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domingo, 14 de setembro de 2025

Um breve olhar sobre 19, 25-27, Memória da Bem-aventurada Virgem Maria das Dores.

A contemplação da dor de Maria ao pé da cruz é celebrada na Memória da Bem-aventurada Virgem Maria das Dores, instituída liturgicamente para honrar a coragem e a fidelidade da Mãe de Jesus diante do sofrimento. Esta memória remonta à tradição devocional consolidada nos séculos XVII e XVIII, especialmente com a prática do culto das Sete Dores de Maria, que sublinha sua participação ativa e profética na história da salvação. Oficialmente, a Igreja celebra esta memória em 15 de setembro, proporcionando aos fiéis a oportunidade de refletir sobre a profundidade da dor materna unida à obediência e à fidelidade à vontade divina.

O texto de João 19,25-27 é proclamado em diversas celebrações litúrgicas, principalmente durante a Sexta-feira Santa, na Liturgia da Paixão, e em memórias marianas específicas, permitindo contemplar a fidelidade silenciosa de Maria e o cuidado fraterno que ela inspira no novo povo de Deus.

Maria, mãe de Jesus, representa o povo da antiga aliança que se manteve fiel às promessas divinas, aguardando o Messias com esperança ativa. Sua fidelidade ecoa figuras do Antigo Testamento: Ana orava ao Senhor com lágrimas, confiando na promessa que transcende a esterilidade e o sofrimento humano; Raquel chorava seus filhos buscando consolação divina; Miriã conduzia o povo com coragem no deserto, lembrando que Deus caminha com o seu povo; Jeremias clamava ao Senhor no meio da dor, enquanto Sofonias anunciava a restauração que viria mesmo na humilhação do povo. Isaías descreve o Servo sofredor, ferido por nossas transgressões, enquanto Gênesis 3,15 anuncia a descendência da mulher que derrotaria o mal, prefigurando Maria como nova Eva. Jeremias 31,15 ecoa o lamento materno, e os Salmos, em toda a sua riqueza, registram o sofrimento e a esperança: Salmo 22 descreve a angústia do justo, antecipando a cruz; Salmo 34 lembra que muitas são as aflições do justo, mas o Senhor o livra; Salmo 126 celebra a restauração e o retorno da esperança; Salmo 31 reforça a confiança em meio à perseguição; Salmo 73 evidencia que a fidelidade se revela apesar da prosperidade dos ímpios; e Salmo 130 recorda que o Senhor ouve o clamor do justo, transformando a dor em libertação. Lamentações 1 e 3 apresentam o remanescente fiel que persiste na esperança. Miquéias 5,2 aponta Belém como cidade do Salvador, e Habacuque 3,17-19 reforça a confiança no Senhor mesmo diante da escassez e do sofrimento. Isaías 7,14 e 9,5-6 anunciam a vinda do Emanuel, e o livro de Sabedoria destaca que Deus protege os humildes e transforma a dor em justiça. Eclesiastes lembra que há tempo para cada coisa, incluindo sofrimento e consolo, e que o temor do Senhor é princípio de toda sabedoria.

O discípulo amado representa o novo povo de Deus, formado não por laços de sangue, mas pela adesão consciente a Cristo. Ao receber Maria como mãe, ele incorpora o antigo povo na nova aliança, cumprindo a unidade descrita em Gálatas 3,28: “Não há judeu nem grego, escravo nem livre, homem nem mulher; todos são um em Cristo Jesus.” João revela que a fidelidade à promessa se realiza na comunhão e no cuidado mútuo, ligando passado e futuro, sofrimento e esperança, antigo e novo povo de Deus.

Nos sinóticos, Mateus 27,55 registra mulheres “de longe, observando”, Lucas 23,49 afirma que “permaneciam ali, observando”, e Marcos 15,40 lembra que eram aquelas que acompanharam Jesus desde a Galileia. Essas mulheres silenciosas e constantes revelam que a fidelidade não se mede pela visibilidade ou pelo protagonismo, mas pelo compromisso, pelo cuidado e pela presença persistente.

A experiência humana, integrando sofrimento e ação. Maria demonstra que a fidelidade é presença ativa, que não se limita ao lamento, mas que se manifesta na permanência e no cuidado. A sociologia e a antropologia destacam que, em contextos patriarcais, sua presença representa resistência cultural: Maria ocupa o espaço do cuidado, da memória e da transmissão da promessa, mostrando que o sofrimento vivido em comunhão gera solidariedade, justiça e transformação social.

O gesto de Jesus ao entregar sua mãe ao discípulo amado revela uma ética relacional profunda: a verdade do ser humano se manifesta na responsabilidade pelo outro. Esta é uma crítica direta às teologias da prosperidade, do domínio, do individualismo e da fé como mercadoria, que reduzem a experiência religiosa a lucro, status ou poder. Maria e o discípulo amado lembram que a fidelidade exige abertura, cuidado e compromisso, não espetáculo ou exibição de poder.

Santo Irineu observa que Cristo “recaptura a humanidade inteira”, e a união com Ele transforma toda a criação, mostrando que a fidelidade de Maria é ato de restituição e reconciliação universal. Orígenes enfatiza que Maria, junto à cruz, revela a profundidade do amor divino e a potência da obediência que gera vida. São João Crisóstomo destaca que o discípulo amado assume responsabilidade e comunhão, evidenciando que a salvação não é individual, mas relacional. Santo Ambrósio identifica Maria como figura do novo Éden, onde o sofrimento se transforma em esperança e a fidelidade em testemunho da promessa. Tertuliano ressalta a dimensão ética do cuidado mútuo, indicando que Maria e o discípulo amado antecipam a missão da Igreja como corpo unido e solidário. 

Historicamente, a presença de Maria ao pé da cruz revela a centralidade das mulheres na preservação da memória e da tradição, subvertendo estruturas de poder que tentam silenciá-las. Sua fidelidade silenciosa confronta diretamente as teologias que prometem riqueza, dominação ou prestígio em vez de vida, solidariedade e amor ao próximo. Os documentos da Igreja reforçam a dimensão comunitária e profética: Lumen Gentium descreve Maria como modelo de fé, esperança e caridade; Redemptoris Mater destaca que ela se une ao sofrimento de Cristo, tornando-se mãe de todos, convocando à solidariedade; o Papa Francisco enfatiza que a Igreja cresce no serviço humilde, alertando contra o clericalismo que transforma a fé em status ou exclusão. O Antigo Testamento amplia a meditação: além dos Salmos e Isaías, os profetas menores como Naum, Sofonias, Amós, Habacuque, Oséias e Joel denunciam injustiças e lembram que Deus protege os humildes e remanescentes fiéis. Jeremias 31,31-34 revela a nova aliança que se cumpre em Cristo; Ezequiel 36 anuncia a purificação e renovação do coração. Provérbios, Eclesiastes e Sabedoria enfatizam discernimento, paciência e temor do Senhor. No Novo Testamento, Lucas 2,34-35 anuncia a espada que traspassará a alma de Maria; Mateus 2,13-18 lembra a fuga para o Egito e o massacre dos inocentes; Atos 1,14 registra Maria com os discípulos em oração após a Ascensão; Romanos 8,35-39 afirma que nada separa os fiéis do amor de Deus; 1Coríntios 12,12-27 reforça a imagem do corpo unido, no qual Maria e o discípulo amado simbolizam cuidado e unidade; Hebreus 12,1-2 lembra de perseverar na fé olhando para Jesus; Apocalipse 12 apresenta a mulher vestida de sol, símbolo de Maria, acompanhando o drama da história da salvação; Filipenses 2,5-11 revela a união de obediência e humildade que Maria encarna; Colossenses 1,24-27 mostra a Igreja como corpo de Cristo, onde cada sofrimento é redentor e comunitário. O Apocalipse projeta a dimensão escatológica: “Eis que a tenda de Deus está com os homens” (Ap 21,3). Maria simboliza essa tenda que acolhe a humanidade em sofrimento, antecipando a comunhão plena com Deus. Sua fidelidade transforma a dor em esperança, a morte em vida, preparando a consumação do plano divino.

Refletindo sobre João 19,25-27, percebemos que a Boa Nova de Jesus Cristo não se realiza na exibição, no lucro, na dominação ou na fé individualista. Ela se manifesta na fidelidade concreta, na presença junto aos crucificados da história, no cuidado pelo outro e na comunhão que transcende gerações. Maria das Dores permanece como sinal de esperança e resistência, e o discípulo amado como modelo de responsabilidade compartilhada, lembrando-nos que a verdadeira herança da promessa não se mede em riquezas, poder ou reconhecimento, mas na capacidade de permanecer, sofrer e amar com fidelidade.

A união entre antigo e novo povo, entre sofrimento e promessa, entre mãe e filho, revela que a história da salvação é contínua e relacional: os fiéis de ontem e de hoje se encontram na cruz e são chamados a viver a fidelidade não como ritual vazio, mas como prática transformadora da vida. Somos convidados a olhar para nossas próprias cruzes, para os sofrimentos alheios, e reconhecer que cada gesto de cuidado, cada permanência no sofrimento e cada ato de solidariedade é uma participação na missão de Cristo.

O texto de João 19,25-27 situa-se no momento culminante da paixão de Cristo, no Calvário, quando o Filho é pregado à cruz e a morte se aproxima. João apresenta a cena com um cuidado minucioso, diferente dos sinóticos: ele enfatiza a presença das mulheres e a relação entre Jesus, sua mãe e o discípulo amado, revelando camadas teológicas profundas. O evangelista descreve: “Junto da cruz de Jesus estavam sua mãe, a irmã de sua mãe, Maria, mulher de Clopas, e Maria Madalena.”

Este detalhe já revela múltiplas dimensões. Primeiro, Maria não está sozinha; ela está cercada por mulheres que representam a continuidade do antigo povo, a memória das promessas e a fidelidade que não se abate diante da dor. A menção das demais mulheres indica a dimensão comunitária do sofrimento, mostrando que a cruz não é uma experiência individual, mas compartilhada. A presença de Maria Madalena, aquela que seguiu Jesus desde o início de seu ministério, simboliza os discípulos que permanecem mesmo quando tudo parece perdido, ecoando a perseverança de figuras do Antigo Testamento que mantiveram esperança diante da adversidade, como Ana, Débora e Abigail.

Em seguida, João destaca o gesto de Jesus: “Vendo sua mãe e perto dela o discípulo a quem amava, disse à mãe: Mulher, eis aí teu filho. Depois disse ao discípulo: Eis aí tua mãe.” Esta simples declaração contém uma densidade teológica impressionante. Jesus, no momento da própria morte, organiza relações humanas, transfere responsabilidades e cria vínculos que ultrapassam os laços biológicos. Ele entrega sua mãe à proteção do discípulo amado e, ao mesmo tempo, confere a todos os seguidores de Cristo a responsabilidade de acolher Maria como mãe, indicando que a comunidade de fé nasce da comunhão e do cuidado mútuo.

O termo “mulher”, usado por Jesus, é carregado de significado. Não é uma forma distante, mas uma expressão de respeito profundo, que a reconhece como figura de fé e testemunho. Ao chamá-la “mulher”, Jesus remete à linguagem simbólica da Escritura: a mulher é figura do povo de Deus, do remanescente fiel, da nova Eva que participa ativamente na obra de salvação, cumprindo a promessa de Gênesis 3,15.

O discípulo amado, por sua vez, representa todos os que aderem a Cristo em liberdade e fé. Ao receber Maria como mãe, ele incorpora o antigo povo na nova aliança, tornando-se mediador da continuidade entre promessa e cumprimento, entre Antigo e Novo Testamento. Este gesto profético antecipa a missão da Igreja: cuidar, proteger, educar na fé, viver a comunhão.

João descreve a cena com economia de palavras, mas cada elemento é simbólico. A posição junto à cruz indica proximidade e fidelidade. A ordem das palavras mostra intencionalidade: primeiro Maria, depois o discípulo. A dor de Maria é central, mas não é descrita em termos de sofrimento passivo; ela é ativa na contemplação, na fidelidade e na entrega à vontade de Deus. Este foco revela o papel de Maria como mediadora e modelo de adesão ao plano divino, cumprindo a função do remanescente fiel do Antigo Testamento, que manteve esperança e obediência em meio às adversidades. O evangelista não menciona dor física, mas a dor espiritual e emocional é implícita e profunda. A espada que atravessa a alma de Maria, anunciada em Lucas 2,35, se cumpre aqui: cada gesto de Jesus a toca, cada palavra exige dela fidelidade ativa. Maria permanece firme, testemunhando que a fé não é fantasia ou conforto, mas compromisso que se mantém mesmo diante da morte.

A cena de João 19,25-27 também serve como crítica implícita a qualquer compreensão distorcida da fé. Ela denuncia a fé como mercadoria, a religião como poder ou espetáculo, o individualismo que ignora o sofrimento do outro. Jesus, ao criar vínculos de cuidado, subverte as lógicas de dominação e prosperidade, indicando que a verdadeira salvação se manifesta na presença, na solidariedade e na comunhão.

O texto revela ainda um profundo aspecto antropológico e psicológico: Maria representa a capacidade humana de permanecer junto ao sofrimento sem ceder à desesperança; o discípulo amado mostra a dimensão relacional da vida humana, na qual cada um é responsável pelo outro. Historicamente, a narrativa evidencia o papel das mulheres como guardiãs da memória, mantenedoras da fé e sustentáculo da comunidade, desafiando estruturas patriarcais que tentam silenciá-las.

Assim, João 19,25-27 não é apenas relato histórico: é catequese teológica e ética, modelo de espiritualidade, referência comunitária e convite à ação. Cada palavra, cada gesto, cada presença ilumina a relação entre sofrimento, promessa, fidelidade e cuidado, convidando o leitor a assumir seu papel no corpo de Cristo, mantendo a esperança, a solidariedade e a fidelidade ao plano divino.

A contemplação de Maria ao pé da cruz nos desafia: não é suficiente professar fé ou repetir palavras; é preciso viver, sofrer, amar e permanecer. É preciso transformar o lamento em esperança, a dor em ação e a fidelidade em testemunho. João 19,25-27 nos lembra que a Boa Nova de Jesus se realiza na presença ativa, na responsabilidade compartilhada e na continuidade da promessa de Deus, revelando o caminho de uma fé orgânica, profética, comunitária e verdadeiramente libertadora, que não se limita ao sagrado, mas se derrama no mundo, tocando a vida dos mais vulneráveis, reconstruindo comunidades e restaurando corações.

DNonato - Teólogo do Cotidiano 

sábado, 13 de setembro de 2025

Um olhar sobre João 3,13-17 - Festa da Exaltação da Santa Cruz

A festa da Exaltação da Santa Cruz, celebrada em 14 de setembro, é um mergulho no mistério paradoxal da fé cristã: aquilo que aos olhos do mundo parecia derrota, humilhação e fim, torna-se sinal de vitória, amor e vida plena, tem a seguinte liturgia: a   1ª leitura Números 21,4b-9;Salmo 77(78),1-2.34-35.36-37.38 (R. cf. 7c); a 2⁰ leitura Filipenses  2,6-11 e Evangelho  de  João 3,13-17 que iremos aprofundar

A primeira leitura (Nm 21,4b-9) recorda a serpente de bronze erguida por Moisés no deserto, pela qual o povo, ao olhar, era curado do veneno da serpente. É um anúncio simbólico: quem contempla com fé o Crucificado encontra salvação e cura para as feridas mais profundas da existência.O hino de Filipenses (2,6-11) mostra a dinâmica da cruz: Cristo, sendo Deus, não se apegou a sua condição divina, mas esvaziou-se, assumindo nossa humanidade até a morte de cruz. Essa humilhação, porém, não é fracasso, mas caminho para a exaltação, pois é no amor radical e na entrega total que Deus manifesta sua glória.

A liturgia deste dia, portanto, não celebra o sofrimento em si, mas a transformação da cruz em fonte de esperança. Olhar para a Cruz é olhar para o amor extremo de Deus, que se faz frágil por nós e nos abre um horizonte de vida e ressurreição.



A Festa da Exaltação da Santa Cruz, tem uma origem que remonta ao século IV, ligada à dedicação da Basílica do Santo Sepulcro, em Jerusalém, construída por ordem do imperador Constantino, após a descoberta da cruz por sua mãe, Helena. Não se trata de um culto à cruz como objeto material, mas da memória viva e celebrativa do mistério pascal: a cruz é exaltada porque nela Cristo não apenas sofreu, mas venceu o pecado e a morte, transformando o que era sinal de humilhação em fonte de vida nova. A liturgia deste dia proclama o Evangelho de João 3,13-17, passagem que coloca em palavras a síntese do amor de Deus: “Deus amou tanto o mundo que deu o seu Filho unigênito, para que todo o que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna” (Jo 3,16). Aqui, a cruz é interpretada não como derrota, mas como o ápice da revelação do amor, o momento em que Deus assume o abismo da dor humana e o transforma em caminho de salvação.

A liturgia usa este texto também no 4º Domingo da Quaresma, chamado Laetare, justamente como alento no meio do caminho penitencial, recordando que o centro da fé cristã não é a dor, mas a esperança que brota da entrega de Cristo. João apresenta a cena do diálogo com Nicodemos, um mestre da Lei que procura Jesus de noite, movido pelo desejo sincero de compreender, mas ao mesmo tempo cheio de receios. A noite em João é mais que uma referência temporal: é símbolo de incerteza, de ambiguidade, de busca entre sombras (Jo 3,2). Ali, Jesus evoca a serpente erguida por Moisés no deserto (Nm 21,4-9), quando o povo, mordido pelas serpentes, recebia a vida ao olhar para o sinal levantado. O paralelo é direto: “assim como Moisés levantou a serpente no deserto, assim também o Filho do Homem deve ser levantado, para que todo o que nele crê tenha vida eterna” (Jo 3,14-15).

A cruz, portanto, é a nova serpente: sinal paradoxal, escândalo para uns, loucura para outros (1Cor 1,18), mas força de Deus para os que creem. Na carta aos Gálatas, Paulo insiste: “Quanto a mim, longe esteja gloriar-me, a não ser na cruz de nosso Senhor Jesus Cristo” (Gl 6,14). E aos Filipenses ele escreve: “Humilhou-se a si mesmo, tornando-se obediente até a morte, e morte de cruz. Por isso Deus o exaltou sobremaneira” (Fl 2,8-9). A exaltação da cruz já está inscrita no próprio movimento pascal: humilhação e glória se entrelaçam no mesmo mistério.

Nos sinóticos, a cena da crucifixão é relatada com intensidade. Marcos e Mateus sublinham o clamor de Jesus: “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?” (Mc 15,34; Mt 27,46), ecoando o Salmo 22, que começa em tom de lamento, mas termina em confiança. Lucas nos dá outra chave, mostrando o crucificado que perdoa: “Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem” (Lc 23,34) e que se entrega confiante: “Pai, em tuas mãos entrego o meu espírito” (Lc 23,46). João, por sua vez, mostra Jesus como quem reina do alto da cruz, entregando sua mãe ao discípulo amado (Jo 19,26-27) e consumando a missão: “Tudo está consumado” (Jo 19,30). A cruz é o centro da revelação: nela se encontra a justiça do Servo sofredor de Isaías 53, que levou sobre si as nossas dores e foi traspassado por causa de nossas iniquidades.

Na antropologia, toda cultura humana lida com símbolos de dor e superação. A cruz, no Império Romano, era o símbolo máximo da humilhação pública, reservado aos escravos e subversivos. Que um crucificado seja proclamado Filho de Deus é uma inversão radical da lógica social. Por isso Paulo escreve aos Coríntios: “Pregamos Cristo crucificado, escândalo para os judeus e loucura para os pagãos, mas para os que são chamados, força e sabedoria de Deus” (1Cor 1,23-24). A sociologia da religião mostra que símbolos assim podem ser instrumentalizados: quantas vezes a cruz foi usada para legitimar conquistas coloniais, cruzadas, discursos nacionalistas e até práticas de exclusão? Mas o Cristo da cruz é aquele que se identifica com os pobres e pequenos (Mt 25,31-46), que se fez servo (Mc 10,45), que não tinha onde reclinar a cabeça (Lc 9,58).

Na filosofia, Hegel dizia que a cruz revela a reconciliação dos contrários: a morte gera vida, a finitude abre para o infinito. Nietzsche, por sua vez, via na cruz um símbolo de negação da vida. Mas a teologia cristã responde que, longe de negar a vida, a cruz é a afirmação plena de que nenhuma dor é inútil quando se torna oferta de amor. O próprio Jesus declarou: “Se o grão de trigo não cair na terra e não morrer, ficará só; mas se morrer, produzirá muito fruto” (Jo 12,24). Para os Padres da Igreja, a cruz é árvore da vida. Santo Irineu já dizia: “A glória de Deus é o homem vivo, e a vida do homem é a visão de Deus”. São João Crisóstomo pregava: “A cruz é mais luminosa que o sol”. Santo Agostinho comentava: “A paixão de Cristo é suficiente para ser modelo de toda a vida” (In Ioannem, tr. 84).

O texto joanino nos convoca a romper com a visão mercantilizada da fé. A teologia da prosperidade reduz a cruz a um amuleto contra sofrimento, quando na verdade ela denuncia sistemas que geram dor. A teologia do domínio transforma a cruz em bandeira política, quando deveria ser memória da entrega gratuita. O individualismo a reduz a símbolo decorativo no peito, sem compromisso comunitário. A fé-mercadoria vende crucifixos caros, mas silencia diante dos crucificados de hoje: pobres, negros, indígenas, mulheres violentadas, jovens sem futuro, trabalhadores descartados. Mas a Escritura é clara: “Se alguém disser: ‘Eu amo a Deus’, mas odeia o seu irmão, é mentiroso” (1Jo 4,20). O clericalismo também trai a cruz: quando o clero se coloca acima do povo, esquece que o Cristo da cruz lavou os pés dos discípulos (Jo 13,14-15) e se fez servo.

O Papa Francisco denuncia isso na  Evangelii Gaudium, ao afirmar que a Igreja deve ser “casa paterna onde há lugar para todos” (EG 47), e em Fratelli Tutti, quando chama à fraternidade que rompe exclusões: “Ou nos salvamos todos, ou ninguém se salva” (FT 137). O Concílio Vaticano II, em Gaudium et Spes (63–66), recorda que o ser humano só se realiza no dom de si.

A psicologia nos mostra que a cruz toca também nossa dimensão interior. Carregar a cruz, no sentido evangélico, não é buscar sofrimento, mas aprender a lidar com nossas sombras, limites e perdas. É o convite à resiliência, à capacidade de transformar a dor em sentido, o luto em memória fecunda, a perda em solidariedade. O próprio Jesus, ao falar da cruz, convida a seguir com liberdade e entrega: “Quem quiser vir após mim, renuncie a si mesmo, tome a sua cruz cada dia e siga-me” (Lc 9,23).

A ciência histórica recorda que a festa surgiu não como devoção intimista, mas como celebração pública da vitória do cristianismo sobre a perseguição. Mas, em tempos de cristandade, o risco foi usar a cruz como símbolo de poder político. Hoje, em tempos de neoliberalismo, a cruz pode ser reduzida a símbolo de mercado religioso. Daí a necessidade de recuperar seu sentido original: não objeto de ostentação, mas sinal do amor de Deus que se esvazia e se dá.

A antropologia nos lembra que povos indígenas e africanos, ao se encontrarem com a cruz, reinterpretaram-na em chave de resistência: a cruz erguida em quilombos e aldeias não era símbolo de colonizador, mas sinal de esperança e força espiritual. A cruz, assim, pode ser ressignificada como símbolo de libertação, como eco da palavra de Jesus: “Vinde a mim, todos os que estais cansados e sobrecarregados, e eu vos aliviarei” (Mt 11,28).

Por tudo isso, a Festa da Exaltação da Santa Cruz é chamada a ser um ato de memória e profecia. Memória, porque nos recorda a raiz da fé, o amor incondicional de Deus que entrega o Filho. Profecia, porque denuncia todos os sistemas que ainda crucificam e conclama a Igreja a estar junto dos crucificados. Como dizia São Romero da América: “Se me matarem, ressuscitarei no povo”. A cruz é exatamente isso: morte e ressurreição, derrota e vitória, fragilidade e potência do amor.

Celebrar este dia é fazer a pergunta que Nicodemos fez no silêncio da noite: “Como pode ser isso?” (Jo 3,9). E ouvir de Cristo que só o Espírito pode gerar a vida nova. É perguntar-nos se estamos dispostos a deixar que a cruz não seja apenas adorno, mas critério de vida, modo de amar, compromisso com os últimos. É deixar-se iluminar pela palavra de Paulo: “A linguagem da cruz é loucura para os que se perdem, mas para nós que somos salvos é força de Deus” (1Cor 1,18). A cruz exaltada é o espelho em que a Igreja deve se olhar, não para se enfeitar, mas para se converter


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DNonato – Teólogo do Cotidiano


terça-feira, 9 de setembro de 2025

Um breve olhar sobre Lucas 6,20-26

Iniciamos esta reflexão com a palavra profética de São Óscar Romero, pronunciada em 17 de fevereiro de 1980: "Não é um prestígio para a Igreja estar bem com os poderosos. Prestígio para a Igreja é sentir que os pobres a sentem como sendo sua, sentir que a Igreja vive uma dimensão na terra, chamando todos, também os ricos, à conversão e à salvação a partir do mundo dos pobres, porque eles são unicamente os bem-aventurados."

O Evangelho de Lucas 6,20-26, proclamado no 6⁰  Domingo do Tempo Comum do Ano C e também na 23ª quarta-feira do Tempo Comum do ano ímpar, nos oferece a oportunidade de refletir profundamente sobre a verdadeira bem-aventurança e sobre os caminhos de vida que escolhemos. Esta leitura, verificada e confirmada em fontes oficiais de liturgia, nos lembra que a Igreja não é neutra: ou ela está alinhada com o Reino de Deus ou se conforma aos valores do mundo. Lucas, diferentemente de Mateus, não fala genericamente dos “pobres em espírito”, mas aponta diretamente para os pobres concretos, afirmando: “Bem-aventurados vós, os pobres, porque vosso é o Reino de Deus”. Essa distinção ilumina a centralidade da presença divina entre os marginalizados e excluídos. Essa centralidade se revela ainda mais ao analisarmos o contexto histórico e social em que Jesus proclamou essas palavras. Ele falava a pessoas oprimidas pelo jugo romano, submetidas a tributos pesados e às arbitrariedades das elites religiosas. O pobre, nesse sentido, é não apenas carente de bens, mas estruturalmente vulnerável. O termo grego ptōchos evoca total dependência e precariedade, revelando que a promessa de Jesus não é espiritualismo abstrato, mas compromisso concreto com aqueles que o mundo despreza. 

A forma literária do texto de Lucas reforça esta mensagem: quatro bem-aventuranças contrapostas a quatro “ais” denunciam a inversão de valores. Esta técnica lembra os profetas do Antigo Testamento, como Amós, que denuncia os ricos que vivem em luxo enquanto o povo sofre (Am 6,1-6), e Isaías, que critica a acumulação egoísta de bens (Is 5,8). Jeremias denuncia líderes injustos que ignoram o clamor dos necessitados (Jr 22,16), e os Salmos reafirmam que Deus ouve o clamor dos justos e marginalizados (Sl 34,7). Essas referências não apenas fundamentam o texto de Lucas, mas revelam a continuidade da opção divina pelos pobres ao longo de toda a Escritura.

Quando olhamos os paralelos sinóticos, percebemos a radicalidade desta escolha. Mateus 5,1-12 oferece uma versão espiritualizada das bem-aventuranças, enquanto Lucas não esconde o rosto real da pobreza. Marcos 10,17-27 mostra a dificuldade dos ricos em entrar no Reino, reforçando o contraste entre riqueza e entrega a Deus. Tiago 5,1-4 ecoa as palavras de Lucas ao denunciar a exploração econômica e moral, mostrando que a denúncia profética transcende culturas e épocas.

Essa perspectiva se aprofunda quando consideramos a dimensão psicológica e sociológica da mensagem. O apego desenfreado a bens e prestígio não apenas gera injustiça, mas cria vazio interior, solidão e isolamento. Viktor Frankl já demonstrava que o ser humano precisa de sentido, e não de acúmulo. Sociologicamente, a concentração de riqueza perpetua desigualdade e exclusão; antropologicamente, o ser humano é relacional, feito para viver em comunidade (Gn 2,18). Historicamente, os pobres enfrentaram múltiplas formas de opressão, evidenciando a atualidade da mensagem de Lucas.

A Patrística reforça esta leitura. Santo Ambrósio lembra que a terra foi criada em comum para todos e que o excesso é um roubo aos pobres (De Naboth). São João Crisóstomo denuncia que não partilhar os bens é roubo de vida (Homilia sobre Lázaro), enquanto Santo Agostinho, em Cidade de Deus, contrapõe o amor desordenado com o amor ordenado, mostrando o caminho ético das bem-aventuranças. Estes ensinamentos formam um fio contínuo que conecta a mensagem de Jesus à tradição da Igreja.

O Magistério contemporâneo confirma esta interpretação. O Concílio Vaticano II, em Gaudium et Spes (n.1), afirma que alegrias e sofrimentos dos pobres são também os da Igreja. Medellín (1968) denunciou a miséria coletiva, Puebla (1979) apontou os rostos concretos da exclusão, e Aparecida (2007, nn. 392-395) reafirma que a opção pelos pobres é eixo missionário. Evangelii Gaudium (n.198) adverte que sem essa opção o Evangelho perde autenticidade, enquanto Fratelli Tutti (nn.187 e 189) denuncia a exclusão e a desigualdade, mostrando que a mensagem de Lucas continua viva e urgente.

Entretanto, as falsas teologias tentam silenciar esta radicalidade. A teologia da prosperidade reduz a fé a mercadoria; a teologia do domínio legitima poder e controle; a fé-mercadoria transforma espiritualidade em espetáculo. O clericalismo cria hierarquias fechadas, afastando a Igreja dos pobres e invertendo a lógica das bem-aventuranças. Cada um desses desvios demonstra a necessidade de permanecermos atentos à autenticidade do Evangelho, colocando a justiça e a solidariedade acima do prestígio, do lucro e da autopromoção.

Historicamente, na América Latina, muitos viveram e morreram por esta fidelidade, incluindo Romero, irmã Dorothy Stang e padres e leigos comprometidos com os pobres. Eles encarnaram as bem-aventuranças e enfrentaram os “ais” do mundo, tornando-se testemunhas vivas da opção preferencial pelos pobres. Suas vidas mostram que a consolação do Reino é possível aqui e agora, na coragem de defender a justiça e a dignidade humana.

Lucas 6,20-26 nos convida à escolha radical: ou buscamos a consolação do mundo, passageira e ilusória, ou a consolação do Reino, que já começa no cotidiano de partilha e solidariedade. As bem-aventuranças são vividas em cada gesto de cuidado, denúncia profética e entrega ao outro. Isaías 32,17 assegura que “o fruto da justiça será a paz”, enquanto Apocalipse 21,4 promete que Deus “enxugará toda lágrima”, consolidando a esperança daqueles que hoje choram e sofrem. .

Assim, à luz de Lucas, da tradição profética e da voz de Romero, proclamamos com fé: bem-aventurados os pobres, porque deles é o Reino de Deus. E ai de nós, se não formos Igreja pobre e dos pobres.

DNonato – Teólogo do Cotidiano


sexta-feira, 5 de setembro de 2025

Um breve olhar sobre São Lucas 6,1-5

O texto do sábado da 22ª semana do Tempo Comum  nos coloca diante de uma cena aparentemente simples, mas profundamente reveladora do coração da fé. Jesus passa por plantações em dia de sábado, e seus discípulos colhem espigas para comer, sendo criticados pelos fariseus que os observam com olhar rígido, buscando neles a falha. A resposta de Jesus remete a Davi e seus companheiros que comeram os pães da proposição, destinados apenas aos sacerdotes, mostrando que a lei, quando se torna instrumento de exclusão, perde o seu sentido mais profundo. Este episódio, situado no capítulo 6 do Evangelho segundo São Lucas, é proclamado também em paralelo com os relatos de Mateus 12,1-8 e Marcos 2,23-28, e aparece ainda em outro contexto litúrgicos, quando se celebra a centralidade da misericórdia sobre os sacrifícios, ecoando a profecia de Oséias 6,6: “Quero amor, e não sacrifício, conhecimento de Deus, mais que holocaustos.”

Se olharmos bem, Lucas, com seu estilo peculiar, não apenas narra um incidente. Ele introduz um conflito fundamental entre uma leitura legalista da fé e uma abertura para a plenitude da vida que Jesus inaugura. Aqui se encontra o “contexto e o pretexto” da cena. O contexto imediato é o sábado, o dia de descanso, que no judaísmo é sinal da Aliança, recordação da libertação do Egito (cf. Dt 5,15) e do repouso de Deus após a criação (cf. Gn 2,2-3). O pretexto é a denúncia feita contra os discípulos: ao colher espigas e debulhá-las com as mãos, eles estariam violando a lei. Mas o verdadeiro sentido em jogo não é a colheita em si, e sim a visão de Deus que se transmite. Jesus responde com sabedoria profética: não é o sábado que rege o homem, mas o homem que dá sentido ao sábado, porque “o Filho do Homem é senhor também do sábado” (Lc 6,5).

Exegese e hermenêutica caminham juntas aqui. O gesto dos discípulos é um gesto de fome, de necessidade, e a fome não espera o relógio da lei. O sábado, em sua intenção original, era dom de libertação, descanso, justiça social, proteção dos pobres e dos trabalhadores, até mesmo dos animais (cf. Ex 20,8-11). Mas no curso da história, foi sendo recoberto por camadas de interpretações rígidas, transformando-se em peso. Jesus denuncia essa distorção: o que deveria ser sinal de vida e liberdade se tornou instrumento de controle e opressão. O paralelo com Marcos 2,27 é ainda mais explícito: “O sábado foi feito para o homem, e não o homem para o sábado.” Essa afirmação é revolucionária, porque coloca a dignidade humana acima de qualquer ritualismo que negue a vida. Jeremias já havia advertido contra a falsa compreensão do sábado, recordando que ele não deve ser mero fardo (cf. Jr 17,21-22), e Miqueias 6,8 proclamava: “O que o Senhor te pede é apenas praticar a justiça, amar a misericórdia e caminhar humildemente com o teu Deus.”

Há aqui uma lição antropológica profunda. O ser humano é mais do que suas práticas exteriores. Somos seres de desejo, de fome, de carência, e também de transcendência. O sábado deveria nutrir esse duplo aspecto — o descanso do corpo e a abertura do espírito — e não reprimir a vida. Mas quantas vezes, ao longo da história, vemos a religião transformada em instrumento de poder? Santo Irineu já advertia no século II: “A glória de Deus é o ser humano vivo, e a vida do ser humano é a visão de Deus” (Adversus Haereses, IV,20,7). Quando se usa o nome de Deus para esmagar vidas, trai-se a própria revelação.

Esse evangelho também nos provoca, o olhar dos fariseus sobre os discípulos é o olhar que julga a partir da aparência, fixo na norma, incapaz de ver a necessidade, a fome, a fragilidade. É o olhar que se alimenta da acusação, do policiamento dos gestos alheios, que Freud chamaria de expressão do superego tirânico, e que a sociologia de Michel Foucault analisaria como dispositivo de controle. É o olhar do poder que vigia, e que se sente seguro não na liberdade do outro, mas na sua submissão. Jesus, ao contrário, educa um olhar diferente: não o olhar que condena, mas o olhar que discerne, que enxerga as motivações, que acolhe a necessidade humana.

Podemos perceber que aqui está em jogo a relação entre lei e vida. Kant falaria do imperativo categórico, mas Jesus vai além: não basta a universalidade da norma; é preciso que a norma esteja a serviço da vida. Hegel diria que o espírito supera a letra, e que a liberdade é a verdade da lei. São Tomás de Aquino já havia afirmado que a lei humana e a lei religiosa devem ser ordenadas ao bem comum, e que quando uma lei não conduz à justiça, perde seu caráter de lei. O que Jesus realiza é o cumprimento dessa intuição filosófica e teológica: a lei do sábado deve ser interpretada a partir da vida, e não o contrário.

 Se fwz necessário  lembrar que o sábado, em tempos de opressão estrangeira, era sinal de resistência identitária do povo judeu. Guardar o sábado significava afirmar: “Nós somos o povo da Aliança, e não servos de César.” Mas com o tempo, essa resistência se cristalizou em rigidez. Jesus não abole o sábado, mas o reconduz à sua raiz libertadora. Isso nos ajuda a compreender que toda instituição corre o risco de se corromper quando perde de vista sua razão de ser. A mesma dinâmica acontece na Igreja: quando o culto se torna espetáculo, quando a liturgia vira performance estética desvinculada da vida, quando a fé é reduzida a mercadoria de consumo, perdemos o sentido original do Evangelho. 

É nesse ponto que a crítica às falsas teologias se faz necessária. A teologia da prosperidade promete bênçãos materiais em troca de sacrifícios financeiros, transformando Deus em banqueiro e a fé em contrato de mercado. A teologia do domínio prega que os cristãos devem conquistar as estruturas de poder para impor sua moral ao mundo, reduzindo o Evangelho a ideologia política. A fé individualista, por sua vez, transforma a relação com Deus em experiência solitária, descompromissada com o próximo e com a justiça. E a fé-mercadoria é aquela que transforma ritos, objetos e experiências religiosas em produtos a serem vendidos, numa lógica de marketing espiritual. Todas essas distorções se assemelham aos fariseus que vigiam os discípulos: preocupam-se com a forma, mas não com a vida.

O clericalismo é outro fruto amargo dessa mesma árvore. Quando o sacerdote se coloca acima do povo, como se fosse dono do sagrado, transforma-se em guardião da lei opressora, e não em ministro da graça. O Papa Francisco, em diversas ocasiões, chamou o clericalismo de “a peste da Igreja”. O Concílio Vaticano II, na Gaudium et Spes (n. 63-66), recorda que a missão da Igreja é ler os sinais dos tempos à luz do Evangelho, e não se fechar em legalismos. Na Evangelii Gaudium (n. 49), Francisco insiste que “prefiro uma Igreja acidentada, ferida e enlameada por ter saído pelas estradas, a uma Igreja enferma pelo fechamento e a comodidade de se agarrar às próprias seguranças.” O Evangelho de hoje ilustra essa opção: Jesus prefere discípulos famintos colhendo espigas a discípulos paralisados pelo medo da lei.

Santo Agostinho, comentando os Salmos, dizia que a lei sem o Espírito mata, mas o Espírito vivifica. Orígenes lembrava que o sábado é figura do repouso em Deus, mas que esse repouso só existe quando o coração está em paz com o próximo. Crisóstomo denunciava os cristãos que, em nome da religião, desprezavam os pobres, chamando-os de “piores que os fariseus”. Ambrósio de Milão afirmava: “Não é o alimento reservado que agrada a Deus, mas o pão repartido.” Basílio de Cesareia pregava que “o pão que tu guardas pertence ao faminto, o manto que escondes no armário pertence ao nu.” A tradição da Igreja nunca foi unânime em torno de rigidez legal, mas sempre buscou interpretar a lei à luz da caridade.

Quando Jesus afirma que o Filho do Homem é senhor do sábado, ele está proclamando que a vida humana, iluminada pelo Espírito, é mais importante que qualquer código fechado. Isso é escandaloso para os legalistas, mas libertador para os que têm fome. E não é apenas fome de pão, mas fome de justiça, fome de dignidade, fome de reconhecimento. O profeta Isaías já havia denunciado um jejum hipócrita, em que se afligia o corpo mas se explorava o trabalhador (cf. Is 58,3-6). Amós criticava os comerciantes que mal esperavam o sábado passar para explorar os pobres (cf. Am 8,4-6). Jesus, ao interpretar o sábado, realiza a mesma denúncia: o descanso verdadeiro é aquele que liberta, não aquele que oprime.

Hoje, quantas vezes não repetimos os erros dos fariseus? 

Quando julgamos a vida alheia a partir das aparências, quando reduzimos a religião a um conjunto de regras externas, quando transformamos Deus em opressor, esquecemos que Ele é Pai amoroso. A psicologia nos lembra que esse tipo de religião gera ansiedade, culpa tóxica, neurose, medo. A sociologia mostra que sistemas religiosos de controle alimentam desigualdades e mantêm privilégios. A antropologia revela que toda sociedade cria ritos, mas quando os ritos se absolutizam, perdem seu poder de gerar vida e se tornam instrumentos de dominação. O Evangelho, porém, insiste: o sábado existe para que todos, inclusive os pobres e marginalizados, possam descansar e viver.

Assim, o texto deste sábado da 22ª semana do Tempo Comum nos recorda que a lei só tem sentido quando promove a vida. Jesus não é contra o sábado; ele é contra o uso do sábado como arma contra os famintos. Ele nos convida a olhar para além da letra, a discernir as motivações, a priorizar o amor. Essa é a Boa Nova: Deus não é um ditador em busca de súditos subservientes, mas Pai amoroso que quer filhos livres e vivos. Seguir Jesus é aprender a ser senhor do sábado, a colocar a vida no centro, a não temer os olhares acusadores, mas a responder com liberdade e misericórdia.



DNonato – Teólogo do Cotidiano


quarta-feira, 3 de setembro de 2025

Um breve olhar sobre Lucas 5,1-11

O evangelho proclamado no 5º Domingo do Tempo Comum do Ano C e também na quinta-feira da 22ª semana do Tempo Comum do ano impar nos apresenta um dos relatos mais significativos da vocação dos primeiros discípulos. Às margens do lago de Genesaré, Jesus se aproxima de homens comuns, fatigados por uma noite de trabalho sem frutos, e transforma sua rotina em um sinal profético. A cena é simples e grandiosa ao mesmo tempo: barcas vazias, pescadores desanimados, uma palavra que desconcerta e uma obediência que gera abundância.

Jesus entra na barca de Simão e pede que ele se afaste um pouco da margem. De dentro da barca, ensina a multidão. Depois, dirige-se a Simão com uma ordem paradoxal: “Avança para águas mais profundas e lançai as vossas redes para a pesca” (Lc 5,4). Pedro reage com lógica humana: “Mestre, trabalhamos a noite inteira e nada pescamos” (Lc 5,5). Aqui está o pretexto da narrativa: a experiência do esforço inútil, da fadiga sem resultado, do cansaço que paralisa. Quantos de nós não conhecemos esse mesmo sentimento em nossas vidas pessoais, familiares, pastorais e sociais?


Mas Pedro não para no cansaço. Ele dá um salto de confiança: “Mas em atenção à tua palavra, lançarei as redes” (Lc 5,5). O milagre acontece: redes cheias a ponto de se romper, barcos quase a afundar. O fracasso se transforma em abundância. A cena não é mero relato de sucesso profissional, mas símbolo da missão cristã: quando obedecemos à Palavra, mesmo contra a lógica humana, a graça se manifesta em plenitude.

Esse relato encontra paralelos em Mateus 4,18-22 e Marcos 1,16-20, onde a narrativa é mais direta: Jesus chama os irmãos pescadores, e eles o seguem imediatamente. Em João 21,1-14, após a ressurreição, a cena se repete com a pesca milagrosa, lembrando aos discípulos que a missão só é fecunda quando obediente à voz do Ressuscitado. O Antigo Testamento também ilumina essa passagem. Elias, ao chamar Eliseu (1Rs 19,19-21), encontra um homem ocupado no trabalho que larga tudo para segui-lo. Jonas resiste ao chamado, mas depois obedece e evangeliza Nínive (Jn 1–3). Israel, ao atravessar o mar (Ex 14), aprende que só a confiança em Deus pode abrir caminhos no meio do impossível. O salmo 107 descreve os que trabalham no mar e clamam ao Senhor em meio às ondas, e Ele os salva (Sl 107,23-30).

O simbolismo das águas é central. Nas culturas semitas, o mar é lugar do caos e do perigo, mas também da vida e da purificação. Avançar para águas mais profundas é, portanto, metáfora existencial: deixar a superficialidade e enfrentar o mistério. Aqui a filosofia nos ajuda: Kierkegaard falaria do salto da fé, esse movimento que vai além da razão; Heidegger lembraria que a autenticidade exige sair da mesmice do impessoal; Hannah Arendt diria que se trata de um ato de natalidade, de um novo começo. Jesus convida Pedro e convida a nós: ousem, arrisquem, não fiquem presos ao raso, mergulhem no profundo da vida em Deus.

A psicologia nos mostra a dimensão humana desse relato. Pedro expressa a frustração de quem já tentou e falhou. Esse é um retrato das crises que vivemos: no casamento, no trabalho, na comunidade. Mas a atitude de Pedro é terapêutica: ele reconhece sua limitação e se abre à confiança. O medo que sente ao reconhecer o poder de Jesus — “Afasta-te de mim, Senhor, porque sou um pecador” (Lc 5,8) — não é rejeição, mas consciência da própria pequenez. O medo é curado pela palavra de Jesus: “Não tenhas medo. De agora em diante serás pescador de homens” (Lc 5,10). A confiança transforma o medo em missão.

Na sociologia, a escolha de pescadores é profundamente significativa. Jesus não chama os sábios da sinagoga, nem os ricos ou poderosos, mas trabalhadores anônimos, explorados por um sistema econômico que os oprimia com impostos e tributos. A missão começa na periferia, não no centro. Isso ecoa a lógica de toda a Escritura: Deus escolhe Abraão, um velho sem filhos; Moisés, um fugitivo; Davi, o menor dos irmãos; Maria, uma jovem de Nazaré. O chamado divino sempre reverte expectativas.

Do ponto de vista da teologia, o núcleo da passagem é a vida comunitária. Lucas ressalta que Pedro precisa chamar os companheiros para ajudá-lo, e todos participam da abundância. O milagre não enriquece um indivíduo, mas envolve toda a comunidade. Contra a teologia da prosperidade, que transforma a fé em busca de bênçãos pessoais, o evangelho mostra que a graça de Deus é para todos. Contra a teologia do domínio, que vê a missão como conquista e poder, o evangelho mostra que ser pescador de homens não é capturar para dominar, mas resgatar para libertar. Contra a fé como mercadoria, que vende milagres e bênçãos, o evangelho recorda que a graça é dom gratuito, acessível na obediência confiante.

Esse texto também denuncia o clericalismo. Jesus não centraliza sua missão em si nem delega apenas aos sacerdotes do templo. Ele chama trabalhadores comuns e os faz protagonistas da missão. O Concílio Vaticano II, em Lumen Gentium, recorda que todos os batizados participam do sacerdócio comum. A Evangelii Gaudium insiste que o clericalismo sufoca a iniciativa dos leigos e enfraquece a Igreja. Uma Igreja missionária precisa ser povo de Deus em comunhão, não pirâmide de poder.

Os Padres da Igreja leram essa passagem com profundidade. Santo Agostinho via a barca como imagem da Igreja que atravessa o mar da história. São João Crisóstomo sublinhava que a abundância não vinha da técnica de Pedro, mas da obediência à palavra de Cristo. Orígenes interpretava a pesca como o anúncio do Evangelho que reúne povos de todas as nações. Gregório Magno comparava a paciência do pescador à paciência necessária ao cuidado pastoral. Tertuliano dizia que os cristãos são “peixinhos” que nascem nas águas do batismo.

A ciência histórica nos ajuda a não romantizar o episódio. A Galileia era explorada economicamente pelo império romano, e os pescadores sofriam com tributos pesados. A cena mostra que Jesus não chama para uma espiritualidade alienada, mas para uma missão enraizada na realidade social. A abundância de peixes é símbolo de uma nova economia da graça, não de lucro, mas de partilha.

Esse texto, lido hoje, é convite e denúncia. Convida a sair da margem da fé superficial e a lançar-se na profundidade da Palavra. Denuncia o cristianismo reduzido a espetáculo, a consumo religioso, a mercadoria vendida em templos e redes sociais. Denuncia o clericalismo que sufoca os leigos e a teologia da prosperidade que transforma o Evangelho em barganha. Denuncia também o individualismo religioso que esquece a comunidade e só busca benefícios pessoais.

Os documentos da Igreja reforçam esse chamado. A Dei Verbum (n. 21) lembra que a Palavra é alimento da alma. A Gaudium et Spes nos recorda que as alegrias e esperanças, as tristezas e angústias dos homens são também as da Igreja. A Christus Vivit fala aos jovens: “Não tenhas medo de arriscar e lançar-se em águas profundas” (cf. n. 132-134). O Documento de Aparecida (n. 362) insiste: a Igreja deve estar em estado permanente de missão. A Fratelli Tutti sonha com uma fraternidade universal que rompe muros e constrói pontes.

O evangelho de Lucas 5,1-11 é, portanto, uma palavra profética para hoje. Somos convidados a reconhecer nossos cansaços e fracassos, mas a confiar na Palavra que nos pede o impossível. Somos chamados a obedecer mesmo contra a lógica, a avançar para águas profundas, a viver uma fé que não é mercadoria, mas graça gratuita. Somos chamados a formar comunidades missionárias, não elites religiosas. Somos chamados a transformar redes vazias em abundância compartilhada.

Assim, repetimos as palavras de Jesus a Pedro: “Não tenhas medo”. Não tenhamos medo de enfrentar nossos fracassos, de sair de nossas zonas de conforto, de arriscar no mar aberto da vida. Quem obedece à Palavra experimenta a abundância. Quem segue Jesus, mesmo na fraqueza, se torna pescador de homens e mulheres, não para aprisionar, mas para libertar. Avancemos, pois, para águas mais profundas.



DNonato – Teólogo do Cotidiano


terça-feira, 2 de setembro de 2025

Um breve olhar sobre Lucas 4,38-44

 
O Evangelho de Lucas 4, 38-44  da quarta-feira da 22ª semana do Tempo Comum  nos conduz  a uma cena profundamente humana e ao mesmo tempo carregada de sentido teológico: Jesus sai da sinagoga de Cafarnaum e entra na casa de Simão, onde cura a sogra deste, que estava com febre. Em seguida, ao entardecer, todos os que tinham doentes os trazem até Ele, e Jesus os cura, impondo as mãos sobre cada um. Espíritos imundos saem de muitas pessoas, gritando que Ele é o Filho de Deus, mas Jesus os repreende e não permite que falem. Ao amanhecer, retira-se para um lugar deserto, mas as multidões O procuram e tentam retê-lo. Ele, porém, anuncia que deve pregar também a outras cidades a Boa-Nova do Reino, porque para isso foi enviado. Essa passagem também está presente em outras variantes nos sinóticos (cf. Mc 1,29-39; Mt 8,14-17), revela tanto a dimensão terapêutica e libertadora do ministério de Jesus quanto a tensão entre a busca humana por milagres imediatos e o verdadeiro sentido de sua missão.

O texto se enraíza no contexto do capítulo quarto de Lucas, onde Jesus inaugura sua missão pública após ser batizado no Jordão, cheio do Espírito Santo, e resistir às tentações no deserto. Sua ida a Nazaré, onde proclama a Palavra de Isaías e se identifica como o Ungido que veio libertar os pobres, os cativos e os oprimidos (cf. Lc 4,18-19), já nos prepara para compreender que os milagres não são espetáculos, mas sinais da irrupção do Reino de Deus. O pretexto imediato da narrativa é a febre da sogra de Pedro, mas o contexto é mais profundo: a febre simboliza as forças que paralisam a vida, e a mão de Jesus, que se estende para levantar, é gesto de restauração integral. O verbo usado para “levantar” ecoa o da ressurreição (cf. Lc 24,6; At 3,7), indicando que todo ato de cura em Jesus é antecipação da vitória sobre a morte.

Na tradição sinótica, Marcos oferece uma versão quase idêntica (Mc 1,29-39), enquanto Mateus, ao narrar a cura da sogra de Pedro, destaca o cumprimento da profecia de Isaías: “Ele tomou as nossas enfermidades e carregou as nossas doenças” (Mt 8,17; cf. Is 53,4). Isso nos ajuda a compreender que não se trata apenas de atos isolados de compaixão, mas da realização das promessas messiânicas. Jesus não é um curandeiro popular nem um mágico, mas Aquele que assume sobre si as dores do povo, revelando um Deus que não permanece distante, mas que toca, que levanta, que restitui dignidade. Essa lógica está em sintonia com outros relatos de cura: o paralítico descido pelo telhado (Lc 5,17-26), a mulher com hemorragia (Lc 8,43-48), o cego de Jericó (Lc 18,35-43) e tantos outros, onde a cura física se entrelaça com a fé, o perdão e a reintegração na comunidade.

A tradição bíblica mais antiga já apontava para esse Deus que cura e liberta. O Salmo 103 recorda: “É Ele quem perdoa todas as tuas culpas e cura todas as tuas enfermidades” (Sl 103,3). O Salmo 147 proclama que o Senhor “cura os corações feridos e enfaixa suas feridas” (Sl 147,3). O profeta Jeremias clama: “Cura-me, Senhor, e serei curado; salva-me, e serei salvo” (Jr 17,14). Em 2 Reis 5, vemos o episódio de Naamã, o sírio leproso que é purificado ao mergulhar no Jordão, sinal de que a salvação de Deus se estende além das fronteiras de Israel. Essas passagens iluminam a missão de Jesus: Ele é a encarnação da promessa de um Deus que não abandona seu povo, mas intervém na história para restaurar a vida.

A  reflexão  do texto pode nos iluminar esse aspecto. Muitos dos que buscam a religião o fazem movidos pela dor, pela fragilidade, pelo medo da morte ou pela necessidade de proteção. Há algo legítimo nesse impulso: o ser humano é vulnerável e busca apoio no transcendente. Contudo, o risco é permanecer em uma relação utilitarista com Deus, reduzindo-o a um distribuidor de favores. A sogra de Pedro, uma vez curada, levanta-se e põe-se a servir. Eis o sinal da maturidade da fé: quem é tocado por Cristo não se fecha em si mesmo, mas passa a viver para os outros. A psicologia profunda mostra que a cura não é completa se não leva à superação do narcisismo, e a espiritualidade bíblica confirma que o verdadeiro encontro com Deus desemboca no amor-serviço. O mesmo se vê no episódio dos dez leprosos (Lc 17,11-19), em que apenas um retorna para agradecer, mostrando que a cura mais profunda é a gratidão e a fé.

 Vale  recorda que as multidões acorrem a Jesus não apenas como indivíduos isolados, mas como comunidades marcadas por desigualdades, pobreza e exclusão. Na Palestina do século I, a doença não era apenas uma condição física, mas também social e religiosa: o enfermo era impuro, marginalizado, afastado da vida comunitária (cf. Lv 13–14). Ao curar, Jesus reintegra, devolve o lugar na comunidade, rompe com os mecanismos de exclusão. Isso toca diretamente a crítica às teologias da prosperidade e do domínio, que hoje transformam a fé em mercadoria, prometendo saúde, riqueza e sucesso a quem paga dízimos ou oferta. Essas teologias invertem o Evangelho, colocando Deus como servo do lucro humano e usando a religião como instrumento de poder. O Evangelho de hoje denuncia esse desvio: Jesus não veio fundar um mercado de milagres, mas inaugurar um Reino de amor gratuito. Como recorda Paulo, “Não é para o próprio interesse que cada um deve olhar, mas para o interesse dos outros” (Fl 2,4). E ainda: “O amor não busca os próprios interesses” (1Cor 13,5).

O texto é  uma provocação. O ser humano busca constantemente o sentido da vida e teme o absurdo da morte. Muitos procuram a religião para aplacar essa angústia, como já indicava Pascal ao falar do “Deus das consolações” em contraste com o “Deus de Abraão, de Isaac e de Jacó” (cf. Ex 3,6). Kierkegaard lembrava que a fé não é fuga da angústia, mas atravessamento da angústia na confiança em Deus. Jesus, ao retirar-se para um lugar deserto, mostra que não se deixa aprisionar pelas expectativas das massas, mas permanece fiel ao chamado do Pai. A fé madura não é o preenchimento de um vazio com ilusões, mas a coragem de seguir Jesus no caminho da cruz, onde a vida encontra sua plenitude (cf. Lc 9,23-24). Esse caminho já havia sido prefigurado no Servo Sofredor de Isaías (Is 53), que não busca glória, mas entrega-se em amor.

 Santo Agostinho, ao comentar os milagres de Cristo, dizia que eles são sinais visíveis de uma realidade invisível: “As curas do corpo são sinais da cura da alma”. São João Crisóstomo, por sua vez, advertia que não se deve seguir Cristo apenas pelos milagres, mas pelo ensino e pela vida nova que Ele oferece. O milagre, isolado, pode seduzir; mas só a Palavra gera discípulos. O mesmo vemos em João, onde os sinais apontam para uma realidade maior: “Estes sinais foram escritos para que creiais que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus, e para que, crendo, tenhais a vida em seu nome” (Jo 20,31). A tradição da Igreja sempre insistiu que os sacramentos são sinais eficazes da graça, não porque ofereçam saúde física ou prosperidade material, mas porque comunicam a vida nova de Cristo. São Irineu dizia: “A glória de Deus é o ser humano vivo, e a vida do homem é a visão de Deus”.

Os documentos da Igreja também reforçam essa compreensão. O Concílio Vaticano II, na Gaudium et Spes, recorda que a Igreja não pode se afastar das alegrias e esperanças, tristezas e angústias da humanidade (GS 1), mas sua missão não se reduz a resolver problemas imediatos: ela é chamada a anunciar o Reino, que ilumina e transforma a realidade. A Evangelii Gaudium de Francisco denuncia a tentação de uma fé mercantilizada, onde o Evangelho é reduzido a “um conjunto de ideias para consumo” (EG 93), e chama a uma Igreja em saída, que não se deixa prender pelos interesses de alguns, mas vai ao encontro dos pobres e marginalizados. A Fratelli Tutti insiste que a verdadeira fraternidade se constrói no serviço e no amor concreto (FT 115), o mesmo serviço que a sogra de Pedro realiza após ser curada. Recorda ainda que a caridade não se esgota em gestos de compaixão individual, mas deve gerar transformações sociais (cf. FT 186).

É mportante compreender que a religião sempre foi espaço de busca de sentido e de mediação com o sagrado. Nas culturas antigas, a doença era vista como castigo divino, e a cura como restauração da ordem cósmica. Jesus subverte esse esquema: não culpa o doente, não reforça estigmas, não cobra pagamento, não exige oferendas. Ele cura porque ama, e sua autoridade vem do Espírito Santo, não das instituições de poder (cf. Lc 4,14). Essa atitude confronta também o clericalismo, que transforma o ministério ordenado em privilégio e poder. O gesto de Jesus de impor as mãos e curar não é monopólio de uma casta, mas sinal do Reino que se expande por meio do Espírito. Uma Igreja clericalizada, que controla a graça como se fosse propriedade sua, trai a lógica do Evangelho. Paulo já advertia: “Tudo é vosso, mas vós sois de Cristo, e Cristo é de Deus” (1Cor 3,22-23).

A cena final é profundamente profética: as multidões querem reter Jesus, mas Ele afirma: “Eu devo anunciar também a outras cidades a Boa-Nova do Reino, porque para isso fui enviado”. Aqui está a essência de sua missão. Ele não se deixa aprisionar pelas demandas imediatas nem se contenta em ser curandeiro local. Seu horizonte é o Reino universal, que não se limita a Cafarnaum, mas se abre a todos os povos. Isso ecoa a profecia de Isaías: “É pouco que sejas meu servo apenas para restaurar as tribos de Jacó... Eu te farei luz das nações, para que minha salvação chegue até os confins da terra” (Is 49,6). Essa universalidade é também uma correção para uma Igreja que, muitas vezes, busca seu conforto institucional em vez de sair ao encontro das periferias. O verdadeiro discipulado não é apego a milagres, mas seguimento do Mestre que caminha sempre adiante. Como diz Paulo: “Ai de mim se eu não anunciar o Evangelho!” (1Cor 9,16).

Em síntese, a passagem de Lucas 4,38-44 nos convida a uma fé adulta. Muitos procuram a religião por medo ou interesse; Jesus nos chama a uma relação de amor, onde curados por Ele nos tornamos servidores uns dos outros. Ele não é o mágico que cumpre nossos desejos, mas o Senhor que nos envia a amar e a anunciar o Reino. Essa fé contrasta com as caricaturas promovidas pela teologia da prosperidade, pela fé-mercadoria, pelo clericalismo e pelo individualismo espiritualista. A Palavra hoje nos chama a deixar que Ele nos levante de nossas febres — sejam físicas, sociais, espirituais ou existenciais — e nos insira no dinamismo do serviço. Como a sogra de Pedro, como os tantos curados e libertos, somos chamados a transformar o dom recebido em doação. E como o próprio Cristo, devemos permanecer fiéis ao chamado maior: anunciar o Reino em toda parte, até que todos reconheçam a presença de Deus que cura, liberta e salva.



DNonato - Teólogo do Cotidiano 

segunda-feira, 1 de setembro de 2025

Um breve olhar sobre Lucas 4,31-37

O Evangelho nos conduz hoje a Cafarnaum, cidade às margens do lago da Galileia, onde Jesus entra numa sinagoga e ali manifesta a força da sua palavra. O evangelista Lucas destaca que todos ficavam admirados, pois Ele ensinava “com autoridade”, e não como os mestres religiosos de sua época. O episódio do homem possuído que se levanta e grita diante de Jesus revela o confronto decisivo: o Reino de Deus se põe diante do império do mal, e o mal, embora grite e se agite, não resiste.

Este texto é proclamado na liturgia da terça-feira da 22ª semana do Tempo Comum, mas também ressoa em outros momentos do ciclo litúrgico, especialmente quando se recorda o início do ministério de Jesus. Faz parte de um conjunto de textos em que a Igreja nos apresenta Cristo como Aquele que, ungido pelo Espírito em Nazaré, agora passa a realizar concretamente a libertação prometida. É como se a liturgia quisesse nos recordar, em meio à rotina dos dias, que a missão da Igreja é prolongar esta autoridade que liberta e não que aprisiona, que cura e não que controla, que gera vida e não exploração.

O contexto imediato é importante: em Nazaré, Jesus havia lido o rolo de Isaías, proclamando que fora enviado para anunciar a boa-nova aos pobres, libertar os cativos, devolver a vista aos cegos e proclamar o ano da graça do Senhor (Lc 4,18-19). Os seus conterrâneos não aceitaram sua palavra e tentaram matá-lo. Diante da rejeição, Ele segue para Cafarnaum, e ali sua palavra encontra espaço e produz libertação. A rejeição em Nazaré contrasta com a acolhida em Cafarnaum, revelando que a missão de Jesus só pode frutificar onde há abertura de coração.

Os sinóticos nos ajudam a alargar a compreensão. Marcos 1,21-28 narra a mesma cena: Jesus ensina na sinagoga, e o povo fica admirado com sua autoridade, pois até os espíritos impuros lhe obedecem. Mateus, embora não traga esse episódio, termina o Sermão da Montanha com a mesma nota: “Ele ensinava como quem tem autoridade, e não como os escribas” (Mt 7,29). Essa convergência mostra que, desde o início, os evangelistas querem sublinhar que a autoridade de Jesus não está ligada a um cargo ou a uma instituição, mas à sua própria pessoa, à sua vida coerente e à sua união com o Pai.

A questão hermenêutica fundamental é: de onde vem a autoridade de Jesus? Não era uma autoridade política, porque não ocupava cargos. Não era uma autoridade religiosa institucional, porque não fazia parte da elite sacerdotal nem do grupo dos escribas. Sua autoridade vinha do Espírito Santo, que o ungiu no batismo e o conduziu no deserto. Vinha da coerência entre a sua palavra e a sua vida. Vinha do amor que se tornava concreto em compaixão, em cuidado, em proximidade. É por isso que as pessoas simples o reconhecem, enquanto as elites o rejeitam.

O grito do espírito impuro — “Que tens a ver conosco, Jesus de Nazaré? Vieste para nos destruir?” — ecoa como resistência do mal diante da luz. Psicologicamente, podemos ver nesse grito a reação da sombra, aquilo que Jung descreve como a parte reprimida e não integrada do ser humano. Quando a luz de Cristo se aproxima, nossas sombras não suportam, e se agitam. O processo de libertação passa pela revelação daquilo que estava oculto. Não há cura sem desvelamento. Jesus obriga o mal a se mostrar, a sair das sombras, para que o homem possa ser restituído à sua verdadeira identidade.

Sociologicamente, esse “espírito impuro” pode ser lido como símbolo das ideologias e estruturas que oprimem os povos. Pode ser a idolatria do mercado que transforma a fé em mercadoria, como vemos na teologia da prosperidade que promete bênçãos em troca de dízimos, transformando Deus em um contrato comercial. Pode ser a teologia do domínio, que busca o poder político para impor a fé, negando a liberdade de consciência. Pode ser o individualismo, que fecha cada pessoa em seu próprio mundo e a impede de viver a comunhão. Pode ser também o clericalismo, esse mal dentro da própria Igreja, que transforma o ministério em privilégio, que fala em nome de Deus, mas oprime o povo com pesos que ele mesmo não carrega. Esse espírito impuro está dentro da sinagoga, no espaço religioso. E não é justamente isso que vemos hoje, quando a Igreja se deixa contaminar por ideologias de poder, quando o altar se torna palco, quando a liturgia vira espetáculo?

Do ponto de vista filosófico, é útil recordar a distinção entre potestas e auctoritas já feita no mundo romano. Potestas é o poder imposto pela força; auctoritas é o reconhecimento de uma vida que inspira confiança. Jesus não tem potestas, mas tem auctoritas. Sua palavra não precisa de coerção porque é verdade. Hannah Arendt dizia que a autoridade só existe onde há reconhecimento, e que desaparece quando precisa se impor pela violência. A autoridade de Jesus não é violenta, mas gera adesão. É a força da verdade que atrai.

A patrística ilumina ainda mais. São Cirilo de Jerusalém lembrava que os demônios reconhecem Jesus como “Santo de Deus”, mas não por amor, e sim por medo. Saber quem Ele é não basta: é preciso segui-lo. Santo Irineu dizia que “a glória de Deus é o homem vivo”, e aqui vemos a glória de Deus quando o homem liberto volta a ser ele mesmo, não mais escravo do mal. São João Crisóstomo sublinhava que a palavra de Cristo é simples, mas poderosa, porque nasce da coerência entre vida e anúncio. É um convite para a Igreja hoje: mais do que discursos pomposos, precisamos de testemunho coerente.

O Magistério da Igreja ressoa essa mensagem. A Gaudium et Spes (n. 37) recorda que “toda a história humana está impregnada por uma luta tremenda contra as potências das trevas”. A Evangelii Gaudium denuncia a tentação de transformar a missão em negócio, advertindo contra a “mundanidade espiritual” que esvazia a força do Evangelho. A Fratelli Tutti insiste que a verdade deve ser buscada sempre no amor e na fraternidade, contra toda manipulação e mentira. Quando olhamos para a cena da sinagoga de Cafarnaum, vemos que ela continua a se repetir na história: o Cristo liberta, mas os poderes resistem; o povo se admira, mas muitos preferem a escravidão.

Há também um paralelo litúrgico a destacar. Quando rezamos o Pai-Nosso e pedimos: “Não nos deixeis cair em tentação, mas livrai-nos do mal”, estamos ecoando a experiência daquele homem da sinagoga. Ele foi liberto porque o Cristo estava presente. Na liturgia, Cristo continua presente, sua palavra continua a expulsar os demônios que nos cercam. Mas é preciso abrir-se a Ele, deixar que sua autoridade toque nossa vida.

É também importante recordar os paralelos com outras expulsões de demônios. O possesso geraseno (Mc 5,1-20; Lc 8,26-39) mostra que o mal pode escravizar não apenas uma pessoa, mas toda uma comunidade, representada pela legião. A libertação gera medo, e a cidade expulsa Jesus, preferindo conviver com os porcos a acolher a liberdade. Em Mateus 12,28, Jesus diz: “Se é pelo Espírito de Deus que eu expulso os demônios, então chegou a vós o Reino de Deus”. Cada exorcismo é um sinal escatológico: o Reino está presente, e as forças do mal perdem espaço.

Hoje, esse Evangelho é uma convocação profética. Ele nos chama a não ter medo do mal, mas a cultivar o bem. A autoridade de Jesus não se compra, não se negocia, não se impõe; ela se acolhe. É preciso deixar que essa autoridade nos liberte também de nossos próprios demônios: a ganância, o ódio, a indiferença, a tentação de manipular a fé. É preciso deixar que sua palavra nos contamine de amor, para que possamos contagiar o mundo com a força do bem.

O povo exclamava: “Que palavra é esta?” Essa pergunta continua aberta. O que a palavra de Jesus é para nós? Espetáculo ou vida? Curiosidade ou seguimento? O espírito impuro grita: “Que tens a ver conosco, Jesus de Nazaré?” E nós, que resposta damos? Queremos mantê-lo à distância ou deixamos que Ele nos toque e nos liberte?

O mal pode gritar, mas não terá a última palavra. A última palavra é sempre de Deus, e essa palavra é vida, é liberdade, é amor. É a autoridade de Cristo que continua a nos libertar. Que hoje, ao ouvir este Evangelho, possamos acolher essa autoridade em nós, e viver como testemunhas de um Reino que não se compra, não se negocia e não se vende, mas que se constrói na coerência entre palavra e vida.



DNonato – Teólogo do Cotidiano


domingo, 31 de agosto de 2025

Um breve olhar sobre Lucas 4,16-30

 
Era sábado em Nazaré. O pequeno vilarejo, perdido entre colinas da Galileia, respirava o silêncio sagrado do dia consagrado ao Senhor. As ruas de pedra, iluminadas pela luz clara da manhã, conduziam homens, mulheres e crianças à sinagoga. O ar estava carregado de expectativa: Jesus, o filho do carpinteiro, aquele que crescera ali, que aprendera as Escrituras desde menino, estava de volta depois de percorrer outras cidades. Sua fama começava a ecoar discretamente pelos povoados; falava-se de curas, palavras de sabedoria e gestos de compaixão. Os olhares se cruzavam em curiosidade e orgulho local: 

  • “Será que é verdade o que dizem? Nosso conterrâneo seria mesmo um profeta?”.

A sinagoga, simples e austera, se enchia do murmúrio dos salmos recitados em coro. O rolo das Escrituras foi entregue a Jesus. Ele o abriu, não como quem apenas lê, mas como quem respira cada palavra. Procurou Isaías e encontrou: “O Espírito do Senhor está sobre mim, porque me ungiu para anunciar a Boa Nova aos pobres, a libertação aos cativos, a vista aos cegos, para pôr em liberdade os oprimidos e proclamar um ano da graça do Senhor”. A assembleia suspendeu a respiração. Jesus fechou o livro, entregou-o ao ministro e, sentado, pronunciou: “Hoje se cumpriu esta passagem da Escritura que acabais de ouvir”.

O silêncio da admiração foi logo rompido pelo ruído das interrogações. O mesmo olhar que antes reluzia em orgulho agora se enevoava em desconfiança. “Não é este o filho de José? Como ousa aplicar a si palavras tão grandes? E como ousa lembrar-nos que Deus age também entre estrangeiros, viúvas de Sarepta, sírios leprosos, gente que não é do nosso povo?”. O ambiente se incendiou em fúria. O que começou como celebração terminou em rejeição. Os que O haviam acolhido queriam agora expulsá-Lo.

Colocada no início da vida pública de Jesus, esta passagem constitui, conforme Lucas, o programa de toda a atividade de Jesus. Isaías 61,1-2 anunciara que o Messias iria realizar a missão libertadora dos pobres e oprimidos. Jesus aplica a passagem a si mesmo, assumindo-a no hoje concreto em que se encontra. No ano da graça eram perdoadas todas as dívidas e se redistribuíam fraternalmente todas as terras e propriedades: Jesus encaminha a humanidade para uma situação de reconciliação e partilha, que tornam possíveis a igualdade, a fraternidade e a comunhão. A dúvida e a rejeição de Jesus por parte de seus compatriotas fazem prever a hostilidade e a rejeição de toda a atividade de Jesus por parte de todo o seu povo. No entanto, Jesus prossegue seu caminho, para construir a nova história que engloba toda a humanidade.

Este texto ocupa um lugar privilegiado tanto no Evangelho de Lucas quanto na vida litúrgica da Igreja. É proclamado em sua totalidade na segunda-feira da 22ª semana do Tempo Comum, mas também aparece parcialmente, nos versículos 14-21, no 3º Domingo do Tempo Comum do ano C, que desde 2019 foi instituído pelo Papa Francisco como o Domingo da Palavra de Deus. A coincidência é profundamente significativa: a Palavra de Deus é celebrada no dia em que Jesus, na sinagoga de Nazaré, proclama que “Hoje se cumpriu esta passagem da Escritura que acabais de ouvir” (Lc 4,21). A liturgia nos ajuda a perceber duas dimensões complementares. No domingo, somos chamados a contemplar a força da Palavra que se atualiza e se encarna no hoje da comunidade; na segunda-feira, experimentamos a resistência que esta mesma Palavra provoca quando desestabiliza certezas, privilégios e exclusivismos. A Palavra consola e liberta, mas também inquieta e provoca, porque denuncia estruturas de opressão e convoca à conversão.

A cena é carregada de densidade teológica, antropológica e histórica. Jesus entra na sinagoga, lugar de memória e identidade, onde a Escritura era lida e interpretada. O gesto de levantar-se para ler não é apenas litúrgico, é também político e profético: ele se coloca de pé diante da tradição para reatualizá-la. O rolo que lhe entregam contém o texto de Isaías 61, que anunciava o envio do Espírito sobre o ungido para libertar os pobres, proclamar a libertação dos cativos, dar vista aos cegos e libertar os oprimidos. Esse texto, profundamente enraizado na esperança de Israel, ganha um horizonte novo em Jesus, porque não é mais promessa futura, mas realidade presente. O termo “hoje” ressoa aqui como palavra-chave: a salvação não é adiada, mas se concretiza no agora da história.

A menção ao “ano da graça do Senhor” remete diretamente ao jubileu descrito em Levítico 25, quando as dívidas eram perdoadas, os escravos libertos e as terras devolvidas aos seus donos originais. Era a grande festa da justiça restaurada e da igualdade social. A leitura que Jesus faz de Isaías projeta essa tradição para além do ritualismo: não se trata apenas de um calendário religioso, mas da transformação radical da vida social, econômica e política. Aqui a teologia se encontra com a antropologia e a sociologia: a fé bíblica não se reduz a práticas privadas, mas gera consequências concretas para a organização da sociedade. O jubileu, ao ser assumido por Jesus, denuncia todas as formas de acumulação que excluem, todas as lógicas de exploração que concentram poder e riqueza, e aponta para a utopia do Reino, onde o pão é partilhado, os corpos são curados e a dignidade é restituída.

A reação dos ouvintes é ambígua. Primeiro, todos se admiram das palavras cheias de graça que saíam da boca de Jesus. Mas logo o fascínio cede lugar à rejeição: “Não é este o filho de José?” (Lc 4,22). Essa pergunta revela uma dificuldade antropológica e psicológica recorrente: o preconceito diante do conhecido, a resistência em reconhecer grandeza e novidade no próximo. A psicologia social explica que o grupo tende a rejeitar aquele que, vindo de dentro, rompe os limites do esperado. O profeta incomoda porque mostra que o real pode ser diferente, que o destino não é inevitável, que a história pode mudar.

Jesus, no entanto, não recua. Ele recorda a tradição profética de Elias e Eliseu, mostrando que a graça de Deus não se limita a Israel, mas alcança também a viúva de Sarepta, em Sidônia, e o general Naamã, da Síria (cf. 1Rs 17,9; 2Rs 5,1-14). Aqui está o coração universalista do Evangelho de Lucas: o Reino não é monopólio de um povo ou de uma religião, mas dom oferecido a todos, especialmente aos que vivem nas periferias geográficas e existenciais. Essa ampliação do horizonte é insuportável para os que querem uma fé domesticada, nacionalista e excludente. O resultado é a violência: arrastam Jesus para fora e querem matá-lo. É o prenúncio da cruz, sinal de que a fidelidade ao projeto do Pai não se faz sem conflito com os poderes estabelecidos.

Esse relato encontra paralelos nos outros sinóticos. Em Marcos 6,1-6 e em Mateus 13,53-58, a cena do profeta rejeitado em sua terra aparece em contexto diferente, mas com a mesma mensagem: a incredulidade impede a acolhida do Reino. Lucas, porém, dá maior ênfase programática, colocando essa cena logo no início da missão de Jesus. É como se dissesse: este será o caminho – proclamar a libertação, enfrentar a rejeição, abrir as fronteiras, seguir até Jerusalém, onde a recusa culminará na cruz e, pela ressurreição, se transformará em vida nova para toda a humanidade.

Santo Irineu via nela a confirmação de que Cristo recapitula toda a história em si mesmo, inaugurando um novo tempo onde o Espírito age no hoje da Igreja. Orígenes, em sua homilia sobre Lucas, sublinhava que o “hoje” da Palavra não está preso ao passado, mas acontece sempre que o Evangelho é proclamado na assembleia. Santo Agostinho insistia que a Palavra de Deus não é letra morta, mas verbo vivo que transforma a vida daquele que a escuta com fé. A tradição patrística nos convida, portanto, a viver essa atualização não como memória distante, mas como compromisso presente.

Percebemos também o alcance sociopolítico dessa passagem. A proclamação de Jesus confronta sistemas de dominação e desigualdade. Hoje, a mesma Palavra denuncia as teologias distorcidas que instrumentalizam o Evangelho. Contra a teologia da prosperidade, recorda-se que o Messias não veio acumular riquezas nem prometer sucesso material, mas anunciar boas notícias aos pobres. Contra a teologia do domínio, mostra-se que Jesus não busca poder, mas serviço. Contra o individualismo, proclama-se que a salvação é comunhão e partilha. Contra a fé mercadoria, que transforma rituais em negócios e igrejas em mercados de milagres, afirma-se que a graça é gratuita, dom de Deus, e não produto de consumo.

O clericalismo também é desmascarado nesse texto. Quando a fé se reduz a poder clerical, perde-se o dinamismo profético de Jesus. O Papa Francisco recorda, na Evangelii Gaudium (n. 102), que o clericalismo é uma das tentações mais nocivas da Igreja, porque gera uma elite separada do povo, sufocando a profecia. Em Lucas 4, Jesus se coloca não como um sacerdote distante, mas como um profeta inserido no meio do povo, com autoridade que nasce do Espírito e da fidelidade à Palavra.

 Gaudium et Spes (n. 63-66) reforçam que as alegrias e esperanças, as tristezas e angústias dos pobres e de todos os que sofrem são também as alegrias e esperanças dos discípulos de Cristo. A Fratelli Tutti (n. 39) denuncia a globalização da indiferença e convoca a uma fraternidade aberta. Nesse horizonte, Lucas 4,16-30 nos interpela a reconhecer que a Palavra viva de Jesus continua a nos chamar a construir uma sociedade mais justa, solidária e inclusiva.

Por fim, essa passagem revela uma verdade antropológica universal: o ser humano tende a resistir ao novo, sobretudo quando o novo exige conversão de mentalidade e abandono de privilégios. A filosofia existencial ajuda a compreender esse drama: a liberdade assusta, porque implica responsabilidade. A psicologia aponta como os mecanismos de defesa, como a negação e a projeção, surgem diante da Palavra que desinstala. Mas é justamente nesse confronto que a salvação acontece. Jesus passa pelo meio deles e segue adiante (Lc 4,30): não se deixa deter pelo medo ou pela violência, porque sua missão é maior do que a rejeição.

Hoje, diante desse Evangelho, somos chamados a perguntar: 

  • Qual é o nosso projeto “hoje”? 
  • Onde precisamos deixar que a Palavra se cumpra? 
  • Onde resistimos, como os nazarenos, porque a mensagem nos incomoda? 
  • E como comunidade, estamos dispostos a abrir espaço para os pobres, os estrangeiros, os diferentes, ou continuamos a reproduzir muros e exclusões? 

A Boa Nova de Jesus não cabe em templos fechados, nem em projetos de poder, mas floresce quando a Palavra é acolhida como fermento de vida nova, reconciliação e justiça.



DNonato – Teólogo do Cotidiano