No relato de Lucas, vemos Jesus rodeado de multidões vindas de várias cidades. Este contexto evidencia que a parábola não é apenas um ensinamento individual, mas uma instrução comunitária: a Palavra é semeada em meio a um povo diverso, cada pessoa trazendo seu solo interior. A tradição veterotestamentária ecoa nesta cena: o “Shema Israel” convoca todo o povo a ouvir a Palavra e guardá-la no coração (Dt 6,4-6). Jeremias denunciava a cegueira e a surdez do povo diante de Deus (Jr 6,10), enquanto Ezequiel prometia o coração de carne que substituiria o coração de pedra (Ez 36,26). Isaías afirma: “Escutai-me, vós que buscais a justiça, que buscais o Senhor; olhai para a Rocha da vossa salvação” (Is 51,1-2). A parábola de Lucas, portanto, se insere nessa tensão entre rejeição e acolhida, entre dureza e transformação, lembrando a advertência de Provérbios: “Como a água reflete o rosto, o coração do homem reflete o homem” (Pv 27,19).
O semeador representa Jesus e todos os que anunciam o evangelho; a semente é a Palavra de Deus. Os diferentes tipos de solo representam as atitudes e disposições do coração humano. À beira do caminho, o solo endurecido simboliza aqueles que ouvem, mas não compreendem; o maligno rapidamente rouba a semente. Esse solo lembra a advertência de Jeremias: “O coração engana mais que tudo, e está incurável; quem o conhecerá?” (Jr 17,9). Nas pedras, o solo raso reflete a fé inicial e superficial que não resiste às provas (cf. Sl 1,4-5; Mt 13,20-21). Entre os espinhos, a Palavra é sufocada pelas preocupações e pelos prazeres do mundo (Lc 21,34; 1Tm 6,9-10). Apenas o solo fértil acolhe a semente com perseverança, permitindo que dê frutos abundantes. Que solo temos dentro de nós? Essa é a pergunta que a parábola nos lança como um espelho: quantos corações, ocupados por redes sociais, contas a pagar, disputas de poder ou idolatria ao consumo, impedem que a Palavra cresça?
Os sinóticos ampliam essas nuances: Mateus enfatiza o entendimento, repetindo a palavra “compreender” diversas vezes e acrescentando o detalhe da colheita que produz trinta, sessenta e cem por um (Mt 13,8), evidenciando a superabundância do Reino. Marcos enfatiza que o semeador lança a semente e ela cresce por si só, sem que o agricultor controle o processo (Mc 4,26-29), mostrando a ação misteriosa e eficaz da graça. Assim, os três evangelistas dialogam entre si, oferecendo múltiplas perspectivas sobre o mesmo mistério: a fecundidade da Palavra depende do solo, mas a semente é sempre poderosa.
A leitura de Lucas nos convida à introspecção. O solo à beira do caminho lembra a dureza do faraó diante da Palavra (Ex 7,13-14) e daqueles cuja mente foi cegada pelo “deus deste século” (2Cor 4,4). O solo pedregoso remete à multidão que aclama Jesus em Jerusalém e, pouco depois, o rejeita (Mt 21,9-22; Jo 12,37-43). O solo cheio de espinhos nos alerta para os apegos, preocupações e riquezas que sufocam a Palavra, como a história do jovem rico que partiu triste diante do chamado de Jesus (Lc 18,23). O solo fértil, por fim, reflete a meditação constante da Lei do Senhor, como o salmista exalta: “Feliz o homem que medita a lei do Senhor dia e noite; ele é como árvore plantada junto a correntes de água” (Sl 1,1-3). Maria é a personificação desse solo: ela guardava e meditava todas essas coisas em seu coração (Lc 2,19), permitindo que a semente germinasse em silêncio e profundidade.
Paulo ilumina a parábola com sua visão do ministério: “Um planta, outro rega, mas é Deus quem dá o crescimento” (1Cor 3,6). Ele acrescenta: “Quem semeia pouco, pouco colherá; quem semeia com generosidade, com generosidade também colherá” (2Cor 9,6). A Palavra é viva e eficaz, penetrando até o mais íntimo do ser humano (Hb 4,12). O solo fértil é aquele que se deixa moldar pelo Espírito, lembrando as palavras de Paulo: “Não vos conformeis com este mundo, mas transformai-vos pela renovação da mente” (Rm 12,2). A fecundidade não depende do esforço humano sozinho, mas da cooperação com a graça. Quando a fé é tratada como mercadoria, o solo humano se torna terreno estéril, coberto por espinhos invisíveis que sufocam o Espírito (Mt 6,24; Tg 1,6-8).
A tradição patrística reforça essas lições. Orígenes recorda que cada ser humano contém em si estrada, pedra, espinho e terra boa; o crescimento espiritual é um processo de transformação gradual. Agostinho afirma que apenas o Espírito torna o solo humano fecundo; João Crisóstomo adverte sobre a sutileza dos espinhos, que corroem lentamente a fé. Gregório Magno enfatiza a necessidade de perseverança e de atenção constante à Palavra. A patrística nos ensina que a parábola não serve para julgar outros, mas para confrontar o próprio coração.
A análise sociológica revela que o solo não é apenas individual, mas também comunitário. Estruturas sociais injustas — desigualdade, exclusão, violência — criam condições para que a Palavra seja sufocada. A teologia da prosperidade, do domínio e da fé-mercadoria distorce a linguagem da semente, transformando graça em transação. O individualismo impede a maturação do solo; a fé não é produto de consumo, mas dom a ser cultivado em comunidade. Clericalismo, quando tenta monopolizar a semente, torna-se caminho de esterilidade; o verdadeiro semeador é Cristo, e nós somos servos cooperadores.
Os documentos da Igreja ecoam esse chamado. Gaudium et Spes denuncia a idolatria do lucro e do consumo, que sufoca a vida espiritual; Evangelii Gaudium sublinha a missão alegre e gratuita da Palavra; Fratelli Tutti alerta para os espinhos da divisão e da indiferença social. A colheita final não é apenas moral ou ética, mas escatológica: “Quem tem ouvidos para ouvir, ouça” (Lc 8,8), lembrando a advertência de Apocalipse: “Quem tem ouvidos, ouça o que o Espírito diz às Igrejas” (Ap 2,7).
Há, portanto, uma dimensão escatológica: a colheita é imagem do juízo e da plenitude do Reino (Mt 7,16; Jo 12,24; Ap 14,14-16). Os que semeiam entre lágrimas ceifarão com alegria (Sl 126,5-6); a árvore da vida dará frutos doze vezes ao ano, e suas folhas servirão de remédio para os povos (Ap 22,2). O salmista lembra ainda: “A justiça do justo permanece para sempre, e a memória dele é bendita” (Sl 112,6). A parábola começa no campo da Galileia e culmina na restauração cósmica da criação. A Palavra cai como chuva suave sobre o coração fértil; floresce entre lágrimas e sol, transformando o silêncio em canto.
A dimensão antropológica e psicológica nos mostra que cada ser humano é um mosaico de experiências e memórias, que podem endurecer o solo ou enriquecê-lo. A meditação, a disciplina, a oração e a vivência comunitária atuam como regadores da fé. A filosofia, por sua vez, nos ensina que o autoconhecimento é fundamental para perceber qual tipo de solo habitamos: a ignorância do próprio coração impede a germinação da Palavra (cf. Sócrates: “Conhece-te a ti mesmo”).
Assim, a parábola do semeador nos desafia: preparar o coração, arrancar os espinhos, suportar o sol, perseverar no cuidado e confiar no mistério. A semente é lançada generosamente, mas os frutos dependem do solo que cultivamos. Que cada coração que recebe a semente torne-se campo fértil, produzindo frutos de amor, justiça, fraternidade e santidade, para que o Reino aconteça aqui e agora, porque “se o grão de trigo não morre, fica só; mas se morre, produz muito fruto” (Jo 12,24).
DNonato – Teólogo do Cotidiano
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