terça-feira, 22 de julho de 2025

Um breve Olhar Sobre Mateus 13,1-9.

A Palavra como Semente, o Mundo como Solo
Era uma vez um mar, uma barca e uma multidão. E no centro, um semeador essa é cena da pericope proclamada na quarta-feira da 16ª semana do tempo comum Mateus 13,1-9. Assim começa um dos ensinamentos mais densos de Jesus, não com dogmas nem decretos, mas com sementes lançadas ao vento. A Palavra, como o sopro da criação (Gn 1,3), percorre os ares e busca morada nos corações. Jesus sai de casa, senta-se à beira do mar, entra num barco e dali fala (Mt 13,1-2). O mar – símbolo do caos, da travessia e do mistério – torna-se palco de uma revelação silenciosa. Como em Gênesis o Espírito pairava sobre o Tehom, o abismo primordial (Gn 1,2), assim agora Jesus, o Verbo feito carne, paira sobre o mar, anunciando um novo tempo de criação. A barca – figura da comunidade eclesial – sustenta o Verbo que semeia. E a multidão – imagem da humanidade fragmentada – escuta à distância, cada um com seu próprio tipo de solo interior.
A pedagogia de Jesus desconcerta: Ele não oferece respostas prontas, mas parábolas que desinstalam. A do semeador (Mt 13,3-9), ecoada por Marcos (4,1-9) e Lucas (8,4-8), é mais que metáfora agrícola – é denúncia e apelo. Deus semeia com generosidade absurda: lança sementes até mesmo sobre o caminho, entre pedras e espinhos. É o Reino semeado sem cálculo, sem meritocracia, sem exclusivismo religioso. Deus insiste em semear onde a lógica humana desistiria. Isso por si só já confronta a teologia da prosperidade, que só enxerga graça onde há colheita abundante, ignorando a presença divina nas secas e nos desertos.
O caminho, primeiro solo mencionado, representa os corações endurecidos pela passagem dos muitos – é o lugar da banalização, da fé reduzida a jargões. A Palavra ali não penetra; é comida pelas aves, símbolo do maligno (Mt 13,4.19). São os que ouvem, mas não escutam; que frequentam, mas não se deixam transformar. São as calçadas da religião formalista, onde o Evangelho é atropelado por dogmas ocos e por tradições que matam o espírito (cf. Mc 7,13). Isaías já havia denunciado: “Este povo me honra com os lábios, mas o seu coração está longe de mim” (Is 29,13; Mt 15,8).
As pedras falam dos corações entusiasmados, mas rasos. É a fé emocionalizada, que celebra milagres mas não suporta a cruz. Aqueles que recebem com alegria, mas não criam raízes (Mt 13,5-6.20-21). Aqui está a crítica à religiosidade imediatista, moldada por algoritmos de autoajuda e cultos-show. A psicologia nos lembra que há uma busca inconsciente por respostas rápidas ao sofrimento. Mas o Evangelho exige maturidade afetiva, resiliência interior, perseverança silenciosa. A Palavra precisa de raiz, e raiz só cresce no tempo e na terra do compromisso. Bonhoeffer chamou isso de “graça cara”: ela exige tudo de nós, porque é tudo de Deus. Como diz Hebreus: “Embora sendo Filho, aprendeu a obediência por aquilo que sofreu” (Hb 5,8). 
Os espinhos são os ídolos contemporâneos: o consumo, o prestígio, o acúmulo, a obsessão pela visibilidade. A Palavra germina, mas é sufocada (Mt 13,7.22). Não morre por falta de sol, mas por excesso de concorrência. A teologia do domínio se alimenta desses espinhos: promete sucesso, status e poder em nome de Deus, tornando o Evangelho uma plataforma de autopromoção. É a fé como mercadoria: quem paga mais, colhe mais; quem crê mais, conquista mais. Mas o Reino não se vende nem se troca. Ele é dom. E o Espírito sopra onde quer – não onde o mercado determina.
O apóstolo Paulo, profundamente enraizado no mistério do Cristo que semeia e faz crescer, reforça essa dinâmica com imagens da lavoura de Deus: “Eu plantei, Apolo regou, mas Deus deu o crescimento. De modo que nem o que planta é alguma coisa, nem o que rega, mas Deus, que dá o crescimento” (1Cor 3,6-7). Para ele, a missão não é espetáculo nem vaidade espiritual, mas serviço silencioso. O verdadeiro semeador é cooperador de Deus (1Cor 3,9), e não dono do campo. Paulo também denuncia os “pregadores de si mesmos”, que buscam bajulação ou aplauso (cf. 2Cor 4,5), e reafirma que o Evangelho não é mercadoria a ser vendida (2Cor 2,17). Como ele mesmo viveu: “com lágrimas, provações e trabalho de minhas próprias mãos” (At 20,33-35), o discipulado exige entrega, humildade e fidelidade. A Palavra não busca palcos, mas corações dispostos a se tornarem terra boa – mesmo que isso custe o labor invisível da semeadura perseverante. 

Mas Deus não é mercadoria. Amós já denunciava que viria um tempo de fome – não de pão, mas de ouvir a Palavra do Senhor (Am 8,11). Contudo, essa Palavra não se compra. Ela exige justiça: “Antes corra o julgamento como as águas, e a justiça como um rio perene” (Am 5,24). A semente do Reino só frutifica onde há sede de justiça, não de prestígio religioso. A boa terra, finalmente, é a vida que escuta, compreende e frutifica (Mt 13,8.23). Mas essa terra não nasce pronta: ela é cuidada, arada, convertida. A antropologia bíblica lembra que o coração é o centro da pessoa (Pr 4,23). Escutar com o coração é mais do que entender – é deixar-se transformar. Como diz o Deuteronômio: “Escuta, Israel!” (Dt 6,4). Essa escuta é ativa, ética, política. Pois quem ouve de verdade, resiste ao mal, denuncia a injustiça e transforma a história. Assim foi com os profetas, com Maria, com os mártires de todas as eras.

A Palavra não está longe, nem está no céu, nem além-mar. Ela está “muito perto de ti: está na tua boca e no teu coração, para que a pratiques” (Dt 30,14). Ela está dentro, não apenas como doutrina a ser compreendida, mas como vida a ser vivida. Como afirmam os profetas, o solo precisa ser arado. Jeremias clama: “Lavrai para vós um campo novo, não semeeis entre espinhos” (Jr 4,3). E Oséias ecoa: “Semeai justiça, colhereis amor; lavrai o campo de fallow, pois é tempo de buscar o Senhor” (Os 10,12). A boa terra não nasce pronta – ela nasce do desejo de conversão, da coragem de romper com as estruturas endurecidas do coração.

Deus promete: “Tirar-vos-ei o coração de pedra e vos darei um coração de carne. Porei dentro de vós o meu Espírito” (Ez 36,26-27). A conversão não é apenas moral; é antropológica e espiritual: mudança de centro, de sensibilidade, de direção. Como nos ensina Isaías, “Assim como a chuva e a neve descem dos céus e não voltam sem antes regar a terra, fazendo-a germinar e produzir, assim será a palavra que sair da minha boca: não voltará para mim vazia, mas fará o que me apraz e cumprirá o propósito para o qual a enviei” (Is 55,10-11). Essa Palavra, como água viva, fecunda até mesmo os desertos existenciais, se houver abertura sincera.

Essa parábola também denuncia o clericalismo. O semeador é Cristo, sim, mas também somos nós: leigas e leigos, pobres e indígenas, mães e militantes, catequistas e professores. A Palavra não pertence ao altar; pertence ao povo. O Papa Francisco (†2025), cuja memória viva ainda ecoa em nossos passos, nos alertou contra a “auto-referencialidade da Igreja” (Evangelii Gaudium, n. 95) e insistiu que todos os batizados são chamados a semear, a sair, a ouvir os clamores da terra e dos pobres. O clericalismo endurece o solo; o discipulado o fecunda. Todavia, há uma urgência profética em nos questionarmos sobre aqueles que almejam a missão além-mar, buscando horizontes distantes, quando ao seu redor tantas terras – suas comunidades, seus bairros, suas famílias – clamam por semeadura e cuidado. Essa busca por missões longínquas não pode ser uma fuga que negligencia o campo presente, que jaz árido, esquecido e pedregoso. A missão autêntica nasce do compromisso com o chão onde se vive, do amor ao próximo imediato, da coragem de arar as terras mais difíceis próximas a nós, antes de buscar outros territórios. Como lembra Gaudium et Spes, a Igreja é chamada a “renovar a ordem temporal” (GS 43), e não a terceirizar a transformação para outros lados, enquanto deixa de cultivar a justiça e a esperança onde está plantada. O verdadeiro missionário é aquele que primeiro faz frutificar a sua própria terra, preparando-se assim para, se for chamado, semear além-mar com raiz firme e coração íntegro. Também é urgente criticar o individualismo espiritualizado. O Reino não é projeto privado de salvação, mas horizonte comum de transformação. A semente frutifica para o outro. Como ensina Gaudium et Spes, a missão da Igreja é “unir a fé com a vida” e “renovar a ordem temporal” (GS 43). Não basta rezar; é preciso cultivar justiça. Não basta escutar; é preciso dar frutos. Não basta acolher a Palavra; é preciso torná-la carne no mundo.

A tradição patrística reforça esse caminho. Santo Irineu dizia que “a glória de Deus é o ser humano vivo, e a vida do ser humano é a visão de Deus”. A vida, portanto, é o terreno da glória. Uma terra viva, justa, fecunda, profética. Uma terra onde a Palavra, mesmo quando pequena como semente de mostarda, carrega a força da transformação (cf. Mt 13,31-32). 

O Reino cresce mesmo quando não percebemos. Como na parábola do crescimento misterioso (Mc 4,26-29), “a terra por si mesma produz fruto”. Essa confiança no processo lento da Palavra é também um ato de resistência profética contra a lógica do imediatismo e da performance.  A Palavra de Deus “é viva, eficaz e mais cortante que qualquer espada de dois gumes; penetra até dividir alma e espírito, juntas e medulas, e discerne os pensamentos e intenções do coração” (Hb 4,12). Ela não é consolo barato, mas cirurgia do Espírito. Não é anestesia; é transformação.

Como diz o Eclesiastes: “Quem observa o vento não semeará; e quem olha para as nuvens não colherá (...) pela manhã semeia a tua semente e à tarde não retires a tua mão, pois não sabes qual delas prosperará” (Ecl 11,4.6). O profeta não semeia para colher aplausos, mas porque acredita na força da Palavra que trabalha no invisível.  O semeador continua lançando sementes do barco sobre o mar do caos. A multidão ainda escuta – alguns com pressa, outros com medo, outros com esperança. A Palavra ainda busca solo fértil, não perfeito, mas disponível. O Espírito ainda sopra, como brisa suave (1Rs 19,12), sem espetáculo nem propaganda. Resta a cada um de nós perguntar, com honestidade e tremor: que tipo de solo temos sido? Que tipo de colheita temos oferecido? 

Como disse Jesus: “Felizes os que ouvem a Palavra de Deus e a põem em prática” (Lc 11,28). Pois a colheita do Reino não se mede em números, mas em frutos de justiça, partilha, compaixão e profecia. Semeemos, então, mesmo quando o chão parece árido. Pois Deus é especialista em fazer florescer onde ninguém mais acredita

DNonato – Teólogo do Cotidiano

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