Todos nós erguemos muros. Mas não somos os únicos a carregar pedras: aqueles que amamos também levantam suas barreiras, silenciosas, invisíveis, intocáveis — uma arquitetura fria do adeus. Nikita não é apenas a guarda distante na fronteira de uma canção de Elton John; ela é a metáfora viva, a carne pulsante de todos aqueles que perdemos não para a morte, mas para o silêncio opaco, para o medo covarde, para as escolhas intransponíveis que não pudemos compartilhar. Ao som daquela melodia, somos tragados não só para o coração gelado da Guerra Fria, mas para o inverno profundo de nossas próprias almas, quando alguém que nos era o ar fechou a porta com um estrondo mudo, erguendo paredes que o amor, mesmo com toda a sua força, não conseguiu atravessar.
O peito se inunda com a memória ácida da saudade — lembrança lancinante de quem foi nosso chão, nosso porto em tempestade, nosso calor de fogueira na madrugada mais fria. Alguém que partiu sem fazer barulho, que se calou por dentro, que se escondeu atrás de barreiras que só existem na geografia da alma. Nikita, como essa pessoa, é a lembrança que arde: um rosto que ainda sentimos na pele como a brisa do verão que não volta, um riso que ecoa em um corredor vazio da memória, um perfume que insiste em nos visitar sem bater à porta. É a presença que, por mais distante, se recusa à rendição, à extinção total.
Existem dores que não vêm da ausência física, mas da impossibilidade desesperada de alcançar o centro do outro. Quantas vezes seguramos uma mão e sentimos que, por dentro, já havia uma muralha erguida até o céu? Quantas vezes sorrimos ao lado do ser amado e, mesmo assim, não conseguimos a chave de sua casa interior? Nikita é o espelho que nos devolve essa verdade: a dor não vem apenas da neve gelada, mas do silêncio que se agiganta, do olhar que chora sem se entregar, do amor que insiste em não nos deixar entrar, em nos manter do lado de fora da vida.
Este muro da alma não se restringe à história ou à política. Ele se manifesta no mais profundo do imaginário. É o Hades de onde jamais retornamos com aqueles que amamos de verdade; é a muralha que separa a utopia da Terra Sem Males dos povos Guarani; é o portão que Exu, em sua ambiguidade, pode abrir e tantas vezes mantém trancado; é o muro invisível que proíbe o toque na Terra Prometida, como a visão dolorosa de Moisés, que só pôde contemplá-la de longe. Cada cultura carrega em seu sangue a ciência de que há limites dilacerantes, fronteiras que não se cruzam no tempo desta vida, ausências que se cravam na eternidade.
E como não pensar no Muro das Lamentações, em Jerusalém? Um dia, ele foi o alicerce do grande Templo, o epicentro do encontro com o Sagrado, da comunhão plena. Hoje é apenas um fragmento teimoso, pedra sobre pedra, testemunho de uma glória que foi e de uma dor que permanece. Ali, entre lágrimas salgadas e súplicas sussurradas, a humanidade recorda: mesmo que o templo desabe em ruínas, a esperança de reconstrução resiste. O amor é isso: um templo que desmorona, que perde todas as paredes de segurança, mas que deixa de pé um único fragmento resistente, diante do qual nos ajoelhamos para chorar, rezar e recordar. E assim, como o povo diante daquele muro sagrado, encostamos a testa na aspereza da saudade, pedindo, em um silêncio que grita, que o amor perdido se transforme na promessa visceral de um reencontro.
Recordamos aquela intimidade voraz que parecia invencível e que agora reside do outro lado de uma fronteira intransponível. A cama sem o calor exato, a mesa sem a melodia do riso certo, a noite sem o abraço-escudo, o coração sem o retorno definitivo. É um luto que não se permite o encerramento, porque não houve adeus completo, porque ainda escutamos, na câmara mais íntima do peito, a voz que não voltará.
Mas mesmo diante desses muros de sofrimento, nós amamos. Amamos em silêncio obstinado, em resistência teimosa. Amamos mesmo sem a reciprocidade esperada, mesmo quando a ausência é a única herança que nos resta. Amar, neste campo de batalha, é carregar no peito uma chama que se recusa à cinza. É o ato político de resistir ao esquecimento. É o mantra sagrado de não permitir que o rancor se torne nossa própria e derradeira muralha.
E nós acreditamos, com uma fé que move montanhas, que os muros caem. Caíram os de concreto armado, como o de Berlim, que parecia a cicatriz eterna do mundo, mas sucumbiu diante da coragem e da esperança indomável de um povo que se recusou à separação. Assim também caem, ainda que no ritmo lento da eternidade, os muros da alma. Talvez não no tempo apressado da história, mas no tempo amplo da eternidade. Talvez não neste lado da vida, mas no outro, onde a promessa é que não haverá mais lágrimas nem despedidas.
Nikita se torna, para sempre, a metáfora sublime e dolorosa de todos aqueles que amamos sem conseguir alcançar. A saudade, essa presença que pesa em nosso corpo, é a lembrança viva de que o amor verdadeiro resiste ao cerco, sobrevive às fronteiras mais sombrias, e carrega em seu DNA a promessa indestrutível de que toda muralha, cedo ou tarde, ruirá. E quando isso acontecer, assim como o Muro de Berlim se abriu em pedaços, os muros que nos separam do outro também ruirão, e o amor, livre e sem ferrolhos, florescerá em sua plenitude sem limites.
Amar é a travessia audaciosa da história, do mito, do silêncio e da distância. Amar é manter acesa a memória sagrada daqueles que nos tocaram profundamente, mesmo que não possamos tocá-los de volta. Amar é, enfim, a certeza nua de que nenhum muro é absoluto, que nenhuma barreira é eterna, e que, na grande tapeçaria do universo, todo amor verdadeiro encontra, por fim, o seu caminho — seja através da coragem que move, da esperança que sustenta ou da própria eternidade que o consagra.
Porque, no fundo, Nikita não é apenas uma história geopolítica de Guerra Fria. Nikita é cada rosto amado que se fez saudade dilacerante, cada coração que fechou as suas portas, cada olhar que nos negou a entrada. E o que nos resta, o nosso único e mais poderoso ato de resistência, é amar — apesar do frio, apesar da distância, apesar de tudo. Amar, com a certeza inabalável de que, um dia, toda muralha se desfará, e o amor florescerá, pleno, sem fronteiras, sem muros, sem ausências.
DNonato - ainda do outro lado do muro
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A Questão do sentimento e o Respeito por si mesmo
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