terça-feira, 9 de setembro de 2025

Um breve olhar sobre Lucas 6,20-26

Iniciamos esta reflexão com a palavra profética de São Óscar Romero, pronunciada em 17 de fevereiro de 1980: "Não é um prestígio para a Igreja estar bem com os poderosos. Prestígio para a Igreja é sentir que os pobres a sentem como sendo sua, sentir que a Igreja vive uma dimensão na terra, chamando todos, também os ricos, à conversão e à salvação a partir do mundo dos pobres, porque eles são unicamente os bem-aventurados."

O Evangelho de Lucas 6,20-26, proclamado no 6⁰  Domingo do Tempo Comum do Ano C e também na 23ª quarta-feira do Tempo Comum do ano ímpar, nos oferece a oportunidade de refletir profundamente sobre a verdadeira bem-aventurança e sobre os caminhos de vida que escolhemos. Esta leitura, verificada e confirmada em fontes oficiais de liturgia, nos lembra que a Igreja não é neutra: ou ela está alinhada com o Reino de Deus ou se conforma aos valores do mundo. Lucas, diferentemente de Mateus, não fala genericamente dos “pobres em espírito”, mas aponta diretamente para os pobres concretos, afirmando: “Bem-aventurados vós, os pobres, porque vosso é o Reino de Deus”. Essa distinção ilumina a centralidade da presença divina entre os marginalizados e excluídos. Essa centralidade se revela ainda mais ao analisarmos o contexto histórico e social em que Jesus proclamou essas palavras. Ele falava a pessoas oprimidas pelo jugo romano, submetidas a tributos pesados e às arbitrariedades das elites religiosas. O pobre, nesse sentido, é não apenas carente de bens, mas estruturalmente vulnerável. O termo grego ptōchos evoca total dependência e precariedade, revelando que a promessa de Jesus não é espiritualismo abstrato, mas compromisso concreto com aqueles que o mundo despreza. 

A forma literária do texto de Lucas reforça esta mensagem: quatro bem-aventuranças contrapostas a quatro “ais” denunciam a inversão de valores. Esta técnica lembra os profetas do Antigo Testamento, como Amós, que denuncia os ricos que vivem em luxo enquanto o povo sofre (Am 6,1-6), e Isaías, que critica a acumulação egoísta de bens (Is 5,8). Jeremias denuncia líderes injustos que ignoram o clamor dos necessitados (Jr 22,16), e os Salmos reafirmam que Deus ouve o clamor dos justos e marginalizados (Sl 34,7). Essas referências não apenas fundamentam o texto de Lucas, mas revelam a continuidade da opção divina pelos pobres ao longo de toda a Escritura.

Quando olhamos os paralelos sinóticos, percebemos a radicalidade desta escolha. Mateus 5,1-12 oferece uma versão espiritualizada das bem-aventuranças, enquanto Lucas não esconde o rosto real da pobreza. Marcos 10,17-27 mostra a dificuldade dos ricos em entrar no Reino, reforçando o contraste entre riqueza e entrega a Deus. Tiago 5,1-4 ecoa as palavras de Lucas ao denunciar a exploração econômica e moral, mostrando que a denúncia profética transcende culturas e épocas.

Essa perspectiva se aprofunda quando consideramos a dimensão psicológica e sociológica da mensagem. O apego desenfreado a bens e prestígio não apenas gera injustiça, mas cria vazio interior, solidão e isolamento. Viktor Frankl já demonstrava que o ser humano precisa de sentido, e não de acúmulo. Sociologicamente, a concentração de riqueza perpetua desigualdade e exclusão; antropologicamente, o ser humano é relacional, feito para viver em comunidade (Gn 2,18). Historicamente, os pobres enfrentaram múltiplas formas de opressão, evidenciando a atualidade da mensagem de Lucas.

A Patrística reforça esta leitura. Santo Ambrósio lembra que a terra foi criada em comum para todos e que o excesso é um roubo aos pobres (De Naboth). São João Crisóstomo denuncia que não partilhar os bens é roubo de vida (Homilia sobre Lázaro), enquanto Santo Agostinho, em Cidade de Deus, contrapõe o amor desordenado com o amor ordenado, mostrando o caminho ético das bem-aventuranças. Estes ensinamentos formam um fio contínuo que conecta a mensagem de Jesus à tradição da Igreja.

O Magistério contemporâneo confirma esta interpretação. O Concílio Vaticano II, em Gaudium et Spes (n.1), afirma que alegrias e sofrimentos dos pobres são também os da Igreja. Medellín (1968) denunciou a miséria coletiva, Puebla (1979) apontou os rostos concretos da exclusão, e Aparecida (2007, nn. 392-395) reafirma que a opção pelos pobres é eixo missionário. Evangelii Gaudium (n.198) adverte que sem essa opção o Evangelho perde autenticidade, enquanto Fratelli Tutti (nn.187 e 189) denuncia a exclusão e a desigualdade, mostrando que a mensagem de Lucas continua viva e urgente.

Entretanto, as falsas teologias tentam silenciar esta radicalidade. A teologia da prosperidade reduz a fé a mercadoria; a teologia do domínio legitima poder e controle; a fé-mercadoria transforma espiritualidade em espetáculo. O clericalismo cria hierarquias fechadas, afastando a Igreja dos pobres e invertendo a lógica das bem-aventuranças. Cada um desses desvios demonstra a necessidade de permanecermos atentos à autenticidade do Evangelho, colocando a justiça e a solidariedade acima do prestígio, do lucro e da autopromoção.

Historicamente, na América Latina, muitos viveram e morreram por esta fidelidade, incluindo Romero, irmã Dorothy Stang e padres e leigos comprometidos com os pobres. Eles encarnaram as bem-aventuranças e enfrentaram os “ais” do mundo, tornando-se testemunhas vivas da opção preferencial pelos pobres. Suas vidas mostram que a consolação do Reino é possível aqui e agora, na coragem de defender a justiça e a dignidade humana.

Lucas 6,20-26 nos convida à escolha radical: ou buscamos a consolação do mundo, passageira e ilusória, ou a consolação do Reino, que já começa no cotidiano de partilha e solidariedade. As bem-aventuranças são vividas em cada gesto de cuidado, denúncia profética e entrega ao outro. Isaías 32,17 assegura que “o fruto da justiça será a paz”, enquanto Apocalipse 21,4 promete que Deus “enxugará toda lágrima”, consolidando a esperança daqueles que hoje choram e sofrem. .

Assim, à luz de Lucas, da tradição profética e da voz de Romero, proclamamos com fé: bem-aventurados os pobres, porque deles é o Reino de Deus. E ai de nós, se não formos Igreja pobre e dos pobres.

DNonato – Teólogo do Cotidiano


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