, mas não criam raízes (Mt 13,5-6.20-21). Aqui está a crítica à religiosidade imediatista, moldada por algoritmos de autoajuda e cultos-show. A psicologia nos lembra que há uma busca inconsciente por respostas rápidas ao sofrimento. Mas o Evangelho exige maturidade afetiva, resiliência interior, perseverança silenciosa. A Palavra precisa de raiz, e raiz só cresce no tempo e na terra do compromisso. Bonhoeffer chamou isso de “graça cara”: ela exige tudo de nós, porque é tudo de Deus. Como diz Hebreus: “Embora sendo Filho, aprendeu a obediência por aquilo que sofreu” (Hb 5,8). 
Os espinhos são os ídolos contemporâneos: o consumo, o prestígio, o acúmulo, a obsessão pela visibilidade. A Palavra germina, mas é sufocada (Mt 13,7.22). Não morre por falta de sol, mas por excesso de concorrência. A teologia do domínio se alimenta desses espinhos: promete sucesso, status e poder em nome de Deus, tornando o Evangelho uma plataforma de autopromoção. É a fé como mercadoria: quem paga mais, colhe mais; quem crê mais, conquista mais. Mas o Reino não se vende nem se troca. Ele é dom. E o Espírito sopra onde quer – não onde o mercado determina.
O apóstolo Paulo, profundamente enraizado no mistério do Cristo que semeia e faz crescer, reforça essa dinâmica com imagens da lavoura de Deus: “Eu plantei, Apolo regou, mas Deus deu o crescimento. De modo que nem o que planta é alguma coisa, nem o que rega, mas Deus, que dá o crescimento” (1Cor 3,6-7). Para ele, a missão não é espetáculo nem vaidade espiritual, mas serviço silencioso. O verdadeiro semeador é cooperador de Deus (1Cor 3,9), e não dono do campo. Paulo também denuncia os “pregadores de si mesmos”, que buscam bajulação ou aplauso (cf. 2Cor 4,5), e reafirma que o Evangelho não é mercadoria a ser vendida (2Cor 2,17). Como ele mesmo viveu: “com lágrimas, provações e trabalho de minhas próprias mãos” (At 20,33-35), o discipulado exige entrega, humildade e fidelidade. A Palavra não busca palcos, mas corações dispostos a se tornarem terra boa – mesmo que isso custe o labor invisível da semeadura perseverante. 

Mas Deus não é mercadoria. Amós já denunciava que viria um tempo de fome – não de pão, mas de ouvir a Palavra do Senhor (Am 8,11). Contudo, essa Palavra não se compra. Ela exige justiça: “Antes corra o julgamento como as águas, e a justiça como um rio perene” (Am 5,24). A semente do Reino só frutifica onde há sede de justiça, não de prestígio religioso. A boa terra, finalmente, é a vida que escuta, compreende e frutifica (Mt 13,8.23). Mas essa terra não nasce pronta: ela é cuidada, arada, convertida. A antropologia bíblica lembra que o coração é o centro da pessoa (Pr 4,23). Escutar com o coração é mais do que entender – é deixar-se transformar. Como diz o Deuteronômio: “Escuta, Israel!” (Dt 6,4). Essa escuta é ativa, ética, política. Pois quem ouve de verdade, resiste ao mal, denuncia a injustiça e transforma a história. Assim foi com os profetas, com Maria, com os mártires de todas as eras.

A Palavra não está longe, nem está no céu, nem além-mar. Ela está “muito perto de ti: está na tua boca e no teu coração, para que a pratiques” (Dt 30,14). Ela está dentro, não apenas como doutrina a ser compreendida, mas como vida a ser vivida. Como afirmam os profetas, o solo precisa ser arado. Jeremias clama: “Lavrai para vós um campo novo, não semeeis entre espinhos” (Jr 4,3). E Oséias ecoa: “Semeai justiça, colhereis amor; lavrai o campo de fallow, pois é tempo de buscar o Senhor” (Os 10,12). A boa terra não nasce pronta – ela nasce do desejo de conversão, da coragem de romper com as estruturas endurecidas do coração.

Deus promete: “Tirar-vos-ei o coração de pedra e vos darei um coração de carne. Porei dentro de vós o meu Espírito” (Ez 36,26-27). A conversão não é apenas moral; é antropológica e espiritual: mudança de centro, de sensibilidade, de direção. Como nos ensina Isaías, “Assim como a chuva e a neve descem dos céus e não voltam sem antes regar a terra, fazendo-a germinar e produzir, assim será a palavra que sair da minha boca: não voltará para mim vazia, mas fará o que me apraz e cumprirá o propósito para o qual a enviei” (Is 55,10-11). Essa Palavra, como água viva, fecunda até mesmo os desertos existenciais, se houver abertura sincera.

Essa parábola também denuncia o clericalismo. O semeador é Cristo, sim, mas também somos nós: leigas e leigos, pobres e indígenas, mães e militantes, catequistas e professores. A Palavra não pertence ao altar; pertence ao povo. O Papa Francisco (†2025), cuja memória viva ainda ecoa em nossos passos, nos alertou contra a “auto-referencialidade da Igreja” (Evangelii Gaudium, n. 95) e insistiu que todos os batizados são chamados a semear, a sair, a ouvir os clamores da terra e dos pobres. O clericalismo endurece o solo; o discipulado o fecunda. Todavia, há uma urgência profética em nos questionarmos sobre aqueles que almejam a missão além-mar, buscando horizontes distantes, quando ao seu redor tantas terras – suas comunidades, seus bairros, suas famílias – clamam por semeadura e cuidado. Essa busca por missões longínquas não pode ser uma fuga que negligencia o campo presente, que jaz árido, esquecido e pedregoso. A missão autêntica nasce do compromisso com o chão onde se vive, do amor ao próximo imediato, da coragem de arar as terras mais difíceis próximas a nós, antes de buscar outros territórios. Como lembra Gaudium et Spes, a Igreja é chamada a “renovar a ordem temporal” (GS 43), e não a terceirizar a transformação para outros lados, enquanto deixa de cultivar a justiça e a esperança onde está plantada. O verdadeiro missionário é aquele que primeiro faz frutificar a sua própria terra, preparando-se assim para, se for chamado, semear além-mar com raiz firme e coração íntegro. Também é urgente criticar o individualismo espiritualizado. O Reino não é projeto privado de salvação, mas horizonte comum de transformação. A semente frutifica para o outro. Como ensina Gaudium et Spes, a missão da Igreja é “unir a fé com a vida” e “renovar a ordem temporal” (GS 43). Não basta rezar; é preciso cultivar justiça. Não basta escutar; é preciso dar frutos. Não basta acolher a Palavra; é preciso torná-la carne no mundo.

A tradição patrística reforça esse caminho. Santo Irineu dizia que “a glória de Deus é o ser humano vivo, e a vida do ser humano é a visão de Deus”. A vida, portanto, é o terreno da glória. Uma terra viva, justa, fecunda, profética. Uma terra onde a Palavra, mesmo quando pequena como semente de mostarda, carrega a força da transformação (cf. Mt 13,31-32). 

O Reino cresce mesmo quando não percebemos. Como na parábola do crescimento misterioso (Mc 4,26-29), “a terra por si mesma produz fruto”. Essa confiança no processo lento da Palavra é também um ato de resistência profética contra a lógica do imediatismo e da performance.  A Palavra de Deus “é viva, eficaz e mais cortante que qualquer espada de dois gumes; penetra até dividir alma e espírito, juntas e medulas, e discerne os pensamentos e intenções do coração” (Hb 4,12). Ela não é consolo barato, mas cirurgia do Espírito. Não é anestesia; é transformação.

Como diz o Eclesiastes: “Quem observa o vento não semeará; e quem olha para as nuvens não colherá (...) pela manhã semeia a tua semente e à tarde não retires a tua mão, pois não sabes qual delas prosperará” (Ecl 11,4.6). O profeta não semeia para colher aplausos, mas porque acredita na força da Palavra que trabalha no invisível.  O semeador continua lançando sementes do barco sobre o mar do caos. A multidão ainda escuta – alguns com pressa, outros com medo, outros com esperança. A Palavra ainda busca solo fértil, não perfeito, mas disponível. O Espírito ainda sopra, como brisa suave (1Rs 19,12), sem espetáculo nem propaganda. Resta a cada um de nós perguntar, com honestidade e tremor: que tipo de solo temos sido? Que tipo de colheita temos oferecido? 

Como disse Jesus: “Felizes os que ouvem a Palavra de Deus e a põem em prática” (Lc 11,28). Pois a colheita do Reino não se mede em números, mas em frutos de justiça, partilha, compaixão e profecia. Semeemos, então, mesmo quando o chão parece árido. Pois Deus é especialista em fazer florescer onde ninguém mais acredita

DNonato – Teólogo do Cotidiano