O evangelista Lucas situa a cena no “sexto mês” da gravidez de Isabel, para indicar que as histórias não caminham isoladas, mas se entrelaçam. A salvação não se dá em solitários atos individuais, mas em encontros, relações e solidariedades. Deus costura histórias, conecta pessoas, cria sinfonias de destinos. O anjo não vai ao templo de Jerusalém nem ao palácio imperial, mas a Nazaré, uma aldeia desprezada, de onde Natanael dirá: “Pode vir algo bom de Nazaré?” (Jo 1,46). Esse detalhe contém uma denúncia sociológica: Deus não legitima os centros de poder, mas começa nas periferias. Como Paulo dirá: “Deus escolheu o que é fraco para confundir os fortes” (1Cor 1,27). Nazaré é símbolo de marginalidade, e é aí que germina a nova história.
A saudação do anjo ecoa as promessas de Sofonias 3,14-17: “Exulta, filha de Sião, o Senhor está no meio de ti”. Maria é a nova Sião, não templo de pedras, mas templo vivo. O termo grego kecharitomene é único: Maria é a agraciada, não apenas no momento, mas em estado permanente. Isso não a torna passiva, mas profundamente livre, pois a liberdade autêntica nasce da confiança no amor que nos precede. Aqui há uma chave psicológica: liberdade não é isolamento ou independência absoluta, como sugere o mundo moderno, mas relação, confiança, entrega. Maria não inventa um projeto, mas acolhe um projeto que lhe é confiado. E nesse acolhimento, sua liberdade floresce plenamente.
Esse chamado de Maria se insere na longa tradição bíblica dos chamados que começam com temor e terminam em missão. Moisés diante da sarça ardente (Ex 3,11), Isaías no templo (Is 6,5), Jeremias alegando juventude (Jr 1,6), Gideão escondido no lagar (Jz 6,12). Zacarias, no mesmo capítulo de Lucas, duvida e fica mudo (Lc 1,20). Maria, ao contrário, pergunta para compreender, mas não rejeita. Sua pergunta lembra a de Abraão quando Deus promete o impossível (Gn 15,8). Sua resposta – “Eis-me aqui” – ecoa o de Abraão (Gn 22,1), de Samuel (1Sm 3,10), de Isaías (Is 6,8). É um sim que sintetiza a resposta da humanidade inteira ao chamado de Deus. Mas não é um sim ingênuo. Historicamente, uma jovem virgem prometida em casamento, grávida sem coabitar, corria risco de exclusão social e até apedrejamento (Dt 22,23-24). O sim de Maria é ato de coragem que assume a vulnerabilidade. Fé não é anestesia, mas ousadia. Não há promessa de riquezas, mas de espada que traspassará sua alma (Lc 2,35). Aqui se desmonta a mentira da teologia da prosperidade e do domínio: fé não é mercadoria, nem blindagem contra sofrimentos, mas força para atravessá-los.
O anúncio tem ainda dimensão política. O anjo proclama que o filho de Maria herdará o trono de Davi e reinará para sempre. Roma também tinha seu evangelho: o nascimento de César era celebrado como boa notícia, César era chamado “filho de deus” e “senhor”. Lucas subverte a ideologia imperial: o verdadeiro Filho de Deus nasce no ventre de uma jovem anônima. Isso é denúncia contra toda idolatria política, ontem e hoje. Hoje, quando a extrema-direita tenta instrumentalizar a fé para legitimar autoritarismo, desigualdade e nacionalismo religioso, a Anunciação proclama que o Reino de Deus não se confunde com nenhum império, nem com projetos de poder, mas é serviço, justiça e proximidade. O Magnificat (Lc 1,46-55) será a confirmação disso: um hino de libertação que derruba os poderosos e exalta os humildes. Celebrar Maria Rainha não é coroá-la de ouro, mas reconhecer que sua realeza é a do serviço e da ternura que desestabilizam os tronos da opressão.
Maria é interpelada pelo Tu absoluto e responde como sujeito livre. Emmanuel Lévinas veria nesse chamado a epifania do rosto do Outro que nos convoca à responsabilidade. Hannah Arendt lembrava que todo nascimento é categoria da esperança: em cada criança nasce a possibilidade de um mundo novo. No ventre de Maria, nasce o próprio Deus, instaurando a esperança radical. Psicologicamente, Maria integra medo e confiança: ela não reprime a angústia, mas a transforma em entrega. Jung falaria de integração do inconsciente, Erik Erikson chamaria de confiança fundamental, Viktor Frankl diria que ela encontrou sentido diante do absurdo. Antropologicamente, a cena é subversão cultural: numa sociedade patriarcal, uma jovem da periferia é protagonista da história da salvação. A encarnação é também revolução social: o feminino assume centralidade. Santo Irineu chamou Maria de nova Eva. Santo Agostinho afirmou que ela concebeu primeiro no coração, pela fé. Santo Atanásio escreveu que o Filho de Deus se fez homem para que nós nos tornássemos deuses (De Incarnatione 54,3). Santo Efrém cantou que “o ventre de Maria expandiu os céus”. São Bernardo de Claraval dizia que o mundo inteiro esperava a resposta dela, e no seu sim estava a salvação do gênero humano. Orígenes via nesse diálogo a imagem da alma que se abre à Palavra. Toda a tradição reconheceu: em Maria, o humano e o divino se entrelaçam inseparavelmente.
A Igreja reforça essa compreensão. O Concílio Vaticano II, em Lumen Gentium (n. 63), apresenta Maria como tipo e modelo da Igreja: o que nela se realizou de modo pleno é sinal do que somos chamados a viver. A Gaudium et Spes (n. 67) lembra que a dignidade humana se cumpre na corresponsabilidade. A Evangelii Gaudium (n. 288) convida a aprender com Maria a deixar o Espírito conduzir a vida. A Fratelli Tutti (n. 278) a contempla como mãe universal que tece pacientemente uma humanidade nova. João Paulo II, na Redemptoris Mater (n. 13-15), lembra que Maria foi a primeira a viver a fé pascal, acompanhando o Filho até a cruz. Paulo VI, na Marialis Cultus, recorda que a liturgia sempre apresenta Maria como ícone do discipulado, não como deusa distante, mas como mulher próxima e solidária.
O texto da Anunciação também é denúncia contra o clericalismo. Deus não escolhe o sacerdote do templo, mas uma jovem leiga da periferia. O clericalismo, tantas vezes denunciado pelo Papa Francisco, sufoca a Igreja e reduz a graça a privilégio de poucos. A Anunciação mostra o contrário: o Espírito sopra onde quer, inclusive fora dos esquemas clericais e dos palácios episcopais. Maria é modelo da Igreja povo de Deus, não de uma elite distante.
Por tudo isso, a memória de Maria Rainha não é coroação de poder, mas exaltação do serviço. Sua coroa é o Magnificat, seu trono é a cruz, sua glória é a fidelidade. Como dizia São Romero: “Ninguém pode celebrar a Eucaristia se não se compromete com os pobres”. O reinado de Maria é o reinado dos pobres exaltados, dos famintos saciados, dos humildes reconhecidos. Por isso, diante do anjo, diante do mundo, diante da vida, cada um de nós é chamado a dizer também o nosso “Eis-me aqui”. Não ao mercado que nos quer consumidores, não ao clericalismo que sufoca, não à fé transformada em show, não ao individualismo que isola. Mas sim ao Deus que chama à vida comunitária, à justiça, ao serviço, à paz.
O anjo ainda hoje visita nossas periferias e nossas casas, e Deus continua a nascer no escondido. A questão é se ousamos responder como Maria: “Eis a serva do Senhor, faça-se em mim segundo a tua Palavra”. É esse sim, fecundo e corajoso, que continua sendo capaz de transformar a história e de coroar a humanidade com esperança.
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✍️ DNonato – Teólogo do Cotidiano
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