domingo, 31 de agosto de 2025

Um breve olhar sobre Lucas 4,16-30

 
Era sábado em Nazaré. O pequeno vilarejo, perdido entre colinas da Galileia, respirava o silêncio sagrado do dia consagrado ao Senhor. As ruas de pedra, iluminadas pela luz clara da manhã, conduziam homens, mulheres e crianças à sinagoga. O ar estava carregado de expectativa: Jesus, o filho do carpinteiro, aquele que crescera ali, que aprendera as Escrituras desde menino, estava de volta depois de percorrer outras cidades. Sua fama começava a ecoar discretamente pelos povoados; falava-se de curas, palavras de sabedoria e gestos de compaixão. Os olhares se cruzavam em curiosidade e orgulho local: 

  • “Será que é verdade o que dizem? Nosso conterrâneo seria mesmo um profeta?”.

A sinagoga, simples e austera, se enchia do murmúrio dos salmos recitados em coro. O rolo das Escrituras foi entregue a Jesus. Ele o abriu, não como quem apenas lê, mas como quem respira cada palavra. Procurou Isaías e encontrou: “O Espírito do Senhor está sobre mim, porque me ungiu para anunciar a Boa Nova aos pobres, a libertação aos cativos, a vista aos cegos, para pôr em liberdade os oprimidos e proclamar um ano da graça do Senhor”. A assembleia suspendeu a respiração. Jesus fechou o livro, entregou-o ao ministro e, sentado, pronunciou: “Hoje se cumpriu esta passagem da Escritura que acabais de ouvir”.

O silêncio da admiração foi logo rompido pelo ruído das interrogações. O mesmo olhar que antes reluzia em orgulho agora se enevoava em desconfiança. “Não é este o filho de José? Como ousa aplicar a si palavras tão grandes? E como ousa lembrar-nos que Deus age também entre estrangeiros, viúvas de Sarepta, sírios leprosos, gente que não é do nosso povo?”. O ambiente se incendiou em fúria. O que começou como celebração terminou em rejeição. Os que O haviam acolhido queriam agora expulsá-Lo.

Colocada no início da vida pública de Jesus, esta passagem constitui, conforme Lucas, o programa de toda a atividade de Jesus. Isaías 61,1-2 anunciara que o Messias iria realizar a missão libertadora dos pobres e oprimidos. Jesus aplica a passagem a si mesmo, assumindo-a no hoje concreto em que se encontra. No ano da graça eram perdoadas todas as dívidas e se redistribuíam fraternalmente todas as terras e propriedades: Jesus encaminha a humanidade para uma situação de reconciliação e partilha, que tornam possíveis a igualdade, a fraternidade e a comunhão. A dúvida e a rejeição de Jesus por parte de seus compatriotas fazem prever a hostilidade e a rejeição de toda a atividade de Jesus por parte de todo o seu povo. No entanto, Jesus prossegue seu caminho, para construir a nova história que engloba toda a humanidade.

Este texto ocupa um lugar privilegiado tanto no Evangelho de Lucas quanto na vida litúrgica da Igreja. É proclamado em sua totalidade na segunda-feira da 22ª semana do Tempo Comum, mas também aparece parcialmente, nos versículos 14-21, no 3º Domingo do Tempo Comum do ano C, que desde 2019 foi instituído pelo Papa Francisco como o Domingo da Palavra de Deus. A coincidência é profundamente significativa: a Palavra de Deus é celebrada no dia em que Jesus, na sinagoga de Nazaré, proclama que “Hoje se cumpriu esta passagem da Escritura que acabais de ouvir” (Lc 4,21). A liturgia nos ajuda a perceber duas dimensões complementares. No domingo, somos chamados a contemplar a força da Palavra que se atualiza e se encarna no hoje da comunidade; na segunda-feira, experimentamos a resistência que esta mesma Palavra provoca quando desestabiliza certezas, privilégios e exclusivismos. A Palavra consola e liberta, mas também inquieta e provoca, porque denuncia estruturas de opressão e convoca à conversão.

A cena é carregada de densidade teológica, antropológica e histórica. Jesus entra na sinagoga, lugar de memória e identidade, onde a Escritura era lida e interpretada. O gesto de levantar-se para ler não é apenas litúrgico, é também político e profético: ele se coloca de pé diante da tradição para reatualizá-la. O rolo que lhe entregam contém o texto de Isaías 61, que anunciava o envio do Espírito sobre o ungido para libertar os pobres, proclamar a libertação dos cativos, dar vista aos cegos e libertar os oprimidos. Esse texto, profundamente enraizado na esperança de Israel, ganha um horizonte novo em Jesus, porque não é mais promessa futura, mas realidade presente. O termo “hoje” ressoa aqui como palavra-chave: a salvação não é adiada, mas se concretiza no agora da história.

A menção ao “ano da graça do Senhor” remete diretamente ao jubileu descrito em Levítico 25, quando as dívidas eram perdoadas, os escravos libertos e as terras devolvidas aos seus donos originais. Era a grande festa da justiça restaurada e da igualdade social. A leitura que Jesus faz de Isaías projeta essa tradição para além do ritualismo: não se trata apenas de um calendário religioso, mas da transformação radical da vida social, econômica e política. Aqui a teologia se encontra com a antropologia e a sociologia: a fé bíblica não se reduz a práticas privadas, mas gera consequências concretas para a organização da sociedade. O jubileu, ao ser assumido por Jesus, denuncia todas as formas de acumulação que excluem, todas as lógicas de exploração que concentram poder e riqueza, e aponta para a utopia do Reino, onde o pão é partilhado, os corpos são curados e a dignidade é restituída.

A reação dos ouvintes é ambígua. Primeiro, todos se admiram das palavras cheias de graça que saíam da boca de Jesus. Mas logo o fascínio cede lugar à rejeição: “Não é este o filho de José?” (Lc 4,22). Essa pergunta revela uma dificuldade antropológica e psicológica recorrente: o preconceito diante do conhecido, a resistência em reconhecer grandeza e novidade no próximo. A psicologia social explica que o grupo tende a rejeitar aquele que, vindo de dentro, rompe os limites do esperado. O profeta incomoda porque mostra que o real pode ser diferente, que o destino não é inevitável, que a história pode mudar.

Jesus, no entanto, não recua. Ele recorda a tradição profética de Elias e Eliseu, mostrando que a graça de Deus não se limita a Israel, mas alcança também a viúva de Sarepta, em Sidônia, e o general Naamã, da Síria (cf. 1Rs 17,9; 2Rs 5,1-14). Aqui está o coração universalista do Evangelho de Lucas: o Reino não é monopólio de um povo ou de uma religião, mas dom oferecido a todos, especialmente aos que vivem nas periferias geográficas e existenciais. Essa ampliação do horizonte é insuportável para os que querem uma fé domesticada, nacionalista e excludente. O resultado é a violência: arrastam Jesus para fora e querem matá-lo. É o prenúncio da cruz, sinal de que a fidelidade ao projeto do Pai não se faz sem conflito com os poderes estabelecidos.

Esse relato encontra paralelos nos outros sinóticos. Em Marcos 6,1-6 e em Mateus 13,53-58, a cena do profeta rejeitado em sua terra aparece em contexto diferente, mas com a mesma mensagem: a incredulidade impede a acolhida do Reino. Lucas, porém, dá maior ênfase programática, colocando essa cena logo no início da missão de Jesus. É como se dissesse: este será o caminho – proclamar a libertação, enfrentar a rejeição, abrir as fronteiras, seguir até Jerusalém, onde a recusa culminará na cruz e, pela ressurreição, se transformará em vida nova para toda a humanidade.

Santo Irineu via nela a confirmação de que Cristo recapitula toda a história em si mesmo, inaugurando um novo tempo onde o Espírito age no hoje da Igreja. Orígenes, em sua homilia sobre Lucas, sublinhava que o “hoje” da Palavra não está preso ao passado, mas acontece sempre que o Evangelho é proclamado na assembleia. Santo Agostinho insistia que a Palavra de Deus não é letra morta, mas verbo vivo que transforma a vida daquele que a escuta com fé. A tradição patrística nos convida, portanto, a viver essa atualização não como memória distante, mas como compromisso presente.

Percebemos também o alcance sociopolítico dessa passagem. A proclamação de Jesus confronta sistemas de dominação e desigualdade. Hoje, a mesma Palavra denuncia as teologias distorcidas que instrumentalizam o Evangelho. Contra a teologia da prosperidade, recorda-se que o Messias não veio acumular riquezas nem prometer sucesso material, mas anunciar boas notícias aos pobres. Contra a teologia do domínio, mostra-se que Jesus não busca poder, mas serviço. Contra o individualismo, proclama-se que a salvação é comunhão e partilha. Contra a fé mercadoria, que transforma rituais em negócios e igrejas em mercados de milagres, afirma-se que a graça é gratuita, dom de Deus, e não produto de consumo.

O clericalismo também é desmascarado nesse texto. Quando a fé se reduz a poder clerical, perde-se o dinamismo profético de Jesus. O Papa Francisco recorda, na Evangelii Gaudium (n. 102), que o clericalismo é uma das tentações mais nocivas da Igreja, porque gera uma elite separada do povo, sufocando a profecia. Em Lucas 4, Jesus se coloca não como um sacerdote distante, mas como um profeta inserido no meio do povo, com autoridade que nasce do Espírito e da fidelidade à Palavra.

 Gaudium et Spes (n. 63-66) reforçam que as alegrias e esperanças, as tristezas e angústias dos pobres e de todos os que sofrem são também as alegrias e esperanças dos discípulos de Cristo. A Fratelli Tutti (n. 39) denuncia a globalização da indiferença e convoca a uma fraternidade aberta. Nesse horizonte, Lucas 4,16-30 nos interpela a reconhecer que a Palavra viva de Jesus continua a nos chamar a construir uma sociedade mais justa, solidária e inclusiva.

Por fim, essa passagem revela uma verdade antropológica universal: o ser humano tende a resistir ao novo, sobretudo quando o novo exige conversão de mentalidade e abandono de privilégios. A filosofia existencial ajuda a compreender esse drama: a liberdade assusta, porque implica responsabilidade. A psicologia aponta como os mecanismos de defesa, como a negação e a projeção, surgem diante da Palavra que desinstala. Mas é justamente nesse confronto que a salvação acontece. Jesus passa pelo meio deles e segue adiante (Lc 4,30): não se deixa deter pelo medo ou pela violência, porque sua missão é maior do que a rejeição.

Hoje, diante desse Evangelho, somos chamados a perguntar: 

  • Qual é o nosso projeto “hoje”? 
  • Onde precisamos deixar que a Palavra se cumpra? 
  • Onde resistimos, como os nazarenos, porque a mensagem nos incomoda? 
  • E como comunidade, estamos dispostos a abrir espaço para os pobres, os estrangeiros, os diferentes, ou continuamos a reproduzir muros e exclusões? 

A Boa Nova de Jesus não cabe em templos fechados, nem em projetos de poder, mas floresce quando a Palavra é acolhida como fermento de vida nova, reconciliação e justiça.



DNonato – Teólogo do Cotidiano


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