terça-feira, 19 de agosto de 2025

Um breve olhar sobre Mateus 19,23-30

“O Camelo, a Agulha e a Herança da Vida: Escândalo e Esperança no Reino de Deus”

A liturgia proclama este texto na terça-feira da 20ª semana do Tempo Comum, e nele ressoa a força escatológica de todo o Evangelho. O episódio do jovem rico (Mt 19,16-22) revela a radicalidade do chamado de Cristo: a recusa em seguir Jesus por apego às riquezas provoca a declaração que ecoa como trovão para todos os corações apegados ao mundo: “É difícil um rico entrar no Reino dos Céus” (Mt 19,23). O camelo e a agulha não são apenas hipérboles orientais, mas símbolos da impossibilidade de conciliar idolatria e discipulado, lembrando Jeremias 22,13-17, onde o Senhor denuncia os que “adquirem casas injustamente e não exercem justiça ao órfão e à viúva”. O que é impossível para o homem torna-se possível pela graça de Deus (Mt 19,26), pois a salvação não se conquista, não se compra e não se negocia.

Nos sinóticos, Marcos 10,23-31 e Lucas 18,24-30 reforçam o espanto dos discípulos e a promessa final: quem abandona casa, família ou bens por amor a Cristo recebe cem vezes mais e herda a vida eterna. Mateus amplia a dimensão eclesial: os que seguem participam do juízo das doze tribos (Mt 19,28), reconfigurando relações, valores e esperanças. O “cem vezes mais” não é riqueza material, mas fraternidade, partilha e cuidado mútuo, como nos lembra a primeira comunidade cristã: “Nenhum deles dizia ser dono de alguma coisa, mas tudo era comum” (At 4,32-35). Eis o eco profético de princípios socialistas de igualdade e solidariedade, não ideologia, mas expressão da justiça do Reino.

A psicologia ilumina o drama interior: o apego às riquezas é apego ao ego, medo da vulnerabilidade, ilusão de onipotência. Freud e Jung nos ajudam a compreender a sombra que carregamos; Jesus, evocando o camelo e a agulha, denuncia a prisão de nossos próprios corações. A liberdade só nasce quando o “eu” e o “meu” cedem lugar à confiança em Deus.

A sociologia evidencia a dimensão estrutural: sociedades que concentram riqueza criam exclusão, marginalização e sofrimento. Amós denuncia: “Ai dos que acumulam casas e campo a campo, e não deixam espaço para os outros” (Am 8,4-6). Isaías acusa: “Juntai casa a casa, campo a campo, até que não haja mais lugar” (Is 5,8). Jesus retoma essa denúncia profética: o apego às riquezas é idolatria, gera injustiça e oprime comunidades. Tiago reforça: “O salário que retivestes clama, e o clamor dos ceifeiros chegou aos ouvidos do Senhor” (Tg 5,4).

Na filosofia e patrística, a dimensão ética é clara: Aristóteles via a virtude como equilíbrio; Agostinho ensina que “a medida do amor é amar sem medida”; João Crisóstomo declara: “Não partilhar com os pobres é roubá-los e privá-los da vida”. A tradição cristã entende que riqueza sem solidariedade é violência.

O Magistério reforça essa leitura: Gaudium et Spes (n. 63-66) denuncia desigualdades crescentes; Evangelii Gaudium (n. 53-60) critica a “economia que mata” e a idolatria do dinheiro; Fratelli Tutti (n. 119-123) afirma que os direitos de alguns não podem se sobrepor ao bem comum. Medellín e Puebla reafirmam a opção preferencial pelos pobres: a fé é força de transformação social, não intimista. Aparecida recorda: “A opção pelos pobres é implícita na fé cristológica” (DAp 392).

Da antropologia aprendemos que o ser humano é relacional. O individualismo, a teologia da prosperidade e a fé como mercadoria negam a essência comunitária da vida. O clericalismo transforma serviço em prestígio e poder; a lógica do Reino, porém, subverte hierarquias: “Os últimos serão os primeiros, e os primeiros serão os últimos” (Mt 19,30). A inversão evangélica restitui dignidade aos invisíveis e desafia toda autoridade que oprime.

A história mostra traições e fidelidades: enquanto impérios e Igrejas acumulavam riqueza e legitimavam desigualdades, santos e profetas encarnaram a radicalidade do Evangelho: Francisco de Assis, Dom Hélder Câmara, Dom Oscar Romero. Como disse Dom Hélder: “Quando dou comida aos pobres, me chamam de santo. Quando pergunto por que eles são pobres, me chamam de comunista”. O Evangelho exige mais que esmola: justiça estrutural, solidariedade e compromisso com a vida de todos. Aqui encontramos consonância com princípios socialistas de igualdade e cuidado coletivo, não como doutrina, mas como expressão da lógica do Reino.

Diante disso, somos desafiados: 

Que camelos carregamos em nossos corações? 

Que seguranças nos impedem de atravessar a agulha do Reino? 

Que estruturas sociais, eclesiais e individuais precisam ser desfeitas para que a vida eterna floresça já no presente? 

O seguimento de Jesus é caminho de libertação radical, inversão das lógicas humanas, construção de fraternidade e justiça. A palavra de Jesus ressoa como julgamento e promessa: julgamento sobre um mundo que idolatra dinheiro, poder e prestígio; promessa de vida plena para os que ousam confiar em Deus, desapegar-se, servir e partilhar. O escândalo da agulha é esperança viva: impossível aos homens, mas possível a Deus. Cada gesto de justiça, solidariedade e fraternidade é antecipação do Reino, tornando presente o impossível divino no coração humano e na história.

✍️ DNonato – Teólogo do Cotidiano


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