Desde o Éden, quando Adão apontou Eva e Eva a serpente, o gesto de transferir a culpa parece ter se fixado em nosso código existencial.
Terceirizar a responsabilidade, colocar a culpa no outro por nossas omissões ou leviandades, é um reflexo ancestral. Somos assim: tantas vezes relutantes em reconhecer nossas fragilidades e desvios. Queremos que o outro seja o ser humano perfeito, repleto de qualidades, mas não nos empenhamos em ser esse humano para o outro.
Ansiamos por paz, mas frequentemente oferecemos conflito. Desejamos amor, mas semeamos o rancor. E, mesmo assim, insistimos em afirmar que o defeito está no outro, que ele é o culpado. Exigimos que aceitem nossas imperfeições, enquanto cobramos do outro aquilo que, muitas vezes, não conseguimos oferecer.
Esperamos que o outro seja comoum anjo — sem vontades, sem desejos próprios —, apenas um servo da nossa segurança emocional. No entanto, ser autêntico, dizer “não” a quem se ama, ou indignar-se diante de atitudes injustas, não nos torna inimigos. Pelo contrário: isso é maturidade. É amor que não se acomoda, mas cresce.
Relacionamentos humanos são construídos entre pessoas distintas, com histórias, ideias, dores e alegrias únicas. Muitas vezes, reclamamos do excesso ou da ausência de cuidado do outro, sem perceber que também exageramos ou faltamos. Enfim, somos humanos. E, como tais, temos o direito — e o dever — de buscar caminhos para nossos próprios conflitos. Não é justo cobrar o que não damos, nem esperar que o outro seja uma espécie de “anjo da guarda” que nos acompanha em silêncio, engolindo tudo sem questionar.
Aliás, até os anjos, segundo a tradição religiosa, têm a missão de advertir. Não são bonecos decorativos nem sombras obedientes. Nos alertam sobre escolhas erradas. Mas preferimos não escutar, como se fossem apenas presságios ou intuições vagas.
E aqui vale lembrar: um dia houve um anjo que, fascinado por sua própria beleza e luz, quis ocupar o lugar de Deus. Não suportou ser apenas uma criatura entre outras — desejava ser adorado, desejava que sua vontade fosse absoluta, que sua luz ofuscasse todas as demais. Esse anjo, tomado por orgulho, não queria servir: queria ser servido. Não queria comunhão: queria domínio. E ao tentar impor sua grandeza acima da humildade, transformou a própria luz em sombra, e foi precipitado no abismo que ele mesmo cavou com sua vaidade.
Esse anjo representa mais do que uma figura teológica: ele é o espelho dos nossos egos inflados. Sempre que nos recusamos a reconhecer o outro como legítimo em sua diferença, sempre que exigimos centralidade, aplauso, controle absoluto sobre os afetos e ações alheias, encenamos esse mesmo drama celeste. Tentamos nos tornar “deuses” nos relacionamentos, desejando que o outro orbite ao nosso redor — sem crítica, sem vontade, sem voz. Mas todo ego que se pretende absoluto é, no fundo, um precipício disfarçado de trono.
Enquanto esse anjo caía por tentar subir demais, Cristo, sendo Deus, escolheu descer: esvaziou-se de sua glória (cf. Fl 2,6-8), tomou a forma de servo, e mostrou que a verdadeira grandeza está em se entregar. Amar é descer do trono do ego e sentar-se à mesa da partilha.
Temos o péssimo hábito de querer que o outro se encaixe no nosso ideal, moldando-o com críticas: se é gordo ou magro, solteiro ou casado, religioso ou não. Esquecemos de nos olhar no espelho e avaliar nossas próprias condutas. E não se trata apenas de um espelho de vidro, mas daquele que nos mostra as sombras que escondemos. Quem se recusa a olhar para si vive de projetar no outro aquilo que teme encarar.
Se alguém nos liga, reclamamos; se não liga, também nos queixamos. Se somos cuidados, achamos sufocante; se nos faltam, nos vitimizamos. Até quando viveremos essa gangorra emocional? Quantas vezes exigimos do outro o que nós mesmos não ousamos entregar? Até quando tentaremos ser deuses nos afetos, sem assumir a humildade de simplesmente amar?
Como nas avenidas, em que há tráfego nos dois sentidos, os relacionamentos também são assim: se você oferece amor, receberá amor. Se transmite insegurança e desconfiança, é isso que colherá. Se não aceita os defeitos do outro, também não terá os seus aceitos. Essa é a lei da vida.
Se você permite que todos decidam por você, ignorando os valores que moldaram seu caráter, sua vida poderá parecer exemplar — mas talvez esteja imitando aquele anjo que, em nome da própria virtude, desejou ser mais que Deus. Há um tipo de “virtude” que se disfarça de luz, mas carrega orgulho e controle.
Somos homens e mulheres guiados por emoções, e essas emoções podem nos elevar ou nos arruinar. É isso que nos diferencia dos anjos. Saber conduzir esse turbilhão emocional pode nos tornar mais humanos e, quem sabe, mais próximos do divino.
Amar alguém não deve nos anular, nem nos transformar em zumbis emocionais. Amar é corresponsabilidade: uma troca consciente, constante e real. Quem ama só pode cobrar aquilo que está disposto a oferecer. Se você faz o outro sofrer, inevitavelmente também sofrerá. Se provoca lágrimas, também chorará. A vida é uma via de mão dupla — e a sinalização é feita pelas nossas atitudes.
Os conflitos surgem quando, no meio dessa via, o outro freia bruscamente ou você invade o espaço dele. Não somos imortais, nem anjos, e o conflito emocional constante pode nos matar aos poucos. Morremos emocionalmente — matamos nossos sonhos, nossos desejos, nossa felicidade — e nos tornamos zumbis sociais, reféns das expectativas alheias.
Precisamos de alteridade. Precisamos romper o ciclo da infantilidade — e seguir quem realmente somos, enfrentando nosso orgulho, nossa carência, nossa imaturidade. A felicidade começa quando deixamos de esperar um anjo ao nosso lado e aceitamos o humano que caminha conosco. Ainda é tempo de parar na beira da estrada, rever a rota e seguir mais leves — sem exigir asas do outro, mas oferecendo mãos.
DNonato – Graduado em História, teólogo do cotidiano, indigente do sagrado.
“Todo ego que se pretende absoluto é, no fundo, um precipício disfarçado de trono.”
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