Mostrando postagens com marcador #Lucas6. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador #Lucas6. Mostrar todas as postagens

sexta-feira, 12 de setembro de 2025

Um breve olhar sobre Lucas 6, 43-49

A passagem de Lucas 6,43-49 é proclamada no sábado da 23ª semana do Tempo Comum, conforme o Leccionário Litúrgico da Igreja Católica. Neste sábado, a Palavra nos chama a refletir sobre a solidez de nossa vida espiritual e a coerência entre fé e prática, lembrando que ouvir a Palavra sem vivê-la é como construir sobre areia: fragilidade diante das tempestades da vida. Jesus nos apresenta duas imagens profundas: a árvore que se conhece pelos frutos e a construção que se mantém ou desmorona conforme o alicerce. O vento que sacode a árvore, a chuva que inunda a terra, o barro que cede sob os pés são imagens das tempestades internas e externas que todos enfrentamos. Como afirma o Salmo 1,3: “Ele é como árvore plantada junto a correntes de águas, que dá fruto no tempo certo, e cuja folha não murcha; tudo o que fizer prosperará.”

Quando Jesus fala da árvore boa que produz frutos bons e da árvore má que produz frutos ruins, ele nos convida a um exame profundo do coração. Lucas 6,45 afirma: “Do coração procedem as más intenções e as boas intenções; é disso que a boca fala.” Mateus 7,16-20 reforça: “Pelos frutos os conhecereis.” Isaías 5,1-7 denuncia o fracasso de uma vinha que deveria produzir frutos de justiça, mas que apenas produz clamor e sangue; Jeremias 17,7-8 contrapõe a confiança em Deus à esterilidade daqueles que se afastam da rocha divina. Provérbios 11,30 lembra que “o fruto do justo é árvore de vida, e quem ganha almas é sábio”, enquanto Salmo 92,13 descreve: “O justo florescerá como a palmeira, crescerá como o cedro do Líbano.” Lucas enfatiza que os frutos se manifestam concretamente: justiça, misericórdia e solidariedade são sinais de uma fé viva, não meras palavras.

Jesus elogia os pobres, denuncia os ricos e satisfeitos, e instrui seus discípulos a amar inimigos, abençoar os que os maldizem, fazer o bem sem esperar retribuição (Lc 6,20-36). A árvore boa transforma relações e denuncia injustiças; a fé encarnada desafia o individualismo, a fé como mercadoria e a teologia da prosperidade que promete sucesso em troca de dízimos. Líderes que vendem bênçãos financeiras podem parecer frutíferos, mas suas raízes apodrecem. A árvore ruim, por sua vez, produz frutos de aparências e envenena a vida alheia, seja pelo clericalismo opressor, seja por fé espetáculo que entretém sem formar, como alerta Amós 5,21-24: “Não quero a vossa festa, nem me agrada o vosso culto; traga-me justiça como água, e retidão como riacho perene.”

A parábola da casa construída sobre a rocha e sobre a areia convida à profundidade. Lucas 6,48 enfatiza que o homem que constrói sobre a rocha cavou fundo e pôs o alicerce sobre a pedra firme. O cavar simboliza esforço, discernimento e compromisso. No Oriente Médio, casas sobre areia eram vulneráveis às cheias; apenas o alicerce profundo resistia. A rocha é Cristo, a Palavra encarnada que sustenta a vida diante das tempestades (Mt 7,24-25; Mc 4,1-20; Is 28,16). A areia representa falsas seguranças: riqueza, prestígio, autoridade clerical, fé como investimento pessoal. Ouvir sem praticar gera fragmentação, angústia e hipocrisia (Tg 1,22-25). Kohlberg observa que a maturidade ética se mede na ação; ouvir sem agir mantém a moral em estado infantil.

A árvore que produz frutos bons e a casa firme sobre a rocha revelam a integração de fé, razão, emoção e ação. Comunidades que constroem sobre areia – luxo ritualístico, poder clerical, fé espetáculo – desmoronam diante de crises. A crítica de Jesus é direta à teologia do domínio e da prosperidade: fé que se transforma em mercadoria promete sucesso, mas não sustenta vidas. Kierkegaard lembra que a fé exige salto existencial; Hannah Arendt alerta que superficialidade conduz à banalidade do mal. Como Mateus 23,23-24 adverte, não se deve negligenciar justiça, misericórdia e fé.

A patrística reforça essa perspectiva: Santo Agostinho ensina que ouvir sem praticar é olhar o reflexo sem entrar na água; São João Crisóstomo destaca a importância da firmeza do fundamento; Orígenes afirma que o que não está enraizado na rocha divina será levado pela maré da vaidade; Gregório de Nissa reforça que a sabedoria divina constrói alicerces invisíveis, mas firmes. A tradição da Igreja confirma que fé autêntica se manifesta na coerência entre palavra, ação e comunidade. O Concílio Vaticano II denuncia a busca de riqueza e poder em detrimento da dignidade humana; Evangelii Gaudium enfatiza que a fé transforma o mundo e convoca à ação concreta; Fratelli Tutti alerta para sociedades construídas sobre egoísmo e exclusão.

A humanidade sempre buscou fundamentos sólidos. A pedra simboliza estabilidade e divindade em diversas culturas. Construir sobre a rocha é gesto existencial: buscar segurança última naquilo que transcende. Pseudorrochas – dinheiro, prestígio, autoridade clerical – conduzem à ruína; Cristo sustenta vidas e gera comunidade. Provérbios 24,3-4 nos lembra: “Com sabedoria se edifica a casa, e com discernimento ela se firma; com conhecimento, os cômodos se enchem de todas as riquezas preciosas e deleitosas.”

O clericalismo é diretamente desafiado: a rocha não é a autoridade humana, mas a Palavra encarnada que exige conversão, serviço e humildade. Verdadeira autoridade é do discípulo que escuta, pratica e constrói com os outros, não do líder que se impõe. A Igreja é casa construída sobre a rocha, não fortaleza sobre areia. A Palavra de Jesus é alicerce que sustenta a vida comunitária; coerência entre fé e prática garante a solidez. O Papa Francisco, já falecido, lembrava que a Igreja deve ser uma comunidade de discípulos missionários, não uma instituição que busca poder ou prestígio. Pergunta-se ao final: 

  • Qual é a raiz da minha vida? 
  • Sobre qual rocha tenho construído meu ser? 

A resposta define não apenas o presente, mas também a resistência às tempestades futuras, reafirmando que a fidelidade à Palavra é a única base que não se abala.



DNonato - Teólogo do Cotidiano 


quarta-feira, 10 de setembro de 2025

Um breve olhar sobre Lucas 6,27-38

O texto de Lucas 6,27-38  nos faz  um dos convites mais radicais e desafiadores do Evangelho: amar os inimigos, fazer o bem aos que nos odeiam, abençoar aqueles que nos amaldiçoam e rezar pelos que nos difamam. Trata-se de um ensinamento que não pode ser reduzido a uma moral frágil ou a um ideal inalcançável, mas de uma proposta transformadora de vida que subverte a lógica da vingança e da retaliação tão presentes na história humana. É nesse horizonte que a liturgia da Igreja retoma este texto em momentos distintos, como no 7º Domingo do Tempo Comum do ano C e também na quinta-feira da 23ª semana do Tempo Comum nos anos ímpares, recordando-nos de que a misericórdia não é um adorno, mas o próprio centro do agir cristão.

Ao propor o amor aos inimigos, Jesus não pede algo fora da realidade, mas revela a face mais profunda de Deus. “Sede misericordiosos, como vosso Pai é misericordioso” (Lc 6,36) é o eixo que sustenta todo o trecho. O apelo não é apenas para não revidar, mas para agir com generosidade além da medida, oferecendo a outra face (Lc 6,29), cedendo até aquilo que seria justo reter. Essa lógica desconcerta porque rompe com o ciclo da violência e coloca a dignidade humana acima da lei da retribuição. Aqui ressoam as palavras do Levítico: “Não te vingarás, nem guardarás rancor contra os filhos do teu povo. Amarás o teu próximo como a ti mesmo. Eu sou o Senhor” (Lv 19,18). Jesus, porém, expande esse horizonte ao incluir até o inimigo nesse amor, algo que vai além da tradição antiga e abre uma nova etapa na história da salvação. Esse chamado encontra eco em outras passagens. O Livro dos Provérbios já afirmava: “Se o teu inimigo tiver fome, dá-lhe de comer; se tiver sede, dá-lhe de beber, porque assim amontoarás brasas sobre a sua cabeça” (Pr 25,21-22). Paulo retoma esse ensinamento em Romanos 12,20, para mostrar que o amor desarma o ódio e revela o poder transformador do bem. O Salmo 103 nos lembra que “o Senhor é compassivo e misericordioso, lento para a cólera e cheio de bondade”, e é nessa mesma bondade que Jesus convida seus discípulos a se espelhar. Já o profeta Oséias apresenta a voz de Deus que prefere a misericórdia ao sacrifício (Os 6,6), antecipando a centralidade do perdão e da compaixão que culmina no Evangelho.

Nos sinóticos, o mesmo ensinamento reaparece. Mateus, no Sermão da Montanha, afirma: “Amai os vossos inimigos e rezai pelos que vos perseguem, para que vos torneis filhos do vosso Pai do céu, que faz nascer o sol sobre maus e bons e faz cair a chuva sobre justos e injustos” (Mt 5,44-45). Marcos também acentua a dimensão da medida com que julgamos e somos julgados: “Com a medida com que medirdes sereis medidos, e ainda vos será acrescentado” (Mc 4,24). E o próprio Lucas retomará em Atos dos Apóstolos esse espírito de comunhão, quando descreve as primeiras comunidades que partilhavam tudo e não deixavam ninguém em necessidade (At 2,44-45). O Evangelho inteiro é costurado por essa lógica do dom que supera a lógica da troca e da retribuição.

A exegese desse trecho mostra que o contexto em que Lucas escreve é marcado pela perseguição e pelo conflito. A comunidade lucana, vivendo tensões no meio do Império Romano e sob hostilidades internas e externas, precisava ouvir que o caminho da vingança não seria a solução. O “amai os vossos inimigos” não é uma frase para embelezar discursos, mas um princípio que garantia a sobrevivência da comunidade cristã sem perder sua identidade. A hermenêutica desse texto revela que, ao longo da história, a tentação de se curvar ao poder e de responder ao ódio com ódio sempre rondou a Igreja. A insistência de Jesus nesse mandamento nos recorda que o caminho da cruz e da entrega é a única via coerente com o Evangelho.

Esse mandamento radical de Jesus toca profundamente também a psicologia humana. O ressentimento aprisiona, o ódio corrói a alma e a vingança prolonga indefinidamente o sofrimento. Perdoar não significa esquecer ou relativizar o mal, mas deixar de ser escravo dele. O perdão liberta quem perdoa, mesmo quando o outro não se converte. A psicologia moderna mostra como pessoas que cultivam o rancor sofrem mais com ansiedade, depressão e doenças físicas, enquanto a prática do perdão está associada a maior saúde mental e bem-estar. É um gesto que cura interiormente, mas que também pode transformar relações sociais.

Vivemos rm uma  sociedades baseadas na lei da retaliação que  perpetuam ciclos de violência e exclusão. A cultura da vingança gera guerras intermináveis, linchamentos sociais e polarizações destrutivas. Já práticas de reconciliação e justiça restaurativa têm o poder de reconstituir o tecido social. Experiências em países marcados por ditaduras e genocídios, como as comissões da verdade, mostram que só é possível reconstruir comunidades se a verdade vier à tona e se houver disposição de restaurar laços rompidos pela violência. Jesus, ao pedir que se ame o inimigo, aponta para uma sociedade reconciliada, fundada não na lógica da exclusão, mas no reconhecimento da dignidade humana.

A filosofia também encontra ressonância aqui. Os estóicos já falavam sobre a importância de não se deixar dominar pelas paixões destrutivas. Mais tarde, Emmanuel Levinas mostrará que a ética nasce do rosto do outro, que nos convoca à responsabilidade. Jesus, porém, vai além: não se trata apenas de respeitar o outro ou de reconhecer a alteridade, mas de amá-lo, inclusive quando esse outro se torna hostil. É um salto qualitativo que subverte qualquer ética natural e nos coloca na dimensão do dom absoluto.

Toda cultura lida com mecanismos de violência e as sociedades tendem a projetar suas tensões sobre um inimigo comum. O Evangelho rompe com esse mecanismo ao revelar que Deus não quer sacrifícios humanos, mas misericórdia. Ao propor o amor aos inimigos, Jesus desarma a lógica sacrificial que fundamenta tantas culturas e propõe um caminho de reconciliação universal.

Esse texto também é denúncia contra teologias que distorcem a mensagem de Cristo. A teologia da prosperidade, que mede a bênção de Deus pelo acúmulo de bens, contradiz frontalmente a lógica de dar sem esperar nada em troca (Lc 6,35). A teologia do domínio, que busca legitimar a imposição de poder religioso e político, cai por terra diante da ordem de amar os inimigos e não de destruí-los. A fé individualista, que se fecha em experiências privadas de bem-estar, é desafiada pelo chamado a um amor social, que rompe barreiras de hostilidade. A fé como mercadoria, sustentada por pregadores digitais que vendem promessas em troca de curtidas e dízimos, não resiste diante da radicalidade de um Cristo que pede não lucro, mas entrega total. O clericalismo, por sua vez, que distancia o clero do povo e transforma a Igreja em uma casta de privilégios, é desmascarado quando Jesus coloca todos sob a mesma medida da misericórdia divina.

Documentos da Igreja reforçam essa leitura. O Concílio Vaticano II, na Gaudium et Spes, afirma que “o homem não pode encontrar-se plenamente a não ser pelo dom sincero de si mesmo” (GS 24), em sintonia com a lógica do dar e não esperar em troca. Também em GS 66, o Concílio denuncia as estruturas de exploração econômica que negam a dignidade humana, mostrando que a misericórdia precisa se traduzir em justiça social. A Evangelii Gaudium recorda que “a misericórdia é a maior de todas as virtudes” (EG 37) e denuncia as formas de idolatria do dinheiro que corroem a vida cristã. A Fratelli Tutti retoma a urgência do amor universal, pedindo que deixemos de lado fronteiras que separam e alimentam inimigos, para reconhecer em todos a dignidade de irmãos e irmãs (FT 193). Bento XVI, em Deus Caritas Est, também insiste que a caridade cristã não é filantropia, mas participação no amor mesmo de Deus, que não exclui ninguém.

Santo Agostinho dizia que “amar os inimigos é não ter inimigos”, pois quando o amor é verdadeiro, até quem nos persegue é visto como alguém a ser resgatado para a comunhão. São João Crisóstomo pregava que “nada nos torna tão semelhantes a Deus quanto estar prontos para amar até os inimigos”. Orígenes via nesse mandamento a confirmação de que a lei do amor supera a letra fria da lei antiga. São Basílio recordava que quem conserva o ódio não pode se aproximar do altar de Deus, pois a comunhão verdadeira exige reconciliação.

As implicações desse texto são profundamente atuais. Em tempos de polarizações políticas, discursos de ódio e manipulações religiosas, a palavra de Jesus soa como profecia. Amar os inimigos não significa conivência com injustiças, mas agir profeticamente contra a lógica de destruição, sem perder a humanidade. A misericórdia não é passividade, mas resistência ativa que rompe o ciclo da violência. É preciso denunciar a exploração, resistir à desigualdade, enfrentar os poderes que oprimem, mas sem cair na armadilha de reproduzir o mesmo ódio que nos fere. Aqui a fé cristã se torna fermento de uma nova sociedade.

O amor radical que Jesus propõe é, ao mesmo tempo, espiritual e político, pessoal e coletivo. Ele toca o íntimo do coração humano e repercute na organização social. Se cada um de nós vive esse chamado, não julgando nem condenando, mas perdoando e oferecendo com generosidade, experimentaremos uma transformação interior que reflete no mundo. O amor ao inimigo não é apenas uma atitude devocional, mas um caminho de libertação histórica. E como recorda o próprio Jesus: “Dai, e vos será dado: uma boa medida, calcada, sacudida, transbordante será colocada no vosso colo” (Lc 6,38). É essa abundância de amor, que vem de Deus, que sustenta a esperança e constrói um futuro de fraternidade.



DNonato - Teólogo do Cotidiano 

terça-feira, 9 de setembro de 2025

Um breve olhar sobre Lucas 6,20-26

Iniciamos esta reflexão com a palavra profética de São Óscar Romero, pronunciada em 17 de fevereiro de 1980: "Não é um prestígio para a Igreja estar bem com os poderosos. Prestígio para a Igreja é sentir que os pobres a sentem como sendo sua, sentir que a Igreja vive uma dimensão na terra, chamando todos, também os ricos, à conversão e à salvação a partir do mundo dos pobres, porque eles são unicamente os bem-aventurados."

O Evangelho de Lucas 6,20-26, proclamado no 6⁰  Domingo do Tempo Comum do Ano C e também na 23ª quarta-feira do Tempo Comum do ano ímpar, nos oferece a oportunidade de refletir profundamente sobre a verdadeira bem-aventurança e sobre os caminhos de vida que escolhemos. Esta leitura, verificada e confirmada em fontes oficiais de liturgia, nos lembra que a Igreja não é neutra: ou ela está alinhada com o Reino de Deus ou se conforma aos valores do mundo. Lucas, diferentemente de Mateus, não fala genericamente dos “pobres em espírito”, mas aponta diretamente para os pobres concretos, afirmando: “Bem-aventurados vós, os pobres, porque vosso é o Reino de Deus”. Essa distinção ilumina a centralidade da presença divina entre os marginalizados e excluídos. Essa centralidade se revela ainda mais ao analisarmos o contexto histórico e social em que Jesus proclamou essas palavras. Ele falava a pessoas oprimidas pelo jugo romano, submetidas a tributos pesados e às arbitrariedades das elites religiosas. O pobre, nesse sentido, é não apenas carente de bens, mas estruturalmente vulnerável. O termo grego ptōchos evoca total dependência e precariedade, revelando que a promessa de Jesus não é espiritualismo abstrato, mas compromisso concreto com aqueles que o mundo despreza. 

A forma literária do texto de Lucas reforça esta mensagem: quatro bem-aventuranças contrapostas a quatro “ais” denunciam a inversão de valores. Esta técnica lembra os profetas do Antigo Testamento, como Amós, que denuncia os ricos que vivem em luxo enquanto o povo sofre (Am 6,1-6), e Isaías, que critica a acumulação egoísta de bens (Is 5,8). Jeremias denuncia líderes injustos que ignoram o clamor dos necessitados (Jr 22,16), e os Salmos reafirmam que Deus ouve o clamor dos justos e marginalizados (Sl 34,7). Essas referências não apenas fundamentam o texto de Lucas, mas revelam a continuidade da opção divina pelos pobres ao longo de toda a Escritura.

Quando olhamos os paralelos sinóticos, percebemos a radicalidade desta escolha. Mateus 5,1-12 oferece uma versão espiritualizada das bem-aventuranças, enquanto Lucas não esconde o rosto real da pobreza. Marcos 10,17-27 mostra a dificuldade dos ricos em entrar no Reino, reforçando o contraste entre riqueza e entrega a Deus. Tiago 5,1-4 ecoa as palavras de Lucas ao denunciar a exploração econômica e moral, mostrando que a denúncia profética transcende culturas e épocas.

Essa perspectiva se aprofunda quando consideramos a dimensão psicológica e sociológica da mensagem. O apego desenfreado a bens e prestígio não apenas gera injustiça, mas cria vazio interior, solidão e isolamento. Viktor Frankl já demonstrava que o ser humano precisa de sentido, e não de acúmulo. Sociologicamente, a concentração de riqueza perpetua desigualdade e exclusão; antropologicamente, o ser humano é relacional, feito para viver em comunidade (Gn 2,18). Historicamente, os pobres enfrentaram múltiplas formas de opressão, evidenciando a atualidade da mensagem de Lucas.

A Patrística reforça esta leitura. Santo Ambrósio lembra que a terra foi criada em comum para todos e que o excesso é um roubo aos pobres (De Naboth). São João Crisóstomo denuncia que não partilhar os bens é roubo de vida (Homilia sobre Lázaro), enquanto Santo Agostinho, em Cidade de Deus, contrapõe o amor desordenado com o amor ordenado, mostrando o caminho ético das bem-aventuranças. Estes ensinamentos formam um fio contínuo que conecta a mensagem de Jesus à tradição da Igreja.

O Magistério contemporâneo confirma esta interpretação. O Concílio Vaticano II, em Gaudium et Spes (n.1), afirma que alegrias e sofrimentos dos pobres são também os da Igreja. Medellín (1968) denunciou a miséria coletiva, Puebla (1979) apontou os rostos concretos da exclusão, e Aparecida (2007, nn. 392-395) reafirma que a opção pelos pobres é eixo missionário. Evangelii Gaudium (n.198) adverte que sem essa opção o Evangelho perde autenticidade, enquanto Fratelli Tutti (nn.187 e 189) denuncia a exclusão e a desigualdade, mostrando que a mensagem de Lucas continua viva e urgente.

Entretanto, as falsas teologias tentam silenciar esta radicalidade. A teologia da prosperidade reduz a fé a mercadoria; a teologia do domínio legitima poder e controle; a fé-mercadoria transforma espiritualidade em espetáculo. O clericalismo cria hierarquias fechadas, afastando a Igreja dos pobres e invertendo a lógica das bem-aventuranças. Cada um desses desvios demonstra a necessidade de permanecermos atentos à autenticidade do Evangelho, colocando a justiça e a solidariedade acima do prestígio, do lucro e da autopromoção.

Historicamente, na América Latina, muitos viveram e morreram por esta fidelidade, incluindo Romero, irmã Dorothy Stang e padres e leigos comprometidos com os pobres. Eles encarnaram as bem-aventuranças e enfrentaram os “ais” do mundo, tornando-se testemunhas vivas da opção preferencial pelos pobres. Suas vidas mostram que a consolação do Reino é possível aqui e agora, na coragem de defender a justiça e a dignidade humana.

Lucas 6,20-26 nos convida à escolha radical: ou buscamos a consolação do mundo, passageira e ilusória, ou a consolação do Reino, que já começa no cotidiano de partilha e solidariedade. As bem-aventuranças são vividas em cada gesto de cuidado, denúncia profética e entrega ao outro. Isaías 32,17 assegura que “o fruto da justiça será a paz”, enquanto Apocalipse 21,4 promete que Deus “enxugará toda lágrima”, consolidando a esperança daqueles que hoje choram e sofrem. .

Assim, à luz de Lucas, da tradição profética e da voz de Romero, proclamamos com fé: bem-aventurados os pobres, porque deles é o Reino de Deus. E ai de nós, se não formos Igreja pobre e dos pobres.

DNonato – Teólogo do Cotidiano