sábado, 30 de agosto de 2025

Um outro olha sobre Lucas 14,1.7-14 - 22⁰domingo do tempo comum .

 

A Última Posição que Eleva: Reflexões sobre Lucas 14,1.7-14

Nao é  primeira vez  que  nos deparemos com as leituras do 22⁰ domingo do tempo comum do lecionário do ano C que tem a seguintes liturgia: 1ª leitura Eclesiástico 3,19-21.30-31; Salmo 67(68),4-5ac.6-7ab.10-11 (R. cf. 11b) e 2ª leitura carta aos Hebreus 12,18-19.22-24a e o evangelho de São Lucas 14,1.7-14, também proclamado no sábado da 30ª Semana do Tempo Comum do ano ímpar. Já refletinos em  2022 no blog e no canal do  YouTube:  em 2020, em 2021 e 2023

A liturgia  nos apresenta um convite profundo: compreender a própria posição diante de Deus, reconhecer a humildade como condição de liberdade e aceitar a providência divina sem comparações ou vaidade. Se soubéssemos exatamente onde Deus nos coloca, aceitaríamos com serenidade; porém, os desígnios divinos se escondem em mistério, e nossa tendência natural é medir-nos pelos olhos humanos, competindo, comparando e buscando prestígio. Por isso, o Evangelho nos propõe o caminho da última posição, de onde seremos elevados com honra pelo Senhor, não por mérito humano, mas por sua graça.

Esse Evangelho nos coloca diante de uma cena cotidiana, mas profundamente simbólica: um banquete, um convite, a disputa pelos primeiros lugares. Jesus, atento ao movimento humano, revela que nas mesas da vida se manifesta também a luta pelo poder, o desejo de reconhecimento e a ânsia por prestígio. O coração humano, ferido pelo egoísmo, busca visibilidade, deseja ser visto e aplaudido. Mas o Mestre propõe caminho contrário: não correr para os primeiros lugares, mas ocupar o último, confiando que Deus nos conduzirá ao lugar que nos cabe, em tempo e medida perfeitos. Esta escolha não é resignação, mas ato de liberdade e coragem, que nos coloca em sintonia com a lógica do Reino.

A Escritura amplia e confirma essa lição. Isaías anuncia: “O Senhor preparará para todos os povos, neste monte, um banquete de manjares gordurosos” (Is 25,6). O convite é inclusivo, especialmente aos marginalizados, aos que a sociedade rejeita. O Apocalipse ecoa a mesma promessa: “Felizes os convidados para a ceia das núpcias do Cordeiro” (Ap 19,9). A parábola do banquete das bodas (Mt 22,1-14) reforça: não basta estar presente; é necessário vestir-se com a humildade da conversão, estar em coerência com a graça recebida. O homem que entra sem a veste nupcial é expulso, lembrando que o banquete exige disposição do coração, e não apenas presença física.

A busca pelos primeiros lugares é uma constante do ser humano e  Jesus descreve: essa falha humana a  necessidade de reconhecimento, a vaidade e o medo da invisibilidade moldam relações desde sempre. A antropologia evidencia que muitas culturas incorporam rituais de rebaixamento e ascensão como espaço de transformação e aprendizagem social. Jesus inverte esta lógica: a verdadeira grandeza não se impõe, não se busca pelo aplauso, mas se manifesta no serviço e na solidariedade.

O Eclesiástico alerta para a tentação da comparação: “Não vos compareis, nem com os que são maiores que vós, nem com os vossos inferiores”. A psicologia contemporânea confirma que comparar-se corrói o eu, gera ansiedade e ressentimento. A humildade cristã nos liberta desse ciclo, promovendo autoestima saudável que não depende de superioridade percebida, mas da relação com Deus e com o próximo. O Salmo 67 recorda que Deus acolherá os órfãos, fará justiça aos necessitados e dará abrigo aos solitários, mostrando que a mesa do Reino é inclusiva e acolhedora.

A carta aos Hebreus apresenta contraste entre o monte de terror e a assembleia festiva do Deus vivo (Hb 12,18-24), na mediação de Cristo, cuja morte e ressurreição inauguram a nova aliança. O convite divino é à comunhão transformadora, que transcende estrutura social e reconhecimento humano. A humildade se manifesta como liberdade interior, serviço e amor, enquanto a soberba se revela como prisão da alma.

Esse chamado toca diretamente nossa realidade. Quantas vezes a Igreja se deixa seduzir pela lógica dos primeiros lugares: púlpitos transformados em palcos de vaidade, celebrações reduzidas a espetáculos, ministérios usados como espaço de distinção e não de serviço. O clericalismo, essa chaga denunciada pela Igreja em tantos documentos, é expressão dessa mesma lógica: a sede de estar acima e não no meio; de ser servido e não de servir. Em memória do Papa Francisco, recordamos suas palavras na Evangelii Gaudium (n. 114), quando advertia contra aqueles que buscam privilégios dentro da comunidade e esquecem a gratuidade do Evangelho. Sua voz, ainda viva em seu magistério, permanece como denúncia e convite à conversão.

É aqui que ressoa o canto do Magnificat de Maria (Lc 1,46-55). Ao proclamar que "a minha alma engrandece ao Senhor" e que Ele "derruba do trono os poderosos e eleva os humildes", Maria nos oferece o antídoto perfeito para a lógica do orgulho e da busca pelos primeiros lugares. Enquanto Lucas 14,1.7-14 nos mostra convidados disputando assentos e posições de honra, Maria nos ensina a postura do serviço humilde, da gratuidade e do reconhecimento de Deus como centro de toda grandeza. Seu canto é um espelho para a comunidade eclesial: não se trata de ser exaltado entre os homens, mas de permitir que Deus seja exaltado por meio de nossa humildade e serviço.

Assim, a experiência do Magnificat proclamado  no terceiro  domingo  de agosto não é apenas uma expressão de louvor pessoal, mas uma crítica profética à lógica dos privilégios. Ela nos convida a celebrar a Eucaristia e a vida comunitária não como palco de distinção, mas como espaço de serviço, atenção ao pequeno e presença solidária junto aos marginalizados, exatamente como o Evangelho nos chama.

Essa lógica de exclusão se repete nas estruturas sociais modernas. A meritocracia e o discurso da extrema direita transformam a mesa em privilégio de poucos e marginalizam a maioria. A teologia da prosperidade converte fé em mercadoria, legitima privilégios e ignora desigualdades, sendo contrária ao Evangelho. A Gaudium et Spes (n. 63-66) denuncia a concentração de bens e a exclusão social, afirmando que ferem a dignidade humana e violam o desígnio divino. O banquete do Reino é, ao contrário, espaço de justiça, partilha e inclusão, onde marginalizados e humildes são acolhidos e elevados.

Santo Agostinho advertia sobre a soberba espiritual disfarçada de virtude; João Crisóstomo via na humildade a raiz de todas as virtudes; Basílio de Cesareia afirmava que a caridade floresce apenas em corações humildes. Filosoficamente, Cristo inverte a lógica da grandeza: não é a imponência, mas o serviço; não é dominar, mas cuidar; não é o reconhecimento humano, mas a coerência diante de Deus. Kierkegaard recorda o paradoxo da fé: perder-se para encontrar-se em Deus. Aristóteles, que valorizava a magnanimidade, não poderia imaginar que a verdadeira grandeza está na humildade radical proposta por Cristo.

O último lugar, aos olhos de Jesus, não é ausência de dignidade, mas plenitude de sentido. É ali que se manifesta a verdadeira grandeza: não a que impõe, mas a que serve; não a que domina, mas a que cuida. Estar no último lugar é participar da lógica do Reino, onde “os últimos serão os primeiros” (Mt 20,16). O banquete de Deus não se abre pela disputa, mas pela gratuidade e misericórdia. A mesa do Reino é espaço de transformação, onde todos são convidados sem que mérito humano determine a entrada.

Hoje, precisamos discernir:

  •  Em quais mesas nos sentamos?
  •  Com que vestes participamos?
  •  Que lugar buscamos? 

A fé nos convida a romper com vaidade, insegurança e falsa segurança do prestígio para revestir-nos da veste da humildade, tornando-nos verdadeiramente dignos do banquete eterno. Felizes são aqueles que, sem pretensão, permanecem firmes até a ceia das núpcias do Cordeiro.

Escolher o último lugar é ato profético que confronta todas as formas de dominação, individualismo, clericalismo e mercantilização da fé. É afirmar que verdadeira grandeza não se mede pelo reconhecimento humano, mas pelo amor, misericórdia e serviço. É compreender que a vida de comunhão não se constrói pelo destaque pessoal, mas pelo cuidado com os outros, abertura aos marginalizados e compromisso com justiça. É, em última análise, viver a lógica da cruz e experimentar a liberdade que só Deus oferece.

A mesa do Reino é espaço de transformação radical. Não se entra nela com trajes de prestígio, mas com veste de humildade, misericórdia e amor gratuito. Não há honra maior do que ouvir, no último lugar, a voz do Senhor: “Amigo, vem, sobe mais alto” (Lc 14,10). Esse convite é para cada um de nós, em nossa vida pessoal, comunitária e social. Escolher o último lugar é viver verdadeira liberdade, grandeza e comunhão, participando do banquete eterno do Cordeiro.



DNonato – Teólogo do Cotidiano


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