Na segunda-feira da 27ª semana do tempo comum voltamos a parábola do Bom Samaritano é uma das mais revolucionárias da tradição Lucana que ja refletimos esse ano no 15⁰ domingo do tempo comum . Em sua aparente simplicidade, ela contém uma das maiores inversões éticas e teológicas do Evangelho. Não é apenas uma história moral, mas uma desconstrução do modo como o ser humano define quem merece amor. Ela inaugura uma espiritualidade de fronteira, onde o encontro substitui o dogma, e o rosto do outro se torna o verdadeiro altar. Vamos ao evangelho atualizado;
Um advogado famoso, gostava frequenta a Igreja , vestido com seu terno caro e sempre atento à opinião pública, gosta de grita que era contra o aborto, mas defendia a tortura e a pena de morte se aproximou de Jesus para testar seu saber e perguntou:
— Mestre, o que devo fazer para herdar a vida eterna?
Jesus respondeu com sua calma habitual:
— O que está escrito na Lei? Como você a interpreta?
O advogado respondeu, com firmeza:
— Amar a Deus de todo o coração, de toda a alma, de toda a força e de toda a mente; e amar o próximo como a si mesmo.
Jesus disse:
— Certo! Faça isso, e você viverá.
O advogado, querendo se justificar e talvez reduzir sua responsabilidade, perguntou:
— E quem é o meu próximo?
Então Jesus contou:
Um homem descia de Brasília para o sertão nordestino. Tinha perdido o emprego e voltava para casa com o pouco que restava de suas economias. No meio da estrada, foi assaltado, espancado e deixado caído à beira da pista, sob o sol quente, sem forças nem esperança.
Por aquela estrada passou um padre apressado, indo celebrar uma missa televisionada. Viu o homem caído, pensou em parar, mas disse a si mesmo: “Alguém vai ajudar, não posso me atrasar”. E seguiu viagem.
Logo depois passou uma pastor religiosa neopentecostal, dirigindo um carro importado com o logotipo da igreja estampado. Olhou o homem, citou versículo bíblico e completou que aquilo era obra de um demônio e no fim disse ao homem “Deus te abençoe, irmão, vou orar por você”, e acelerou seu carro importado.
Em seguida passou um homem conhecido como ateu e cachaceiro seguia a pé em busca de trabalho. Suas roupas estavam rasgadas e o rosto marcado pela poeira da estrada. Ao ver o homem ferido, parou, ajoelhou-se, deu-lhe água da garrafa que trazia, limpou suas feridas com o pano da própria camisa e o levou até um posto de saúde da cidade mais próxima. Ali, ficou com ele até que os enfermeiros o acolhessem. No dia seguinte, deixou o pouco dinheiro que tinha e disse: “Cuidem dele, e quando eu conseguir trabalho, volto para ver se precisa de mais alguma coisa.”
Então Jesus perguntou:
— Na sua opinião, quem foi o próximo daquele homem ferido na estrada?
E o especialista em leis respondeu:
— Aquele que teve compaixão dele.
E Jesus concluiu:
— Vá, e faça o mesmo.
O relato se inicia com um mestre da Lei, que se aproxima “para pôr Jesus à prova” (Lc 10,25). Sua indagação — “Mestre, que devo fazer para herdar a vida eterna?” — revela não uma busca autêntica, mas uma tentativa de autojustificação. Ele quer saber qual preceito, qual rito o credencia à salvação. Jesus, em vez de oferecer uma resposta direta, o conduz ao terreno da própria consciência: “Que está escrito na Lei? Como lês?” (Lc 10,26).
A pergunta é dupla: envolve o que se lê e como se lê — distinção hermenêutica decisiva. Saber citar a Escritura não é o mesmo que compreendê-la no espírito do Reino. O homem responde com precisão, unindo o Shema Israel (Dt 6,5) e o mandamento do Levítico (Lv 19,18): “Amarás o Senhor teu Deus de todo o coração… e o teu próximo como a ti mesmo.” Jesus confirma: “Faze isso e viverás.” Mas ele, querendo justificar-se, insiste: “E quem é o meu próximo?” (Lc 10,29).
A questão é nuclear. Na tradição judaica, re‘a — “próximo” — designava aquele pertencente à mesma comunidade de fé, ao mesmo pacto. Jesus rompe essa fronteira. A parábola não responde “quem é o próximo”, mas “quem se faz próximo”. Há aqui uma inversão de olhar: não se trata de definir quem merece ser amado, mas de discernir a quem decido me aproximar.
“Um homem descia de Jerusalém a Jericó” (Lc 10,30). Jerusalém está cerca de mil metros acima do nível do mar; Jericó, a duzentos e cinquenta abaixo — a descida é geográfica e simbólica. O trajeto da cidade santa ao vale do Jordão é também o percurso da santidade à vulnerabilidade. O homem, anônimo, representa toda a humanidade ferida. Sua ausência de nome é teológica: ele é o ser humano universal. A estrada sinuosa, cheia de cavernas e emboscadas, era conhecida por sua periculosidade — metáfora da travessia humana, onde a fé é testada na carne e no cotidiano.
O texto diz que “caiu nas mãos de salteadores, que o espancaram e o deixaram semimorto”. O termo grego hēmithanēs — “meio morto” — exprime uma existência suspensa: entre a vida e a morte, entre o olhar que socorre e o que desvia. Esse homem é o ícone dos feridos de todas as épocas: os pobres, os migrantes, os famintos, os negros assassinados, os povos indígenas silenciados, as mulheres violentadas, os LGBTQIAPN+ rejeitados, os jovens periféricos abatidos. Ele encarna a humanidade dilacerada pela violência e pela indiferença.
Passam o sacerdote e o levita. O evangelista utiliza o verbo antiparēlthen (“passar pelo outro lado”) para descrever o gesto de evasão. Ambos viram, mas escolheram não ver. Sua omissão não é cegueira, é anestesia espiritual. Representam a religião que teme mais a impureza do que a injustiça. Talvez temessem contaminar-se ritualmente com um possível cadáver, conforme Números 19,11; porém, o medo da impureza venceu o amor à vida. Isaías já advertia: “Que me importa a multidão de vossos sacrifícios?... Aprendei a fazer o bem, buscai a justiça, socorrei o oprimido” (Is 1,11–17). E Amós clamava: “Corra a justiça como um rio” (Am 5,24). O Deus bíblico jamais aceitou ritos sem coração. A religião que passa ao largo da dor trai sua vocação profética.
Então “chegou um samaritano” (Lc 10,33). Para o ouvinte judeu, essa frase soava como provocação. Os samaritanos eram tidos como heréticos (cf. Jo 4,9). No entanto, é esse estrangeiro quem “viu e se encheu de compaixão”. O verbo grego esplagchnisthē designa uma compaixão visceral, que nasce das entranhas — o mesmo usado para Jesus diante da viúva de Naim (Lc 7,13) e para o pai do filho pródigo (Lc 15,20). É a compaixão de Deus em ação.
Ele “aproximou-se”, tocou, derramou óleo e vinho sobre as feridas. O óleo, sinal de unção e consolo; o vinho, símbolo do sangue da Aliança. A estrada torna-se espaço sacramental: a compaixão se faz liturgia do corpo. O samaritano transforma a poeira em altar e seu gesto em eucaristia viva. Coloca o homem em seu próprio animal, leva-o à hospedaria e cuida dele. O texto grego acrescenta: epemelēthē autou, “cuidou com atenção contínua”. Não é um ato isolado, mas um compromisso duradouro. Ele ainda paga dois denários — o equivalente a dois dias de salário — e promete retornar. Há, nessa promessa, um eco escatológico: o retorno do samaritano antecipa o retorno de Cristo, que virá completar o cuidado iniciado.
Desde os Padres da Igreja, a parábola foi lida também sob chave simbólica. Santo Ambrósio escreveu: “O homem que descia é Adão; Jerusalém, o paraíso; Jericó, o mundo; os salteadores, as forças do mal; o sacerdote e o levita, a Lei e os profetas; o samaritano, Cristo; a hospedaria, a Igreja.” (Expositio Evangelii secundum Lucam, VII,84). O Evangelho revela, assim, a pedagogia divina: Deus se faz estrangeiro para nos curar. Cristo é o Samaritano de Deus, o forasteiro celeste que se aproxima da humanidade ferida.
No plano psicológico, a parábola desnuda nossos mecanismos de defesa. O sacerdote e o levita não são monstros — são versões de nós mesmos quando racionalizamos a omissão. Freud chamaria isso de racionalização: usar a lógica para disfarçar a covardia afetiva. A estrada de Jericó é o território da sombra, onde o medo da dor alheia revela nossa própria fragilidade. A verdadeira compaixão exige vulnerabilidade. Emmanuel Lévinas, filósofo judeu, dirá que “o rosto do outro me convoca e me obriga” — não por dever jurídico, mas pela epifania da presença. A ética começa no rosto ferido que nos interpela.
Sociologicamente, o texto é denúncia das estruturas que naturalizam a exclusão. O homem ferido é vítima da violência sistêmica; o samaritano, o marginalizado que subverte o sistema pela solidariedade. A parábola propõe uma reorganização social fundada na misericórdia. A Gaudium et Spes (n. 27) ensina: “Tudo quanto se opõe à vida… tudo quanto degrada a dignidade humana… são infâmias que maculam a civilização.” Jesus, ao fazer do cuidado o núcleo da fé, coloca a vida acima da lei e a compaixão acima da pureza.
A dimensão teológica da parábola é igualmente cristológica. O samaritano prefigura o próprio Cristo, que “não passou ao largo” da humanidade ferida pelo pecado, mas “se fez carne e habitou entre nós” (Jo 1,14). O gesto de “aproximar-se” é o verbo da encarnação. A Evangelii Gaudium (n. 179) recorda: “O verdadeiro amor é sempre contemplativo; sabe reconhecer o outro como dom de Deus.” Já a Fratelli Tutti (n. 68) evoca diretamente esta parábola como ícone da fraternidade universal: “Jesus propõe esta história para nos perguntar com quem nos identificamos… Ele nos convida a deixar de lado toda diferença e a fazer-nos próximos de qualquer pessoa.” O Evangelho é, portanto, um chamado constante a descer da teoria à estrada.
Mas a estrada contemporânea é dominada por novas idolatrias. A teologia da prosperidade converte a cruz em espetáculo, o Evangelho em produto e o púlpito em palco. A teologia do domínio troca o Reino de Deus por impérios religiosos que controlam consciências e manipulam votos. A fé individualista privatiza a graça e despreza a comunidade. E o clericalismo — tantas vezes denunciado pelo Papa Francisco — reencena o antigo farisaísmo, blindando ministros em bolhas de prestígio e poder simbólico. Os novos sacerdotes e levitas vestem ternos elegantes, falam de unção, mas temem o pó do caminho. Medem a fé por engajamento digital, confundem o Espírito com algoritmo. O sucesso tornou-se KPI espiritual, e a compaixão, perda de tempo. O Reino de Deus, porém, não se avalia em likes, mas em lágrimas enxugadas; não em números, mas em vidas restauradas.
A antropologia evangélica de Lucas revela que ser humano é ser capaz de compaixão. “Fazer-se próximo” é ato de liberdade: ninguém nasce solidário — torna-se. Viktor Frankl dizia que “o homem se realiza quando se esquece de si e se entrega a uma causa ou a alguém.” O samaritano é o antídoto contra o narcisismo espiritual. Ele não calcula, não delega, não consulta normas.
No horizonte escatológico, o desfecho é imperativo: “Vai e faze tu o mesmo” (Lc 10,37). O verbo poreuou indica movimento contínuo: a fé é travessia, não doutrina imóvel. O mesmo verbo aparece em Lucas 17,14 (“Ide e mostrai-vos aos sacerdotes”) e em Mateus 28,19 (“Ide e fazei discípulos”). A fé se reconhece em caminho, em cuidado, em presença. No juízo final, Jesus dirá: “Eu estava ferido e cuidaste de mim” (Mt 25,36). A vida eterna que o mestre da Lei buscava está exatamente nesse gesto.
A estrada de Jericó não terminou. Ela continua nas periferias, nos hospitais, nas escolas carentes, nos campos de refugiados, nos becos das favelas e nas calçadas onde dormem os descartados. Por ela passam muitos que ainda justificam sua pressa, sua indiferença, sua neutralidade. Mas também nela transitam samaritanos anônimos — enfermeiras, professores, mães solo, voluntários, artistas, catadores, agentes de pastoral — que fazem da ternura sua forma de resistência. São os sacramentos vivos da presença de Deus.
A eternidade começa quando paramos diante da dor e permitimos que ela nos converta. A fé que não se suja com o pó da estrada é infecunda. A liturgia que não toca a carne ferida é teatro. A caridade que calcula é impostura. Como recorda a Primeira Carta de João: “Se alguém disser: ‘Amo a Deus’, mas odeia seu irmão, é mentiroso” (1Jo 4,20). O critério do Reino é a misericórdia, não a ortodoxia. O samaritano será justificado; o sacerdote indiferente, desmascarado.
A pergunta, portanto, já não é “Quem é o meu próximo?”, mas “De quem eu me torno próximo?”
E, ainda mais profundamente: “Quem eu me torno diante dos caídos da estrada?”A resposta não está na teoria, mas na travessia. O Reino começa quando descemos do cavalo da indiferença e tocamos o corpo da dor. Ali, no pó e no sangue da estrada, Deus se revela.
DNonato – Teólogo do Cotidiano
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