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sexta-feira, 12 de setembro de 2025

Um breve olhar sobre Lucas 6, 43-49

A passagem de Lucas 6,43-49 é proclamada no sábado da 23ª semana do Tempo Comum, conforme o Leccionário Litúrgico da Igreja Católica. Neste sábado, a Palavra nos chama a refletir sobre a solidez de nossa vida espiritual e a coerência entre fé e prática, lembrando que ouvir a Palavra sem vivê-la é como construir sobre areia: fragilidade diante das tempestades da vida. Jesus nos apresenta duas imagens profundas: a árvore que se conhece pelos frutos e a construção que se mantém ou desmorona conforme o alicerce. O vento que sacode a árvore, a chuva que inunda a terra, o barro que cede sob os pés são imagens das tempestades internas e externas que todos enfrentamos. Como afirma o Salmo 1,3: “Ele é como árvore plantada junto a correntes de águas, que dá fruto no tempo certo, e cuja folha não murcha; tudo o que fizer prosperará.”

Quando Jesus fala da árvore boa que produz frutos bons e da árvore má que produz frutos ruins, ele nos convida a um exame profundo do coração. Lucas 6,45 afirma: “Do coração procedem as más intenções e as boas intenções; é disso que a boca fala.” Mateus 7,16-20 reforça: “Pelos frutos os conhecereis.” Isaías 5,1-7 denuncia o fracasso de uma vinha que deveria produzir frutos de justiça, mas que apenas produz clamor e sangue; Jeremias 17,7-8 contrapõe a confiança em Deus à esterilidade daqueles que se afastam da rocha divina. Provérbios 11,30 lembra que “o fruto do justo é árvore de vida, e quem ganha almas é sábio”, enquanto Salmo 92,13 descreve: “O justo florescerá como a palmeira, crescerá como o cedro do Líbano.” Lucas enfatiza que os frutos se manifestam concretamente: justiça, misericórdia e solidariedade são sinais de uma fé viva, não meras palavras.

Jesus elogia os pobres, denuncia os ricos e satisfeitos, e instrui seus discípulos a amar inimigos, abençoar os que os maldizem, fazer o bem sem esperar retribuição (Lc 6,20-36). A árvore boa transforma relações e denuncia injustiças; a fé encarnada desafia o individualismo, a fé como mercadoria e a teologia da prosperidade que promete sucesso em troca de dízimos. Líderes que vendem bênçãos financeiras podem parecer frutíferos, mas suas raízes apodrecem. A árvore ruim, por sua vez, produz frutos de aparências e envenena a vida alheia, seja pelo clericalismo opressor, seja por fé espetáculo que entretém sem formar, como alerta Amós 5,21-24: “Não quero a vossa festa, nem me agrada o vosso culto; traga-me justiça como água, e retidão como riacho perene.”

A parábola da casa construída sobre a rocha e sobre a areia convida à profundidade. Lucas 6,48 enfatiza que o homem que constrói sobre a rocha cavou fundo e pôs o alicerce sobre a pedra firme. O cavar simboliza esforço, discernimento e compromisso. No Oriente Médio, casas sobre areia eram vulneráveis às cheias; apenas o alicerce profundo resistia. A rocha é Cristo, a Palavra encarnada que sustenta a vida diante das tempestades (Mt 7,24-25; Mc 4,1-20; Is 28,16). A areia representa falsas seguranças: riqueza, prestígio, autoridade clerical, fé como investimento pessoal. Ouvir sem praticar gera fragmentação, angústia e hipocrisia (Tg 1,22-25). Kohlberg observa que a maturidade ética se mede na ação; ouvir sem agir mantém a moral em estado infantil.

A árvore que produz frutos bons e a casa firme sobre a rocha revelam a integração de fé, razão, emoção e ação. Comunidades que constroem sobre areia – luxo ritualístico, poder clerical, fé espetáculo – desmoronam diante de crises. A crítica de Jesus é direta à teologia do domínio e da prosperidade: fé que se transforma em mercadoria promete sucesso, mas não sustenta vidas. Kierkegaard lembra que a fé exige salto existencial; Hannah Arendt alerta que superficialidade conduz à banalidade do mal. Como Mateus 23,23-24 adverte, não se deve negligenciar justiça, misericórdia e fé.

A patrística reforça essa perspectiva: Santo Agostinho ensina que ouvir sem praticar é olhar o reflexo sem entrar na água; São João Crisóstomo destaca a importância da firmeza do fundamento; Orígenes afirma que o que não está enraizado na rocha divina será levado pela maré da vaidade; Gregório de Nissa reforça que a sabedoria divina constrói alicerces invisíveis, mas firmes. A tradição da Igreja confirma que fé autêntica se manifesta na coerência entre palavra, ação e comunidade. O Concílio Vaticano II denuncia a busca de riqueza e poder em detrimento da dignidade humana; Evangelii Gaudium enfatiza que a fé transforma o mundo e convoca à ação concreta; Fratelli Tutti alerta para sociedades construídas sobre egoísmo e exclusão.

A humanidade sempre buscou fundamentos sólidos. A pedra simboliza estabilidade e divindade em diversas culturas. Construir sobre a rocha é gesto existencial: buscar segurança última naquilo que transcende. Pseudorrochas – dinheiro, prestígio, autoridade clerical – conduzem à ruína; Cristo sustenta vidas e gera comunidade. Provérbios 24,3-4 nos lembra: “Com sabedoria se edifica a casa, e com discernimento ela se firma; com conhecimento, os cômodos se enchem de todas as riquezas preciosas e deleitosas.”

O clericalismo é diretamente desafiado: a rocha não é a autoridade humana, mas a Palavra encarnada que exige conversão, serviço e humildade. Verdadeira autoridade é do discípulo que escuta, pratica e constrói com os outros, não do líder que se impõe. A Igreja é casa construída sobre a rocha, não fortaleza sobre areia. A Palavra de Jesus é alicerce que sustenta a vida comunitária; coerência entre fé e prática garante a solidez. O Papa Francisco, já falecido, lembrava que a Igreja deve ser uma comunidade de discípulos missionários, não uma instituição que busca poder ou prestígio. Pergunta-se ao final: 

  • Qual é a raiz da minha vida? 
  • Sobre qual rocha tenho construído meu ser? 

A resposta define não apenas o presente, mas também a resistência às tempestades futuras, reafirmando que a fidelidade à Palavra é a única base que não se abala.



DNonato - Teólogo do Cotidiano 


domingo, 17 de agosto de 2025

Um breve olhar sobre Mateus 19,16-22

 
"O Tesouro da Entrega: Seguindo Jesus além do apego"

O Evangelho de Mateus 19,16-22, proclamado na segunda-feira da 20ª semana do Tempo Comum, encontra ecos em outros momentos da liturgia, como no 28º Domingo do Tempo Comum, ano B, quando Marcos relata a mesma narrativa (Mc 10,17-30), e também em Lucas 18,18-30, utilizado em dias da liturgia ferial. A insistência da Igreja em nos fazer ouvir essa passagem mais de uma vez ao longo do ano não é casual: trata-se de um espelho evangélico em que somos convidados a nos reconhecer e a confrontar nosso apego ao que é transitório. A repetição litúrgica é pedagógica, porque a renúncia, o seguimento e a liberdade do coração atravessam toda a história da fé e permanecem atualíssimos. Não se trata de uma reflexão sobre moralismo abstrato, mas de uma chamada concreta à conversão interior e à justiça social.

A narrativa inicia com o jovem rico correndo até Jesus, reconhecendo nele um Mestre digno de respeito. Sua pergunta é profunda e legítima: “Mestre, que devo fazer de bom para alcançar a vida eterna?” (Mt 19,16). Esse desejo não surge do vazio, mas ecoa o anseio antigo de Israel pelo bem e pela paz, o shalom, presente no livro do Deuteronômio: “Ponho diante de ti a vida e a morte… escolhe, pois, a vida” (Dt 30,15-20). A sabedoria israelita já havia descrito a vida como dom da fidelidade (Pr 3,16-18), e os salmos suplicavam: “Mostra-me, Senhor, os caminhos da vida” (Sl 16,11). O jovem, portanto, não é um cínico, mas alguém em busca de plenitude. No entanto, sua mentalidade revela a lógica meritocrática de seu tempo — e a nossa: o que devo fazer, qual esforço extra, qual ação me garante vantagem? É a tentação de transformar a vida eterna em produto, prêmio ou mérito humano. João 6,28-29 mostra a mesma inquietação: “Que devemos fazer para realizar as obras de Deus?” A resposta de Jesus permanece: não se trata de multiplicar obras, mas de entrar em relação com o único Bem verdadeiro. “Por que me perguntas sobre o que é bom? Um só é o Bom” (Mt 19,17). A bondade não é soma de obras, mas fruto da comunhão com Deus.

Jesus então enumera os mandamentos, mas destaca aqueles que revelam a essência da Lei e dos Profetas: não matar, não adulterar, não roubar, não levantar falso testemunho, honrar pai e mãe, amar o próximo como a si mesmo (cf. Mt 19,18-19; Lv 19,18). O jovem afirma: “Tenho observado tudo isso. Que me falta ainda?” (Mt 19,20). A pergunta é universal: cumprir normas é importante, mas não basta; a vida clama por algo mais. A obediência formal não preenche o coração inquieto, como ensina Santo Agostinho: “Fizeste-nos para Ti, Senhor, e o nosso coração está inquieto enquanto não repousar em Ti” (Confissões, I,1). Nicodemos em João 3, mesmo conhecedor da Lei, procura Jesus na noite, evidenciando que o reconhecimento religioso não substitui a transformação do coração.


O passo decisivo aparece quando Jesus diz: “Se queres ser perfeito, vai, vende tudo o que tens, dá aos pobres, e terás um tesouro no céu. Depois, vem e segue-me” (Mt 19,21). A perfeição não é impecabilidade moral nem acumulação de virtudes, mas liberdade do apego e coragem de seguir Jesus. Marcos acrescenta um detalhe precioso: “Jesus olhou para ele e o amou” (Mc 10,21). O chamado é convite amoroso, não imposição coercitiva. No entanto, o jovem “retirou-se cheio de tristeza, porque possuía muitos bens” (Mt 19,22). Sua tristeza simboliza a escravidão do apego: quanto mais se possui, maior o medo de perder. Esta é a mesma cegueira denunciada na parábola do rico insensato (Lc 12,16-21) e do rico que ignora Lázaro à sua porta (Lc 16,19-31).

A hermenêutica do texto se abre em várias direções. Psicologicamente, revela como a identidade baseada em posse e status produz ansiedade e vazio existencial. Sociologicamente, o capitalismo moderno reproduz a lógica da acumulação sem sentido, produzindo sociedades ricas em mercadorias e pobres em sentido. A antropologia mostra que culturas antigas já compreendiam que a abundância só se torna vida quando partilhada; do contrário, vira maldição, como o maná que apodrecia quando acumulado (Ex 16,20). Filosoficamente, Aristóteles enfatizava a vida virtuosa, e Lévinas a responsabilidade ética pelo outro. A teologia vê nesse texto denúncia da idolatria: confiar mais na riqueza do que em Deus é afastar-se do Reino. Não por acaso, Jesus afirma: “É mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma agulha do que um rico entrar no Reino” (Mt 19,24), ecoando Isaías 5,8 e Amós 6,1-7, que criticam a opulência e a exploração dos pobres.

A tradição patrística reforça essa leitura. São Basílio advertia: “O supérfluo que tu guardas pertence aos pobres; as roupas que mofam nos teus armários pertencem aos que estão nus” (Homilia sobre a Avarícia). João Crisóstomo afirmava: “Não compartilhar com os pobres é roubar e privá-los da vida” (Homilias sobre Mateus, 50,3). Orígenes lembrava: “Seguir Cristo não é apenas imitá-lo, mas deixar-se transformar interiormente por Ele” (Comentário sobre Mateus, XIII,24). Ambrósio de Milão denunciava: “A terra foi criada em comum para todos, e a avareza dos ricos a transformou em posse exclusiva” (De Nabuthe, 12). A patrística inteira insiste: a riqueza não é neutra; torna-se diabólica quando fecha o coração à fraternidade.

O Evangelho também nos convida a olhar criticamente para situações atuais dentro da própria Igreja. Não é raro que padres, bispos e autoridades eclesiásticas acumulem bens materiais ou vivam em conforto e luxo, distantes da simplicidade que o Evangelho propõe. Esse apego contradiz frontalmente o chamado de Jesus à renúncia e ao serviço desinteressado: o ministério, que deveria ser expressão do amor e da partilha, corre o risco de se transformar em prestígio, poder ou mercadoria espiritual. Tais condutas não apenas escandalizam os fiéis, mas obscurecem a credibilidade da Igreja como comunidade profética, capaz de anunciar a justiça e a fraternidade. O chamado de Cristo permanece inalterado: seguir Jesus exige desapego, coragem de pobreza evangélica e compromisso concreto com os pobres. Qualquer riqueza que fecha o coração, restringe a liberdade ou impede o serviço ao próximo transforma-se em obstáculo ao Reino. Por isso, a renúncia não é apenas uma virtude individual, mas exigência de coerência para toda a comunidade eclesial, lembrando que o Evangelho se cumpre na entrega e na partilha, e não na acumulação ou no conforto pessoal. Este Evangelho denuncia frontalmente as teologias contemporâneas deformadas. A teologia da prosperidade é desmentida: Jesus não promete riqueza, mas pede renúncia. A teologia do domínio, que transforma a fé em projeto de poder, é desmontada: o Reino não se impõe, recebe-se na entrega. O individualismo religioso é insuficiente; a vida eterna passa pela partilha com os pobres. A fé como mercadoria, transformando bênçãos em produtos, é desmascarada pela gratuidade do seguimento. O clericalismo, igualmente, é atingido em cheio: títulos e funções nada valem se o coração não se desapega para servir. O Papa Francisco lembra: “O clericalismo é uma perversão” porque substitui serviço por poder.

O Magistério atual reafirma esta perspectiva. Gaudium et Spes (n. 63-66) alerta contra medir o homem pelo que possui. A Evangelii Gaudium denuncia: “esta economia mata” (EG 53). A Fratelli Tutti insiste que não há humanidade sem fraternidade e que não há futuro para quem escolhe muros e exclusão. O desapego não é idealismo, mas condição de liberdade, justiça e fraternidade concreta, traduzida em escolhas políticas, sociais e comunitárias.

O jovem rico não é apenas personagem do passado; é retrato de cada um de nós, de nossas comunidades e da própria Igreja, sempre tentada a se apegar a bens, prestígios e tradições rígidas. A liturgia repete esse texto para que não nos contentemos com o mínimo da lei, mas nos lancemos na plenitude do amor. Não basta não matar: é preciso promover a vida. Não basta não roubar: é preciso partilhar. Não basta não levantar falso testemunho: é preciso colocar-se ao lado da verdade. Não basta cumprir mandamentos: é preciso seguir Jesus. A tristeza do jovem rico é também a tristeza de igrejas e indivíduos que se apegam a privilégios, prestígio ou segurança material, perdendo a liberdade profética.

Assim, a mensagem final se faz clara: a alegria do cristão não está na posse ou no controle, mas na entrega. O verdadeiro tesouro não se mede em bens, mas em amor doado, liberdade conquistada e coração aberto. Seguir Jesus é aceitar o risco da entrega, perder para ganhar, deixar para viver plenamente. Como Paulo declara: “Tudo considero perda diante da sublimidade do conhecimento de Cristo” (Fl 3,8). A liturgia insiste, geração após geração, com a mesma pergunta: “Que me falta ainda?” (Mt 19,20). E a resposta de Jesus permanece atual: desapegar-se para amar, perder para encontrar, deixar para seguir. Que a Igreja e cada um de nós, hoje, escolham a alegria da entrega e a liberdade do coração aberto, permitindo que a vida verdadeira floresça em plenitude.



DNonato - Teólogo do Cotidiano 


terça-feira, 12 de agosto de 2025

Um outro olhar sobre Mateus 18,15-20

O Evangelho de Mateus 18,15-20, proclamado na 4ª-feira da 19ª semana do Tempo Comum do Ano impar   e no 23º Domingo do Tempo Comum do Ano A, nos insere-se no chamado “Discurso Eclesial”, pronunciado por Jesus provavelmente em Cafarnaum, logo após a discussão entre os discípulos sobre quem seria o maior no Reino dos Céus (Mt 18,1). Este não é um código jurídico rígido, mas um itinerário espiritual e pastoral para preservar a comunhão e evitar rupturas que ferem a Igreja enquanto Corpo de Cristo. No contexto histórico-cultural das comunidades cristãs primitivas, espalhadas na periferia do Império Romano, o ensinamento de Jesus respondia a tensões internas, exclusões e ameaças externas. Havia o risco da divisão que poderia enfraquecer a missão evangelizadora e o testemunho público da fé. A exortação de Jesus era, portanto, uma resposta urgente e prática para manter a unidade e a santidade da comunidade.

Jesus, ao retomar o princípio de Deuteronômio 19,15 — “pelo depoimento de duas ou três testemunhas se estabelecerá a causa” — o ressignifica, não como um instrumento de condenação, mas como um caminho de misericórdia. Primeiro, o convite é para falar a sós com o irmão; depois, para envolver dois ou três; por fim, para apresentar a questão à ekklesia — termo grego que significa assembleia convocada, um espaço dinâmico e ativo de discípulos e não uma instituição burocrática rígida.

O verbo grego usado para “repreender” (ἐπιτιμάω) traz a conotação de chamar à conversão, ao ajuste de rota, mais do que uma acusação implacável. A estrutura tripartite do processo é cuidadosamente articulada para evitar injustiças e favorecer a reconciliação. O diálogo pessoal preserva a dignidade e evita expor publicamente a falha; a intervenção de duas ou três testemunhas traz equilíbrio e imparcialidade; e a intervenção comunitária simboliza a responsabilidade da Igreja como corpo de fiéis para manter a unidade. Essa progressão espelha a pedagogia do amor paciente que quer reconstruir e não destruir.

Quando Jesus diz que, se necessário, o irmão “seja para ti como um pagão ou publicano”, não autoriza a exclusão definitiva, mas um recomeço missionário. A palavra grega ethnos (“pagão”) remete a quem está fora da aliança, e “publicano” lembra aqueles marginalizados por colaborarem com Roma. Contudo, Jesus acolheu esses grupos e elogiou a fé da mulher cananeia (Mt 9,10-13; 15,21-28), indicando que esse “excluir” é um convite à conversão e reintegração.

O processo de correção fraterna, longe de ser fechado, é um caminho que impulsiona a comunidade para fora de si mesma, reafirmando sua missão de testemunhar o Reino. A exclusão temporária é sempre um “estado transitório”, uma pausa para conversão e reconciliação.

A promessa: “onde dois ou três estiverem reunidos em meu nome, eu estou no meio deles” é uma afirmação fundamental da presença real de Cristo na comunhão fraterna e reconciliadora. Essa presença não depende do número, mas da qualidade da comunhão e da intenção sincera de seguir Jesus e restaurar relações. A Shekiná judaica, presença divina entre o povo reunido, é retomada como sinal de que Deus habita onde reina a unidade e o perdão. Essa promessa inspira a Igreja a confiar no poder transformador da oração comunitária e do perdão mútuo, fundando sobre essa experiência o anúncio do Reino.

Os paralelos nos Sinóticos reforçam essa pedagogia: Lucas 17,3-4 convoca ao perdão reiterado; Marcos 11,25 vincula o perdão à eficácia da oração; Levítico 19,17 do Antigo Testamento reforça a exigência moral de confrontar o irmão para evitar o cúmplice silêncio que permite o pecado persistir.

Essa pedagogia confronta as distorções modernas da fé: a teologia da prosperidade que transforma a comunhão em espetáculo e negócio; a teologia do domínio que subjuga com discursos autoritários; o individualismo que se exime da responsabilidade comunitária; e a fé-mercadoria que reduz oração a contrato de troca. Também desafia o clericalismo denunciado pelo Papa Francisco, que concentra a correção como prerrogativa exclusiva dos líderes, enquanto toda a comunidade é responsável.

O Papa Francisco insiste no espírito sinodal que deve animar a Igreja hoje, enfatizando que “a responsabilidade pela vida da comunidade é de todos, não só de uns poucos” (Evangelii Gaudium, 32). Santo João Crisóstomo ensina que a correção deve ser sempre temperada pela paciência e caridade, pois “corrigir é um ato de amor que quer a cura e não a punição”.

Gaudium et Spes (n. 27) afirma que “tudo o que se opõe à vida envenena a convivência humana”. Santo Agostinho já ensinava: “Corrigir é amar, calar-se é odiar” (Sermão 82). Santo Ambrósio, refletindo sobre a Igreja, exorta que “a caridade corrige, mas jamais destrói a comunhão”.

No dia  13 de agosto, celebramos Santa Dulce Lopes Pontes a  "Santa Dulce dos Pobres", canonizada em 2019, exemplo vivo deste Evangelho. Quando sua irmã Dulcinha enfrentou uma gravidez de risco, em 1956, Irmã Dulce fez um voto: se a irmã sobrevivesse, dormiria sentada pelo resto da vida, como sinal de gratidão e penitência. Cumpriu-o por 30 anos, até ser convencida pelos médicos a parar, pois sua saúde já estava fragilizada por enfisema pulmonar. A cadeira simples onde dormia está hoje no Memorial Irmã Dulce, em Salvador. Esse gesto encarna João 15,13: “Ninguém tem amor maior do que aquele que dá a vida pelos amigos”. Santa Dulce não corrigia com discursos vazios, mas com gestos concretos que restauravam dignidade. Fundou obras que acolhem milhares de pobres e doentes, sem discriminação, denunciando a fé-espetáculo e proclamando a presença real de Cristo “no meio” daqueles que se reúnem para amar.

A psicologia aponta que a confrontação construtiva nasce da empatia; a antropologia revela que, nas culturas tradicionais, a queda de um membro ameaça o grupo, exigindo reconciliação; a filosofia, de Sócrates a Levinas, lembra que o rosto do outro convoca à responsabilidade ética.

Este Evangelho, iluminado pelo testemunho de Santa Dulce, é antídoto contra a cultura do descarte, como denuncia Fratelli Tutti (n. 215). Ecoa o Salmo 133: “Como é bom e agradável viverem unidos os irmãos! Ali o Senhor concede a bênção e a vida para sempre”.

Corrigir, perdoar, recomeçar: eis o caminho do Reino, vivido com coragem e ternura. Que sejamos, como Santa Dulce, artesãos da paz e da comunhão, porque onde dois ou três estão reunidos em Seu nome, Ele está no meio de nós, sustentando a vida e o amor que permanecem firmes, mesmo quando o corpo cansa e o mundo tenta nos separar.



DNonato – Teólogo do Cotidiano

quinta-feira, 7 de agosto de 2025

Um breve olhar sobre Mateus 16,24-28

O Evangelho  de hoje  Mateus  16,24-28 que é  é proclamado no 22º Domingo do Tempo Comum do Ano A, e também é evocado na espiritualidade da Quaresma como um chamado à conversão pascal. Além disso, é texto da Liturgia da Palavra da sexta-feira da 18ª semana do Tempo Comum (Ano Ímpar), o que intensifica seu caráter de discernimento e seguimento. Sua força está na ruptura que provoca, no corte que impõe e na libertação que oferece. Não se trata de uma fala decorativa ou inspiracional. É palavra-cruz: aquela que fere a superfície para alcançar o coração.

Jesus começa perguntando: “Quem dizem que eu sou?” Mas logo depois se volta aos seus com algo mais radical: “E vós, quem dizeis que eu sou?” Essa pergunta, feita em Cesareia de Filipe — local marcado por cultos a César e deuses pagãos —, já carrega uma provocação. Jesus não busca a confirmação de sua fama, mas questiona a lógica do mundo que confunde glória com dominação e messianismo com prestígio. A questão não é de opinião, mas de implicação. A resposta de Pedro — “Tu és o Messias, o Filho do Deus vivo” — é teologicamente correta, mas sua atitude posterior revela que ele ainda projeta sobre Jesus um messianismo de glória, poder e imunidade ao sofrimento. Jesus reconhece que sua resposta foi inspirada pelo Pai, mas, ao mesmo tempo, o repreende com dureza quando tenta desviá-lo do caminho da cruz: “Vai para longe, Satanás! Tu és para mim uma pedra de tropeço.”

Essa ambiguidade de Pedro revela nossa própria contradição: professamos a fé com os lábios, mas muitas vezes resistimos ao caminho que ela exige. Queremos um Cristo que nos livre da dor, e não aquele que caminha conosco por dentro dela. Desejamos uma fé que nos eleve acima das fragilidades, não uma que nos desça até o chão da humanidade. Mas Jesus é claro: seguir seus passos passa pela cruz. Não como punição ou moralismo, mas como travessia de entrega, de perda fecunda, de amor sem garantias. A cruz, neste evangelho, não é castigo nem romantização do sofrimento. É o lugar onde o amor se recusa a compactuar com a lógica do domínio. Onde a justiça não se vende ao poder. Onde a esperança se faz resistência. 

Como dizia Santo Agostinho, “a cruz era o leito nupcial onde Cristo desposou a humanidade” — não por força, mas por amor que se entrega até o fim. Essa entrega revela um Deus que se solidariza com os sofredores, não que os culpa ou os pune. A cruz, assim, é critério do Reino, e só pode ser compreendida por quem ama até o fim. Ela não é símbolo de derrota, mas de fidelidade radical ao bem, mesmo quando isso custa tudo.

Esse caminho da cruz, porém, tem raízes profundas na história de Israel. O Servo Sofredor de Isaías (cf. Is 52,13–53,12) já anunciava essa forma subversiva de messianismo: não triunfante, mas solidário; não vingador, mas vulnerável. Jesus retoma essa tradição e a leva ao extremo. Ao contrário dos messias esperados por muitos, ele não toma o poder — toma a cruz. Não subjuga inimigos — oferece a outra face. E ali, na rejeição e na dor, manifesta a face de Deus. É nesse mesmo horizonte que se movem os profetas, que não buscavam agradar, mas denunciar. Como Jeremias, que dizia: “Seduziste-me, Senhor, e eu me deixei seduzir… a palavra do Senhor tornou-se para mim motivo de vergonha e zombaria o dia inteiro” (Jr 20,7-8). O discipulado cristão, portanto, herda essa vocação profética de ir na contramão da lógica dominante — não por masoquismo, mas por fidelidade. 

Ao ser proclamado numa sexta-feira do Tempo Comum, este texto não apenas antecipa o escândalo da cruz pascal, mas nos recorda que a sexta-feira é sempre tempo de descer com Cristo às dores do mundo. E descer não com lamentos, mas com compaixão ativa. Pedro queria um Cristo que resolvesse, que evitasse a dor, que triunfasse rápido. Como muitos hoje, desejava um Messias funcional: para vencer eleições, legitimar impérios religiosos, garantir estabilidade. Também hoje há quem projete sobre Jesus o desejo de um messias gerencial, que administre a ordem e mantenha privilégios. É o Cristo do capital, da estabilidade a qualquer custo, da meritocracia disfarçada de bênção. Mas o Evangelho resiste a essa caricatura: o Crucificado não é coach nem CEO — é o servo sofredor que carrega a dor do outro nos ombros (cf. Is 53). Jesus desmascara essa tentação. A cruz, no seguimento cristão, não é uma metáfora, é um caminho. Um processo. Um critério.

E como recordou  o Papa Francisco, “a conversão pastoral exige que a Igreja saia de si mesma e vá ao encontro das periferias” (Evangelii Gaudium, n. 20). Na lógica da cruz, seguir Jesus é, portanto, deslocar-se da segurança da auto referência para o risco do amor encarnado, sempre pascal, sempre pascal. O Concílio Vaticano II também reconhece que o ser humano não se realiza plenamente senão pelo dom sincero de si mesmo (cf. Gaudium et Spes, n. 24). E o dom sincero de si passa, necessariamente, pela experiência de esvaziamento, de compaixão concreta e de resistência amorosa às estruturas de injustiça.

Por isso, o seguimento não acontece nos discursos inflamados, mas nos passos que abraçam os últimos. Não nos shows de fé, mas nas escolhas cotidianas de fidelidade, perdão e justiça. E isso, sim, é conversão. É no cuidado das feridas da cidade, no abraço ao pobre, na escuta ao aflito, que o discipulado se torna visível. É ali, onde o mundo despreza, que o Reino se insinua. A cruz não é adereço nem slogan. É praxis pascal. Corpo entregue. Vida fecunda. Esperança que não cede ao cinismo.

Na liturgia da Palavra deste dia — seja no 22º Domingo do Tempo Comum, seja na sexta-feira da 18ª semana do Tempo Comum — a Igreja nos oferece um espelho:

 Que tipo de messias buscamos? 

Que tipo de discípulo estamos dispostos a ser? 

A resposta não está no que dizemos com a boca, mas no que carregamos com o coração. Porque a fé, sem cruz, vira performance. E a cruz, sem amor, vira opressão.

A cruz, quando assumida com ternura, torna-se o sinal da Páscoa em nós. Não há ressurreição verdadeira sem o compromisso amoroso com as dores que crucificam os pequenos. Não há discipulado autêntico sem corpo entregue, sem vida partida, sem esperança que sangra, mas insiste em florescer. E só assim, perdendo-nos no Cristo que se dá, seremos encontrados na Vida que não se explica, mas se revela no amor que permanece. A cruz é o lugar onde Deus nos espera, não para nos culpar, mas para nos transformar. E é ali, onde tudo parece ruína, que começa a ressurreição

DNonato- Teólogo do Cotidiano.


sábado, 2 de agosto de 2025

Um outro olhar sobre Lucas 12,13-21 - 18º Domingo do Tempo Comum.

Os textos da Liturgia do 18º Domingo do Tempo Comum – Ano C  – nos convocam a uma profunda revisão de vida à luz da Palavra: Eclesiastes 1,2; 2,21-23; Salmo 89(90), com o refrão “Senhor, tendes sido o nosso refúgio através das gerações”; Colossenses 3,1-5.9-11; e o Evangelho de Lucas 12,13-21 também  proclamado  na 2ª-feira da 29ª semana do Tempo Comum do ano par,  sobre o qual já partilhamos uma reflexão anterior em 2022, disponível em nosso canal no YouTube em: 2020, 2022,  2024 e também neste blog. Trata-se de uma Palavra viva, atual, urgente e necessária, especialmente diante das seduções do mundo moderno e das espiritualidades domesticadas.

Desde o início, é preciso afirmar com clareza: Jesus não é socialista nem comunista — mas também está radicalmente distante do modelo neoliberal capitalista. Este mesmo sistema, lamentavelmente, tem sido defendido por certas lideranças religiosas que mercantilizam a fé e canonizam o acúmulo. O Evangelho deste domingo é uma denúncia contundente contra a idolatria da riqueza, a obsessão pelo lucro, o egoísmo travestido de meritocracia e a lógica do “meu celeiro, meus bens, minha alma”.

A narrativa começa com um pedido aparentemente justo: um homem solicita que Jesus intervenha na partilha de herança entre irmãos. No contexto patriarcal judaico, o primogênito costumava herdar a totalidade ou a maior parte dos bens do pai — como vemos no episódio entre Esaú e Jacó, onde a bênção é tomada por astúcia. Esse pano de fundo jurídico e cultural é essencial para compreendermos a provocação feita a Jesus. Contudo, em vez de assumir o papel de juiz ou legislador, Jesus recusa-se a validar o pedido. Ele percebe que o problema não é apenas jurídico, mas espiritual, ético e social. O coração daquele homem estava tomado pela cobiça.

A resposta de Jesus desmascara as engrenagens da ambição: “Acautelai-vos de todo tipo de ganância!” (Lc 12,15). A parábola do homem rico que constrói celeiros maiores para guardar suas colheitas — e que à noite perde a vida — nos recorda que a morte é o desmascaramento final de todas as ilusões de posse. Aquilo que se acumula com egoísmo não atravessa o túmulo. Como já dizia o Eclesiastes: “Vaidade das vaidades, tudo é vaidade” (Ecl 1,2). O suor e o esforço humano são desperdício quando não se traduzem em solidariedade, partilha e cuidado com o outro.

Hoje, como naquele tempo, há quem se ache no direito de herdar tudo — por tradição familiar, por título religioso, por posição social ou por falsa superioridade moral. Essa lógica excludente e concentradora é incompatível com o Reino de Deus, que é justiça, partilha e dignidade para todos — e não apenas para alguns. E mais: é escandaloso quando tal lógica é promovida por ministros religiosos que, em nome de uma “teologia da prosperidade”, espiritualizam o egoísmo e abençoam o acúmulo de bens. Esquecem-se de que Jesus se fez pobre, e de que seus discípulos foram chamados a partilhar tudo (cf. At 2,44-45).

Este Evangelho não condena o trabalho, o esforço, a previdência ou o cuidado com a casa e com os filhos. O que está em jogo é a motivação profunda: para quê e para quem se vive. Quem vive para acumular, acaba prisioneiro do que possui. Quem faz da riqueza o centro da existência, perde o verdadeiro sentido da vida. Por isso, Jesus conclui com a advertência: “Assim acontece com quem ajunta tesouros para si mesmo, mas não é rico diante de Deus” (Lc 12,21).

É tempo de rever nossos celeiros, nossas contas bancárias, nossos títulos, nossos muros, nossas estruturas religiosas. Nada disso nos salvará. A única herança verdadeira é o amor encarnado, a solidariedade concreta, a justiça realizada na vida dos mais pobres. Como recorda São Paulo em Colossenses, o ser humano novo se renova “segundo a imagem daquele que o criou”, e nesse novo modo de viver “Cristo é tudo em todos” (Cl 3,10-11).

O Papa Francisco denunciava essa “economia que mata” (Evangelii Gaudium, n. 53), conclamando a fé a ser fermento de transformação estrutural, denúncia da injustiça e promoção do bem comum. A liturgia que vira espetáculo e o clericalismo exibicionista são sinais de uma distorção profunda do mistério cristão — e só podem ser enfrentados com a radicalidade do Evangelho.

No Brasil, apesar da conquista histórica de sair do mapa mundial da fome, persistem fragilidades estruturais que denunciam a urgência de um compromisso permanente. Vivemos ainda os efeitos da guerra tarifária iniciada pelo governo Trump, que impôs barreiras comerciais e afetou profundamente setores agrícolas e industriais — expondo como o mercado global exacerba desigualdades e vulnerabilidades. Sair do mapa da fome foi apenas uma etapa: o combate à insegurança alimentar e à exclusão exige ação constante, crítica e solidária, como convoca o Evangelho. Hoje, com as longas filas no SUS e desigualdades gritantes, o Evangelho denuncia a religião cúmplice do capital e da opressão. Uma fé que se cala diante disso é uma fé morta, anestesiada e acomodada. O convite radical de Jesus é claro: ou vivemos para os celeiros do egoísmo, ou para o Reino, para a partilha e o amor. Que nossa escolha, hoje, seja alicerce da eternidade. Que, ao sermos chamados, não sejamos loucos, mas discípulos que escolheram os bens eternos à ilusão dos depósitos. Os profetas nos advertem: “Ai dos que ajuntam casa a casa…” (Is 5,8), e denunciam aqueles que “pisam os pobres e exploram os humildes” (Am 8,4-6), revelando a fome como instrumento de controle.

Neste cenário, a Doutrina Social da Igreja é uma bússola indispensável. Ela afirma que a propriedade privada, embora legítima, não é um direito absoluto: deve sempre servir ao bem comum e à dignidade humana, garantindo que ninguém fique sem o necessário (Laborem Exercens, n. 14; Centesimus Annus, n. 30; Populorum Progressio, n. 23-24). O Evangelho não absolutiza nem demoniza a posse, mas rompe com sistemas que promovem a concentração, o controle e a dominação, propondo comunhão, cuidado e fraternidade.

São Basílio Magno advertia: “O pão que tu guardas pertence ao faminto; o manto que tu escondes pertence ao que está nu”. São João Crisóstomo dizia, com veemência: “Não partilhar com os pobres é roubar deles”. A posse que não se abre é agressão à comunhão e negação do Corpo de Cristo presente nos pobres, pequenos e excluídos. Essa ética da partilha é a antítese da lógica do mercado, que se alimenta do medo, da ganância e da indiferença. Se, ao final desta parábola, ainda houver em nós a tentação de justificar a ganância em nome da tradição, da segurança ou até mesmo da fé, será preciso reconhecer: não foi Deus quem mudou — fomos nós que construímos um ídolo em seu lugar. Um ídolo que exige mais do que orações: exige a alma, exige o outro, exige o planeta. E diante desse ídolo, muitos dobram os joelhos sem perceber que perderam o Evangelho. A parábola de hoje não é uma fábula moral, mas um espelho escandaloso: nela vemos refletida a alma de um sistema que habita nossas casas, nossas igrejas, nossas consciências — e que legitima a desigualdade enquanto recita versículos.

Jesus não oferece àquele homem — e a nós — um parecer jurídico, mas uma libertação existencial. Não resolve sua questão de herança, mas revela o que verdadeiramente herdamos quando permitimos que o Reino de Deus nos converta: herdamos os pobres como irmãos, a criação como casa comum, a justiça como linguagem da fé, e o amor como única riqueza que não apodrece.

Ser rico diante de Deus é romper com a lógica da acumulação e abraçar a lógica do dom. É transformar celeiros em mesas, reservas em redes, muros em pontes. É confiar que, mesmo que esta noite nos seja pedida a alma, encontraremos no abraço do Pai a única herança que importa: ser reconhecido como filho — e não como proprietário.

E enquanto essa hora não chega, resta-nos viver o Evangelho com radicalidade e ternura, cuidando do que temos e partilhando o que somos. Porque o verdadeiro tesouro não está no que se possui, mas no que se doa. Não no que se ajunta, mas no que se semeia. E quem vive assim, mesmo que pobre aos olhos do mundo, é eternamente rico aos olhos de Deus (cf. Tg 2,5; Mt 6,19-21).

A parábola do rico insensato, portanto, não é apenas um alerta — é um convite urgente: convertei-vos da idolatria do acúmulo e deixai-vos conduzir pelo Evangelho da partilha. Pois só quem se esvazia de si mesmo pode ser cheio de Deus.

Se hoje ouvirmos essa Palavra e ainda estivermos agarrados ao mito do merecimento e à sedução do “meu”, “meu”, “meu”, então é porque ainda não entendemos o Cristo que nasceu num estábulo, não tinha onde reclinar a cabeça (cf. Lc 9,58) e morreu nu numa cruz. E se nosso cristianismo se contenta com rezas e ritos sem justiça, é sinal de que nos tornamos discípulos do mercado — não do Messias. Urge lembrar: o juízo final não será sobre o saldo bancário, mas sobre o amor concreto ao próximo (cf. Mt 25,31-46). O Evangelho é claro: quem acumula para si, empobrece o mundo; quem reparte com amor, enriquece o céu. Que não sejamos lembrados como insensatos que construíram celeiros e perderam a alma, mas como justos que construíram pontes e herdaram o Reino.

Quem é o senhor da sua vida:

 Jesus ou a ganância? 

Que celeiros constróis em teu coração? 

O Evangelho exige uma metanoia profunda — que transforme a alma e a sociedade, para que justiça, paz e fraternidade sejam realidade para todos. A verdadeira riqueza é comunhão com Deus e com o próximo, no serviço humilde e na generosidade. Assim, o Evangelho torna-se luz que rompe as trevas das ideologias idolátricas, bálsamo que cura as feridas da exclusão e chamado profético para um mundo novo — onde o bem comum supera a posse, a dignidade humana é inviolável, e o Reino de Deus se constrói com justiça, amor e solidariedade.

DNonato -Teólogo do Cotidiano 


sexta-feira, 1 de agosto de 2025

Um breve olhar sobre Mateus 14,1-12

 
No Sábado da 17ª Semana do Tempo Comum em nossa  liturgia  somos convidados  a ler  Mateus 14,1-12  que revela a  decapitação de João Batista, que  não é apenas o epílogo de um destino trágico, mas o prenúncio de uma lógica que atravessa toda a história da salvação e ainda vigora hoje: a morte dos profetas sempre precede a crucificação do justo. Em tempos em que a verdade é manipulada e o sagrado é vendido, a voz que clama no deserto continua sendo um incômodo a ser calado. Este Evangelho, portanto, não fala apenas de Herodes, João e Jesus — fala também de nós, de nossos palácios e nossas bandejas de conveniência. Quando a Palavra encarnada começa a provocar abalos nos alicerces dos sistemas religiosos e políticos, a reação dos poderes estabelecidos se faz previsível: o silenciamento. O martírio de João não inaugura uma exceção, mas confirma a regra que paira sobre toda voz que denuncia as alianças espúrias entre o sagrado e o império, entre a fé e o espetáculo, entre a religião e o poder. Assim como a cabeça do Precursor foi entregue numa bandeja para satisfazer os caprichos de um palácio, também o corpo do Cristo será entregue à cruz para preservar os interesses do templo (cf. Mt 26,3-4; Jo 11,47-53). O texto de Mateus 14,1-12, à primeira vista um relato de morte, revela-se, na verdade, como um espelho perturbador das estruturas que ainda hoje matam a verdade em nome da estabilidade.

A cena do banquete de Herodes, narrada também em Marcos 6,14-29, é uma liturgia às avessas. O palácio se converte em templo profanado. Em vez de pão partilhado, há corpos objetificados. Em vez de mesa da vida, um palco de morte. Herodes, como Pilatos depois dele, cede ao medo e ao poder de outros — a esposa, a filha, os convidados — revelando que o verdadeiro tirano é escravo da própria imagem. João morre não apenas por denunciar um adultério (cf. Lv 18,16), mas por ter a coragem de lembrar ao poder seus limites. Sua palavra ecoa o espírito dos profetas que enfrentaram reis e sacerdotes, como Natã diante de Davi (2Sm 12,1-10), Elias diante de Acab (1Rs 18), Amós diante dos sacerdotes de Betel (Am 7,10-17), ou Jeremias confrontando a falsa segurança do templo (Jr 7,1-15). João carrega em seu corpo o conflito entre Reino e sistema, entre verdade e conveniência, entre a fidelidade ao chamado e a tentação do silêncio cúmplice. Herodes é retrato do poder covarde. Representa uma religiosidade teatral, que escuta com curiosidade a palavra profética (cf. Mc 6,20), mas se recusa a converter-se. Prefere manter-se simpático à profecia do que comprometer-se com ela. Quantas vezes também nossas estruturas religiosas cultivam essa curiosidade estéril: ouvimos palavras bonitas nos púlpitos e nas redes sociais, mas evitamos qualquer abalo real em nossos privilégios ou estruturas. O Evangelho denuncia, mais uma vez, a incoerência de uma religião que admira profetas mortos, mas persegue os vivos (cf. Mt 23,29-37).

O banquete da morte de João antecede o banquete da vida oferecido por Jesus. Poucos versículos depois, em Mateus 14,13-21, o evangelista narrará a multiplicação dos pães. A contraposição é nítida e teológica: no banquete de Herodes, há festa para poucos, manipulação do corpo e morte. No banquete de Jesus, há compaixão (Mt 14,14), partilha e abundância para todos. João é morto em um palácio onde prevalece a vaidade. Jesus alimenta as multidões no deserto, onde reina a esperança. Um banquete alimenta o sistema; o outro, inaugura o Reino. O Evangelho não é neutro: aponta com clareza de que lado Deus está. Essa narrativa revela também a lógica da perseguição que recai sobre toda voz que ousa romper com a normalidade opressora. A prisão de João ecoa as prisões de Pedro (At 12,1-11) e de Paulo (At 16,23-34), e antecipa o cárcere de Jesus (Mt 26,47-57). O cárcere, na Escritura, é lugar onde a verdade parece sufocada, mas também lugar de revelação. José interpretou sonhos no cárcere (Gn 40–41), Daniel resistiu no cárcere dos leões (Dn 6), Paulo escreveu cartas que ainda hoje alimentam a fé. João, preso, segue fiel. Sua voz não se cala diante do medo — é o oposto do que hoje se vende como "sabedoria": a diplomacia da covardia, o silêncio da conveniência, a prudência que pactua com a injustiça.

Vivemos num tempo em que muitos cristãos preferem Herodes a João: preferem o conforto das cortes eclesiais à coragem do deserto, preferem a visibilidade dos banquetes ao silêncio fecundo da coerência. As teologias da prosperidade — que prometem proteção divina como moeda de troca para doações e obediência — são o novo rosto da religião palaciana. A fé como mercadoria, o clericalismo triunfalista, o individualismo espiritualizado que transforma o Evangelho em autoajuda e a missão em palco, tudo isso são versões modernas do mesmo jogo: decapitam a profecia e servem-na em bandejas douradas.

João morre como viveu: de pé, diante da verdade. Sua cabeça cortada é memória que interpela, é ferida aberta na carne do mundo que insiste em calar os que incomodam. Sua morte clama contra as teologias do domínio, da glória fácil e da fé domesticada. E sua vida, mesmo encerrada no cárcere, permanece como farol que ilumina o caminho daqueles e daquelas que ousam anunciar o Reino, mesmo quando tudo parece escuro. Porque o Reino não vem com espetáculo (Lc 17,20), mas com fidelidade. E a fidelidade, às vezes, custa caro — custa a cabeça, custa a cruz, mas gera ressurreição. João não viveu para si. Sua voz ecoa ainda hoje nos desertos da história, clamando por um mundo em que a verdade não seja silenciada e em que a justiça não seja moeda de troca. Enquanto houver profetas decapitados e cristãos domesticados, a história de João continuará se repetindo. Mas enquanto houver memória profética e coragem pascal, sua morte continuará sendo semente de ressurreição. Porque a última palavra nunca é da espada — é do Reino (cf. Ap 5,5-6; 19,11-16). Como João, também mártires de nossa história recente tombaram com a voz ferida e a consciência em pé. Dom Romero, assassinado no altar, e Dorothy Stang, baleada com a Bíblia na mão, são rostos contemporâneos desta mesma fidelidade. Suas mortes, como a de João, denunciam uma fé que se alia ao latifúndio, ao lucro e à opressão. Mas suas vozes continuam ecoando: “A missão da Igreja é defender os pobres. E enquanto houver injustiça, a Igreja deve gritar” (Dom Romero).

  • Que tipo de fé estamos cultivando: a que agrada aos palácios ou a que incomoda o sistema? 
  • Que tipo de Igreja estamos sendo: corpo profético que clama no deserto ou ornamento de banquetes cheios de vaidade? 

A memória de João clama por discípulos e discípulas que não se vendam por segurança institucional, que não troquem a profecia pelo aplauso, e que prefiram a cruz à cumplicidade. Onde houver fidelidade encarnada, mesmo silenciosa e perseguida, ali o Reino continuará germinando. E a cabeça cortada de João será sempre semente da Palavra que ninguém poderá calar (cf. Is 55,10-11).

DNonato - Teólogo do Cotidiano 


quarta-feira, 30 de julho de 2025

Um breve olhar sobre Mateus 13, 47-53

O Evangelho segundo Mateus é cuidadosamente estruturado em cinco grandes discursos, ecoando simbolicamente os cinco livros da Torá — como se o evangelista estivesse anunciando que, em Jesus, Deus nos oferece uma nova Lei, uma nova criação, uma nova caminhada do Êxodo. Cada um desses blocos discursivos é encerrado por uma fórmula semelhante — “quando Jesus terminou de dizer essas palavras...” (cf. Mt 7,28; 11,1; 13,53; 19,1; 26,1) — e é precedido por uma seção narrativa que o prepara. O primeiro livro se estende de Mt 3,1 a 7,29 e trata da chegada do Reino e do Sermão da Montanha; o segundo livro vai de Mt 8,1 a 11,1 e tematiza os sinais e exigências do Reino; o terceiro se estende de Mt 11,2 a 13,53 e foca na revelação do Reino por parábolas; o quarto vai de Mt 13,54 a 18,35 e trata da comunidade do Reino; e o quinto se estende de Mt 19,1 a 25,46, culminando no julgamento final. Por fim, Mt 26–28 forma o epílogo da paixão, morte e ressurreição. Ao encerrarmos o terceiro livro com a perícope de Mt 13,47-53 — a parábola da rede lançada ao mar e a imagem do escriba discípulo —, somos colocados diante do momento de decisão: entre compreender ou rejeitar, entre discernir ou endurecer o coração. Com isso, abre-se o quarto livro (Mt 13,54–18,35), que se concentrará na formação da comunidade do Reino, onde Jesus ensina como seus discípulos devem viver entre si, perdoar-se mutuamente, buscar os pequenos e exercer a autoridade no serviço. A passagem que hoje meditamos, portanto, é um limiar: ela conclui a revelação parabólica do Reino e nos conduz ao caminho da prática concreta no seio da comunidade e da história.

Jesus compara o Reino dos Céus a uma rede lançada ao mar que apanha peixes de toda espécie. Esta imagem, enraizada no cotidiano dos pescadores da Galileia, é ao mesmo tempo simples e profundamente escatológica. A rede representa a ação inclusiva da pregação do Reino, que abrange toda a humanidade sem distinção inicial. Mas, no fim, haverá separação — o discernimento entre o justo e o injusto, entre o que é fecundo e o que é estéril. A separação final não cabe aos homens, mas aos anjos, e acontece "ao fim do mundo" (Mt 13,49), linguagem claramente escatológica, que nos remete a Daniel 12,2-3 e à expectativa profética de um juízo definitivo. Neste cenário, as parábolas se tornam uma espécie de catequese apocalíptica: revelam o Reino como realidade já presente, mas cuja consumação se dará plenamente na intervenção final de Deus.

A rede, que tudo acolhe, exige vigilância e decisão. Não se pode viver indefinidamente no espaço da indiferença ou da neutralidade espiritual. A imagem da seleção dos peixes, bons e maus, se articula com a parábola do joio e do trigo (Mt 13,24-30.36-43), onde o julgamento não é apressado, mas é certo. Ambas as parábolas enfatizam que o tempo presente é de anúncio, acolhida e transformação, mas o tempo escatológico trará a verdade definitiva. A rede lançada ao mar é o anúncio do Evangelho que atravessa a história; o critério de discernimento é a justiça do Reino, vivida concretamente em misericórdia, compaixão e fidelidade (cf. Mt 25,31-46). Esse juízo anunciado por Jesus não é punitivista, mas revelador: ele expõe o que cada um se tornou, ou seja, revela a verdade do coração humano. Aqui está a crítica à religião do espetáculo, da aparência e do culto performático: Deus não se deixa enganar por quem grita "Senhor, Senhor" (Mt 7,21), mas reconhece aqueles que se comprometeram com o bem, mesmo que no escondimento. Trata-se de uma escatologia do amor prático e do serviço, e não do medo ou da condenação arbitrária. A justiça que salva é aquela que se torna pão partilhado, visita ao encarcerado, acolhida ao estrangeiro, e não rituais vazios ou discursos triunfalistas. O Reino é para os que vivem a bem-aventurança de ser pobre em espírito, manso, faminto de justiça, construtor da paz (cf. Mt 5,1-12).

No contexto contemporâneo, essa rede evangélica pode ser contrastada, de forma simbólica e profética, com as redes digitais e sociais que também capturam multidões. A metáfora da rede, que em tempos antigos evocava o mar e os peixes, hoje pode evocar algoritmos e timelines. As redes digitais, assim como a rede do Reino, são espaços que acolhem toda espécie — mas nelas também se misturam verdade e mentira, solidariedade e ódio, evangelho e idolatria. Há uma nova forma de pescaria, onde corações e mentes são fisgados não pela Palavra, mas pela estética do consumo, da violência simbólica e da manipulação ideológica. As redes podem ser espaço de missão e anúncio, mas também podem ser utilizadas como redes que prendem e deformam, como armadilhas digitais que escravizam e afastam da verdade. Cabe aos discípulos discernirem que tipo de peixe estão se tornando e que rede estão ajudando a lançar: a do Reino que liberta ou a do mercado que aprisiona. Paulo, em Efésios 4,14-15, adverte que não sejamos levados por qualquer vento de doutrina, nem enganados por artimanhas humanas, mas que cresçamos na verdade e no amor. A escatologia, portanto, não é apenas um juízo futuro, mas também um chamado urgente para discernirmos que tipo de rede estamos tecendo no presente.

Por isso, Jesus termina esta série de parábolas dizendo que todo escriba instruído nas coisas do Reino é como um pai de família que tira do seu tesouro coisas novas e velhas (Mt 13,52). O discípulo que compreende as parábolas e se deixa formar por elas torna-se capaz de ler a história com os olhos de Deus. Aqui, há um elogio à hermenêutica da continuidade: o Novo não anula o Antigo, mas o reinterpreta à luz da plenitude do Reino. O escriba do Reino é aquele que reconhece em Jesus o cumprimento das promessas, mas também a ruptura necessária com os modelos religiosos de exclusão, legalismo e opressão. É alguém que aprendeu a discernir os sinais dos tempos e que vive com os pés na história e os olhos no horizonte escatológico. Esta perícope é, portanto, uma chave de leitura para toda a missão cristã. Ela denuncia os sistemas religiosos que mantêm as redes rasgadas, que pescam apenas para si e que descartam os peixes pequenos. Denuncia a teologia da prosperidade que transforma o Reino em mercado e a fé em moeda de troca. Denuncia o clericalismo que se arroga o direito de julgar os outros, esquecendo que o julgamento pertence apenas a Deus. E denuncia, sobretudo, o individualismo de uma espiritualidade sem corpo, sem cruz e sem comunidade. A rede do Reino não é para capturar, mas para incluir; não é para segregar, mas para reunir. E a separação final não é tarefa nossa, mas da justiça divina, que tudo vê e tudo pesa. Enquanto isso, resta-nos lançar a rede com fidelidade, sabendo que o mar do mundo é vasto, imprevisível, mas habitado por Deus. 

Como Paulo nos recorda em 2⁰ Coríntios 5,10, todos devemos comparecer diante do tribunal de Cristo, para que cada um receba segundo o bem ou o mal que tiver feito enquanto estava no corpo. A escatologia paulina não é marcada pela angústia, mas pela esperança vigilante: a certeza de que o Senhor ressuscitado reunirá os seus, separará com justiça, e estabelecerá, enfim, a comunhão plena. A rede do Reino é, portanto, imagem dessa tensão entre o já e o ainda não: já somos pescados pelo Evangelho, mas ainda caminhamos em meio às águas turvas do mundo. Já temos a graça, mas ainda lutamos contra as trevas. Já há colheita, mas ainda há tempo para conversão. A escatologia, longe de ser fuga do mundo, é mergulho profundo na história com os olhos voltados para a plenitude que há de vir. É urgência da graça. É responsabilidade de fé. É anúncio que julga e acolhe. É rede que inclui, purifica e conduz à luz definitiva do Reino que não terá fim.



DNonato – Teólogo do Cotidiano


terça-feira, 29 de julho de 2025

Um breve olhar sobre Mateus 13,44-46


"O Reino dos Céus é como um tesouro escondido no campo. Um homem o encontra e o mantém escondido. Cheio de alegria, ele vai, vende todos os seus bense compra aquele campo. (Mt 13,44)

O Evangelho desta quarta-feira  da 17ª semana do Tempo Comum do ano impar ,  também é  proclamado   no dia de Santa Rosa  de Lima, Padroeira da América Latina e de forma mais ampla no 17º Domingo do Tempo Comum do ano A onde se ler Mateus 13, 44-52 nos  apresenta duas parábolas curtas e luminosas: o tesouro escondido no campo e a pérola preciosa (Mt 13,44-46). Ambas giram em torno da lógica da descoberta e da decisão radical. Não se trata de uma troca por valor equivalente, mas da disposição em abandonar tudo por aquilo que se revelou infinitamente superior. Aqui, Jesus nos propõe não uma religião de práticas rituais ou garantias institucionais, mas uma vivência radical de sentido: o Reino de Deus como a realidade última que relativiza todas as outras. 

A lógica do Reino é oposta à do mercado. No mundo, valoriza-se o que pode ser contado, acumulado, exposto. No Reino, o valor é invisível, escondido como o fermento na massa (Mt 13,33), o grão na terra (Mc 4,26-29), o tesouro sob o campo. Por isso, só vê quem se dispõe a procurar com humildade. Como diz o livro dos Provérbios, «se buscares a sabedoria como prata e a procurares como tesouros escondidos, então compreenderás o temor do Senhor» (Pr 2,4-5). O Reino não se impõe, se revela; não se compra, se acolhe. Jesus, o Cristo, é esse tesouro e essa pérola. Em sua humanidade concreta, nascido da mulher e entre os pobres (Gl 4,4; Mt 1,18-25), Deus se fez próximo. Cristo é a Sabedoria eterna encarnada (cf. Sb 7,26), «em quem estão escondidos todos os tesouros da sabedoria e do conhecimento» (Cl 2,3). Encontrá-lo é deixar-se desinstalar: vender o campo da segurança, das posses, da religião como sistema de controle, e aderir com liberdade ao Reino como processo de conversão. Ele é o Caminho, a Verdade e a Vida (Jo 14,6), e quem a Ele se entrega encontra tudo. Como diz o salmista: «Senhor, Vós sois a parte da minha herança» (Sl 15,5).

Mas esse encontro não é individualista, místico ou emocionalista. O campo onde o tesouro está escondido é o campo da Escritura, da comunidade, da história. Como diz Orígenes, «o campo é a Escritura, e o tesouro é Cristo». Quem o encontra, vende tudo – mas não como perda, e sim como liberdade. Não se trata de um moralismo que exige renúncias para merecer bênçãos, mas de uma liberdade interior que relativiza tudo à luz do Reino. Por isso, a proposta de Jesus é clara e livre: «Se queres ser perfeito…» (Mt 19,21). A perfeição não é mandamento, é caminho para quem quer mais. Não é imposição, é convite. E isso revela a pedagogia do Reino: tudo se oferece, nada se impõe..  Em contraste, as teologias da prosperidade e do domínio pervertem essa lógica. Fazem do Evangelho um balcão de negócios, um palco de promessas terrenas, um teatro de autopromoção. Anunciam um Cristo sem cruz, um Reino sem conversão, uma fé sem seguimento. Vendem “pérolas falsas” a alto preço: cultos-show, espiritualidade de likes, bênçãos tarifadas. Mas o verdadeiro Cristo – pobre, servo, crucificado e ressuscitado – é tesouro que não se compra, só se acolhe. Como disse Pedro a Simão, o mágico: «Pereça contigo o teu dinheiro, pois pensaste adquirir com dinheiro o dom de Deus» (At 8,20).

O Reino não é apenas um evento íntimo, é também realidade histórica e social. Encontrar o tesouro é descobrir-se parte de um povo que caminha. A parábola do campo, no contexto do Evangelho de Mateus, não é alheia ao chão das bem-aventuranças (Mt 5,1-12), onde os pobres, os mansos, os que têm fome e sede de justiça são os herdeiros do Reino. O campo é também o mundo (Mt 13,38), onde o Reino cresce entre joio e trigo, onde a presença do tesouro não elimina a luta, mas ilumina o caminho. Por isso, quem encontra o Reino, encontra também uma vocação comunitária: ser fermento, sal e luz (Mt 5,13-16). O discípulo torna-se então anunciador e partícipe da nova lógica de Deus.

Essa lógica desconcerta o clericalismo, pois descentraliza o poder e convida todos à participação. Desafia o individualismo, pois mostra que a salvação é sempre em comunhão. Rompe com a fé como mercadoria, pois revela que Deus não se vende nem se compra: é dom. E provoca os que, iludidos por um “cristianismo triunfalista”, buscam missões longe sem perceber que o campo a ser comprado é o da própria realidade local, com suas feridas, injustiças e clamores.

O Reino é como a Sabedoria que o autor do livro da Sabedoria preferiu aos cetros e tronos: «Tudo o julguei nada em comparação com ela» (Sb 7,8). Assim também Paulo, o apóstolo, afirmou: «Considero tudo como perda diante da sublimidade do conhecimento de Cristo Jesus, meu Senhor» (Fl 3,8). A parábola da pérola nos recorda que o verdadeiro valor da vida está naquilo que não pode ser perdido nem comprado. Quem encontra Cristo reencontra tudo, até o que parecia perdido.

O Concílio Vaticano II, na Gaudium et Spes, insiste que o ser humano só se realiza verdadeiramente quando se dá por inteiro (GS 24). É o que se vê na parábola: o homem dá tudo e, ao dar tudo, encontra a plenitude. Aquele que encontra o Reino se torna também sinal escatológico do mundo novo, como anunciado no Apocalipse: «Vi um novo céu e uma nova terra…» (Ap 21,1). Mas o novo só nasce da renúncia amorosa, não da acumulação piedosa. É preciso dar-se, como o Filho do Homem que «não veio para ser servido, mas para servir» (Mc 10,45).

Oremos

Senhor Jesus, Tesouro escondido no campo do mundo e Pérola preciosa entre os pobres, dá-nos olhos para reconhecer-Te, coragem para vender tudo e coração para seguir-Te. Que sejamos teus comerciantes loucos, que trocam o mundo pelo Reino e que vivem da esperança daquele dia em que tudo será tudo em todos (cf. 1Cor 15,28).

DNonato – Teólogo do Cotidiano

domingo, 27 de julho de 2025

Um breve olhar sobre Mateus 13,31-35

 
O Reino cresce em silêncio e esperança
Jesus não apresenta o Reino de Deus como espetáculo de poder nem como estrutura opressora. Ele o revela em imagens simples: a semente de mostarda, o fermento na massa. Em vez de exibir grandeza, aponta para o invisível que transforma. Esse Reino não se impõe — germina, silencia, espera, age por dentro. Está presente no cotidiano como o grão que rompe a terra ou o fermento que leveda a massa. É a pedagogia divina do pequeno.
Essa pedagogia não é acidental nem casual — é profundamente teológica. Desde o Antigo Testamento, Deus se revela como Aquele que age através do pequeno, do frágil, do que é desprezado. Escolheu Abraão, velho e sem filhos, para ser pai de uma multidão (Gn 17,5). Escolheu Moisés, gago e exilado, para libertar um povo inteiro (Ex 3,11). Levantou Davi, o menor dos filhos de Jessé, para se tornar rei (1Sm 16,11-13). E através de um resto, um “remanescente fiel” (Is 10,20-22), prometeu restaurar Israel. O Reino de Deus jamais se edifica a partir da lógica do mundo — ele subverte essa lógica.
Jesus se inscreve nessa linhagem profética e pedagógica: fala através do cotidiano, como Jeremias com o ramo de amendoeira (Jr 1,11-12) ou Amós com o cesto de frutas maduras (Am 8,1-2). A imagem da semente de mostarda, presente também em Marcos 4,30-32 e Lucas 13,18-19, não fala apenas de crescimento biológico ou numérico, mas de expansão que brota da vulnerabilidade. A menor de todas as sementes, quando lançada na terra, cresce e se torna árvore hospitaleira, “de modo que os pássaros do céu vêm fazer ninhos em seus ramos” (Mt 13,32). Essa imagem ecoa a linguagem profética de Ezequiel 17,23 e Daniel 4,9-12, símbolos da restauração e da inclusão dos povos. O Reino é universal, hospitaleiro, acolhedor (Is 2,2-4).
Já a parábola do fermento, também em Lucas 13,20-21, revela uma transformação interna, invisível e gradual. O fermento não se impõe sobre a massa, mas a transforma por dentro, com paciência, calor e tempo. Essa é a ação do Espírito, que Jesus comparará ao vento que sopra onde quer (Jo 3,8), e que Paulo identificará como agente da nova criação (2Cor 5,17). É a Palavra que penetra (Hb 4,12), é o amor que tudo transforma (Rm 5,5), é a esperança que move estruturas. Esse fermento é o oposto do fermento dos fariseus, criticado por Jesus (Mt 16,6; Lc 12,1), símbolo da hipocrisia institucionalizada, do legalismo opressor e da religião como controle.
O Reino é fermento da justiça (Is 58,6-8), da misericórdia (Mt 25,35-40), da esperança (Rm 8,24-25). Maria o acolhe em silêncio (Lc 1,38), José o protege em sonhos (Mt 1,24), e Jesus o vive no anonimato por trinta anos (Lc 2,51-52). Elias o escuta na brisa suave (1Rs 19,11-13). O Reino se manifesta nos gestos discretos de amor (Mt 6,3-4), na comunhão fraterna (At 2,42-47), no serviço escondido que transforma o mundo por dentro.
Essa lógica contrasta radicalmente com a teologia da prosperidade, que afirma que a bênção divina é visível, mensurável, associada ao sucesso, à riqueza, ao prestígio. Contra essa ilusão, o fermento evangélico recorda que o Reino começa onde ninguém vê — como o grão de trigo que precisa morrer para frutificar (Jo 12,24), como o servo que lava os pés (Jo 13,14), como o crucificado que revela a glória de Deus (Jo 19,30). A cruz não é fracasso: é fermento da ressurreição.
As parábolas do Reino também dialogam com a lógica das bem-aventuranças (Mt 5,3-12), onde os pobres, os mansos, os que choram e os que têm fome de justiça são declarados felizes. Não porque estejam em situações desejáveis, mas porque neles está plantado o Reino. A semente da justiça germina onde há compaixão. O fermento da misericórdia age onde há abertura e escuta. O Reino é uma árvore que acolhe, um fermento que transforma toda a massa. A fé não é um privilégio privatizado. É comunhão. É corpo. É compromisso com os outros (Fl 2,4; Tg 1,27; 1Jo 3,17).
Essa fé do pequeno e essa esperança paciente rompem com o individualismo que permeia muitas práticas religiosas. O Reino é relacional. Não existe fé autêntica sem solidariedade. Paulo exorta: “Cada um cuide também dos interesses dos outros” (Fl 2,4). Tiago completa: “A religião pura é cuidar dos órfãos e viúvas” (Tg 1,27). O Reino exige corpo, comunidade, vínculo.
A pedagogia do pequeno também revela que Deus tem uma pedagogia histórica. Ele age no tempo, não na pressa. O povo hebreu esperou séculos pela libertação. Os profetas anunciaram a justiça mesmo sem vê-la. Maria concebeu em silêncio. José sonhou e obedeceu. Jesus viveu três décadas no anonimato. O Espírito foi soprado em um cenáculo escondido (At 2). O Reino se constrói no chão da história, não nas promessas fáceis da religião performática nem no ufanismo da fé-espetáculo.
É por isso que Evangelii Gaudium afirma: “O tempo é superior ao espaço” (EG, 222). O Reino não precisa ocupar visivelmente os espaços do poder, mas ser cultivado no tempo da vida, da escuta, da presença junto ao povo. E Fratelli Tutti insiste: “A caridade política é a forma mais alta da caridade” (FT, 180). O fermento do Reino não é alienação, mas compromisso com justiça, paz e dignidade.
A patrística também reconheceu o valor dessa lógica divina. Santo Agostinho advertia: “Não desprezes os pequenos começos: a grande árvore começa do minúsculo grão” (Sermão 72). São Gregório Magno dizia que o verdadeiro pastor conhece o ritmo da semente: sem ansiedade, mas com zelo fiel. Santa Teresinha, em seu “pequeno caminho”, vivia a confiança cotidiana. Eles sabiam que o Reino se constrói na fidelidade aos processos, não na busca por resultados imediatos.
Na contramão do clericalismo e da religião do espetáculo, onde a fé vira produto, o Reino se revela como fidelidade no cotidiano. O altar não é palco. A liturgia não é performance. O Evangelho não é slogan publicitário (2Tm 4,3-4). A fé não é elitista. É partilha, comunhão (At 4,32), justiça encarnada na política (Jr 22,3), na economia (Am 8,4-6), na cultura (At 17,22-28), na educação (Dt 6,7). A fé que não gera pão e liberdade não é fermento — é fermentação de ilusões.
Por isso, hoje, somos chamados a cultivar a espiritualidade do pequeno. A confiar na semente lançada, mesmo sem ver os frutos. A ser fermento na massa da humanidade: na sala de aula, na fábrica, no hospital, na comunidade, no campo e na cidade. O Reino precisa de gente que semeia em silêncio e mistura a justiça nas estruturas da vida comum.
Como nos lembra Gálatas 6,9: “Não nos cansemos de fazer o bem, pois no tempo oportuno colheremos, se não desanimarmos.” Como afirma o Salmo 126, “os que semeiam em lágrimas colherão com alegria”. E como diz Apocalipse 3,8 à Igreja pequena e fiel: “Tens pouca força, mas guardaste a minha Palavra. Eis que pus diante de ti uma porta aberta que ninguém pode fechar.”
A força do Reino está na fraqueza (2Cor 12,9). Seu poder está no serviço (Mt 20,26-28). Sua glória, na cruz (Gl 6,14). Sua vitória, no amor (Jo 13,1).


DNonato — Teólogo do Cotidiano

quinta-feira, 24 de julho de 2025

Um breve olhar sobre Mateus 20,20-28 - Festa de São Tiago

 
O Evangelho  proclamado no dia de São Tiago é  o seguinte Mateus 20,20-28  , o primeiro dos apóstolos a selar com o sangue a sua fé em Cristo, somos convidados a mergulhar nas profundezas de um texto que desmascara, com ternura e contundência, os mecanismos humanos de poder e ambição: Mateus 20,20-28. A cena nos desestabiliza. Uma mãe se aproxima de Jesus com seus dois filhos, Tiago e João, pedindo para que eles ocupem os lugares de honra no Reino – um à direita, outro à esquerda. Mas sob o verniz do cuidado materno, ressoa o eco de uma lógica de prestígio, status e poder, que ainda hoje seduz comunidades cristãs, lideranças eclesiais e projetos ditos “evangelizadores” que mais reproduzem os valores do império do que o escândalo do Reino.
O pedido não nasce do nada. Poucos versículos antes, Jesus acabara de anunciar, pela terceira vez, sua Paixão (Mt 20,17-19). Mas os discípulos não escutam. Estão tomados por outra expectativa: aguardam um Messias glorioso, triunfante, alguém que lhes devolverá o prestígio social, a supremacia política e a ilusão de uma religião dominante. Há uma cegueira espiritual em curso, não muito diferente da que ainda hoje habita discursos clericalistas que transformam o Evangelho em escada para o sucesso, o altar em palco, o pastoreio em plataforma de influência. Lucas relata cena semelhante quando os discípulos discutem sobre quem seria o maior (Lc 22,24-27), e Marcos também registra esse mesmo episódio da mãe de Zebedeu, embora sem mencioná-la diretamente (Mc 10,35-45). A insistência dos três evangelistas é reveladora: esse tipo de disputa e desejo é recorrente e profundamente humano – e, por isso mesmo, precisa ser redimido.
Jesus, porém, não censura a mãe, nem repreende com dureza os filhos. Ele os confronta com uma pergunta decisiva: “Podeis beber o cálice que eu vou beber?” (Mt 20,22). A pergunta é desconcertante. Fala do destino do Filho do Homem que “não veio para ser servido, mas para servir e dar a vida em resgate por muitos” (v.28). O cálice, aqui, é símbolo do sofrimento, da entrega, do amor até o fim – o mesmo cálice que Ele suplica ao Pai, no Getsêmani, que lhe seja afastado, caso possível (Mt 26,39), mas que aceita beber, em fidelidade à missão. Trata-se, pois, de uma inversão radical dos critérios do mundo: a glória se manifesta na cruz, e a autoridade se expressa no serviço. Não é à toa que Paulo, escrevendo aos Filipenses, nos recorda que Jesus, “sendo de condição divina, não se apegou à sua igualdade com Deus, mas esvaziou-se” (Fl 2,6-8). O caminho do Reino passa pela kenosis, o esvaziamento de si mesmo, algo que não cabe em projetos de autopromoção religiosa ou estratégias de marketing eclesial.
A tentação do poder não é nova. No deserto, o diabo oferece a Jesus “todos os reinos do mundo e a sua glória” (Mt 4,8), e Jesus recusa. Mas muitos de seus seguidores, ao longo dos séculos, aceitaram esse mesmo convite — e o chamaram de bênção. O Reino de Deus, ao contrário, não vem com aparência (Lc 17,20), não se impõe por dominação, não conquista pelo prestígio. Ele cresce como fermento na massa, discreto, escondido, transformador. Como afirmou o próprio Jesus diante de Pilatos: “Meu Reino não é deste mundo” (Jo 18,36). E quando, após a multiplicação dos pães, a multidão quis proclamá-lo rei à força, Jesus se retirou (Jo 6,15). O poder que busca a visibilidade mata a essência do Evangelho.
São Tiago, o mesmo que hoje celebramos, será martirizado por Herodes Agripa I (At 12,2), tornando-se sinal vivo de que sim, é possível beber o cálice. João, embora não tenha morrido martirizado, também o bebeu, ao viver a solidão do exílio e o peso do cuidado pastoral até a velhice. O martírio, como recordava São Gregório Magno, não está apenas na morte violenta, mas na fidelidade até o fim. Suportar injúrias amando quem nos persegue (cf. Mt 5,44), permanecer fiel sem buscar recompensa, amar sem dominar – tudo isso é forma de martírio cotidiano, muitas vezes invisível, mas não menos fecundo.
No entanto, a lógica que seduz Tiago e João ainda impera em nosso tempo. Na sociedade de consumo, inclusive religioso, há quem transforme a fé em moeda, o púlpito em vitrine, e a salvação em produto. A teologia da prosperidade, que vende milagres, poder, bênçãos materiais e cura instantânea, nada mais é do que a recauchutagem dos pedidos da mãe dos Zebedeus: “coloca meu filho à tua direita!” – ou seja, dá-lhe visibilidade, vantagens, proteção. Em nome de um “Jesus de sucesso”, muitos rejeitam o Cristo crucificado. Esquecem que o Filho do Homem não tinha onde reclinar a cabeça (Mt 8,20), que nasceu numa estrebaria e morreu entre criminosos (Lc 23,33). Já denunciava Amós: “Ai dos que estão tranquilos em Sião... deitam-se em leitos de marfim, comem cordeiros dos rebanhos e não se afligem com a ruína de José” (Am 6,1-6). Isaías também bradava: “Ai dos que decretam leis injustas” (Is 10,1). Não há lugar para conforto egoísta num Evangelho que clama por justiça.
A crítica de Jesus, portanto, é sociológica e teológica: “Os chefes das nações as dominam e os grandes as tiranizam. Entre vós, não deverá ser assim” (Mt 20,25-26). A denúncia não é apenas contra os políticos do Império, mas contra qualquer sistema de dominação, inclusive religioso. A Igreja, que deveria ser sinal do Reino, muitas vezes se torna reflexo da corte: disputa lugares, ostenta vestes, busca bajulação. O profeta Ezequiel já denunciava os pastores que se apascentam a si mesmos e abandonam as ovelhas (Ez 34,1-10). A linguagem da autoridade, quando não passa pelo serviço, se torna autoritarismo. Daí a urgência de um retorno ao Evangelho puro e duro, como pede o Papa Francisco: “Prefiro uma Igreja acidentada, ferida e enlameada por ter saído pelas estradas do que uma Igreja enferma pelo fechamento e comodidade de se agarrar às próprias seguranças” (Evangelii Gaudium, 49). E mais: “Enquanto uns poucos se beneficiam, muitos outros são privados da dignidade humana” (Fratelli Tutti, 193). A Gaudium et Spes também nos alerta que a técnica e o poder devem ser submetidos à ética do bem comum e do serviço: “a atividade econômica deve servir verdadeiramente ao homem” (GS, 64).
O gesto de Jesus é escandaloso: “quem quiser tornar-se grande entre vós, seja aquele que vos serve” (Mt 20,26). A palavra usada é diakonos, de onde vem “diaconia” – serviço concreto, aos pés dos outros, nas margens. Isso é um tapa na cultura do prestígio, inclusive dentro das comunidades. Há quem sirva para aparecer, quem abrace para fotografar, quem reze para ser visto. O Reino não é espetáculo. O verdadeiro discipulado passa pelo anonimato da entrega. Como dizia Santo Inácio de Antioquia: “É melhor ser cristão em segredo do que o parecer em público.” E como nos recorda Jesus: “Quando deres esmola, que tua mão esquerda não saiba o que faz a direita” (Mt 6,3). A lógica do Reino é o ocultamento fecundo, não a autopromoção piedosa. 
O texto nos obriga também a uma leitura antropológica e psicológica. O desejo de poder não é apenas vaidade – é expressão de carência, de medo, de tentativa de controle. É a ilusão de que ao dominar serei amado, ao subir serei visto, ao mandar serei respeitado. Jesus propõe o caminho oposto: amar sem dominar, doar-se sem esperar retribuição, descer para encontrar o outro. Essa descida, que é kenótica, é também terapêutica: cura-nos da necessidade de aprovação, liberta-nos da obsessão pelo controle. O Evangelho cura o ego, não o infla. “O amor tudo suporta, tudo crê, tudo espera, tudo desculpa” (1Cor 13,7) — e também tudo renuncia, se necessário for, para que o outro viva. Como Estevão, primeiro diácono e primeiro mártir, que não buscou trono nem título, mas mesa e cruz. É esse o cálice que o discípulo bebe quando se entrega — sem exigência, sem contrato, sem palco. O martírio cotidiano se dá quando o amor é mais forte que a autopreservação, quando a fidelidade pesa mais que a fama, quando a verdade importa mais que os likes. Não é o púlpito que glorifica, é a cruz carregada em silêncio.
Na festa de São Tiago, é justo perguntar:
  •  Qual cálice temos pedido? 
  • O da glória ou o do serviço? 
  • O da visibilidade ou o da fidelidade? 
Que Tiago interceda por nós, para que possamos não apenas sentar à direita ou à esquerda, mas caminhar com o Cristo servo até o fim. Pois só o serviço liberta, só o amor salva, só o Reino permanece. “Entre vós, não deverá ser assim...” (Mt 20,26) — que essa palavra seja critério, conversão e compromisso. Amém


DNonato – Teólogo do Cotidiano