quinta-feira, 30 de outubro de 2025

Um breve olhar sobre Lucas 14,1-6

O sábado que cura e a misericórdia que liberta

Entre as muitas mesas do Evangelho de Lucas, esta é talvez a mais tensa. O evangelista que mais fala de banquetes, partilhas e refeições nos coloca diante de uma mesa onde a vigilância substituiu a hospitalidade, onde o convite esconde uma armadilha e a expectativa se mistura à suspeita. É sexta-feira da 30ª semana do Tempo Comum, e Jesus, convidado para comer na casa de um dos chefes dos fariseus, transforma o almoço em lugar de revelação. Ele entra sabendo que será observado, que cada gesto seu será medido com a régua da letra fria da Lei. Mas é justamente nesse espaço de rigidez que o sopro da misericórdia se manifesta.

Diante dele está um homem hidrópico — inchado pelo sofrimento, pelo descuido e pelo isolamento. Lucas narra o episódio com simplicidade, mas cada detalhe é ponte para compreender a radicalidade do gesto de Jesus. O verbo “observar” não indica atenção respeitosa; carrega o peso da suspeita, da armadilha planejada. É o mesmo olhar que hoje condena casais em segunda união, que julga uniões homoafetivas, que se recusa a dialogar com quem professa outra fé. Jesus, consciente do desafio, pergunta: “É permitido ou não curar no sábado?” Diante do silêncio, Ele toma a mão do homem, o cura e o despede. E depois questiona novamente: “Se um de vós tem um filho ou um boi que cai num poço, não o tira logo, mesmo em dia de sábado?”

Este gesto resume toda a revolução do Evangelho. Jesus confronta não uma lei, mas uma interpretação que perdeu contato com a vida. O sábado, originalmente sinal da aliança e da liberdade — “Lembra-te do dia de sábado para o santificar” —, havia se tornado barreira, instrumento de controle e exclusão. A lei que nasce do amor de Deus fora transformada em fardo. Jesus não destrói o sábado; Ele o devolve ao seu sentido mais profundo: o descanso do sábado é o repouso da vida reconciliada, não a inércia diante do sofrimento.

Essa cena ecoa em outros episódios do Evangelho: o paralítico da piscina de Betesda, o homem da mão seca, os discípulos colhendo espigas no sábado. O conflito é sempre o mesmo: a lei confronta a dor humana. Em todos esses casos, o gesto de Jesus revela que a misericórdia não transgride a lei; ela cumpre a lei em seu núcleo mais profundo. O silêncio dos fariseus, ontem e hoje, evidencia o medo de se comprometer com a vida. O Evangelho nos interpela: responder à dor exige coragem, mas muitos preferem o silêncio.

A hidropisia, doença física do homem, também é símbolo do coração que retém o que deveria fluir. Ele representa a humanidade saturada de regras, tradições e seguranças, mas incapaz de deixar a água da graça correr. Jesus toca esse corpo endurecido e devolve o fluxo da vida. Psicologicamente, Ele rompe o bloqueio afetivo, a paralisia religiosa, a estagnação espiritual. A cura não é apenas física: é libertação da alma do medo, do orgulho e da indiferença.

O sábado era para o judeu do século I sinal de identidade e resistência cultural. Cumpri-lo era um ato de preservação diante de forças externas, mas a tradição, quando rígida demais, havia transformado a prática em prisão. Jesus reinventa o sábado: não desrespeita a lei, mas a universaliza, mostra que a fidelidade a Deus se mede pelo amor à vida, não pelo ritual.

O texto evidencia o perigo de religiões que se tornam ilhas de pureza. Quando a fé se distancia da dor do outro, quando a tradição se torna muleta para exclusão, o silêncio substitui a ação. O fariseu moderno, em qualquer tempo, teme perder controle, reputação ou prestígio, e o silêncio se torna complicidade. A antropologia bíblica nos ensina que a pureza ritual existia para proteger a vida, e não para aprisioná-la; Jesus devolve à prática o seu sentido humano e compassivo.

No plano simbólico, o hidrópico é também imagem de uma fé inchada de dogmas, mas seca de compaixão. A cura devolve a leveza, assim como a água purifica e dá movimento à vida. A tradição profética do Antigo Testamento ecoa aqui: “Quero misericórdia, e não sacrifício” (Oséias 6,6); “Aprendei a fazer o bem; buscai a justiça, ajudai o oprimido” (Isaías 1,17). Jesus cumpre e supera essas palavras, demonstrando que a Lei de Deus é sempre a favor da vida, nunca contra ela.

A patrística aprofunda ainda mais o sentido. Santo Agostinho lembra que “quem ama cumpre o sábado interior, pois descansa em Deus fazendo o bem”. São João Crisóstomo afirma que “o sábado é para o homem, e não o homem para o sábado, pois Deus não descansa da misericórdia”. Orígenes interpreta a cura do hidrópico como símbolo da alma inchada pelo orgulho, que só reencontra leveza quando tocada pela humildade de Cristo. Esses ecos da tradição mostram que o Evangelho não é ruptura, mas continuação da sabedoria divina que sempre prioriza a vida.

Teologicamente, o texto denuncia todas as formas de farisaísmo moderno: a teologia da prosperidade, que promete bênção em troca de mérito; a teologia do domínio, que transforma fé em instrumento de poder; o individualismo religioso, que mede a bênção pelo retorno pessoal; a fé-mercadoria, que transforma graça em espetáculo e milagre em marketing. Jesus, ao curar discretamente, mostra que o Reino não se vende nem se ostenta, que a misericórdia é mais valiosa que qualquer protocolo ou rito.

O Evangelho também nos convoca à ação comunitária. O fariseu observa, os doutores silenciam, mas Jesus exige uma resposta. Quem acompanha, quem se diz discípulo, não pode permanecer neutro. Psicologicamente, o silêncio é medo da mudança; espiritualmente, é abdicação do amor. A fé que não se manifesta em gesto é vazia. Antropologicamente, o ser humano se realiza na relação: negar o socorro é negar a própria humanidade.

A cena contém também um chamado ecológico e cósmico: o boi que cai no poço revela que a compaixão divina não se limita ao homem. O sábado que salva inclui toda a criação. Ignorar o sofrimento dos animais ou da terra é repetir o erro dos fariseus: transformar a lei em instrumento de dominação. O Evangelho nos convida a restaurar a harmonia da vida, do homem à criação, do corpo à alma.

Jesus permanece à mesa, paciente diante do silêncio, convocando todos à reflexão. O milagre do hidrópico é discreto, mas sua mensagem é estrondosa: a lei serve à vida, e não à morte; a misericórdia é mais importante que o ritual; a compaixão não conhece limites de horário ou tradição. Ele transforma cada refeição em liturgia viva, antecipando a Eucaristia, onde toda a criação e toda a humanidade são convidadas a compartilhar o banquete da graça.

Hoje, a pergunta de Jesus ecoa: “É permitido curar no sábado?” — e a pergunta é para nós. É permitido acolher os que vivem fora das normas? É permitido estender a mão sem calcular lucro, prestígio ou reputação? É permitido desafiar o silêncio quando a lei machuca mais do que salva? A resposta não está apenas nas palavras, mas nos gestos que escolhemos realizar: socorrer os feridos, levantar os caídos, amar sem esperar retorno.

O Evangelho nos lembra que a vida sempre se impõe à morte, a verdade sempre vence a mentira, e a misericórdia é o único caminho legítimo de santidade. O discípulo do Reino é aquele que se levanta, mesmo no sábado, para socorrer o que caiu no poço da dor. É nele que o Evangelho continua respirando, e é nesse gesto que Deus se revela: silencioso, misericordioso, transformador.

Que possamos, como Jesus nos ensinou, transformar nossas mesas em lugares de cura, nossas comunidades em espaços de vida, nossos silêncios em gestos de compaixão. O sábado pleno ainda virá, mas cada gesto de amor antecipará o Reino. Porque a lei foi feita para a vida, e a misericórdia é o verdadeiro descanso do coração humano.



DNonato – Teólogo do Cotidiano


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