segunda-feira, 6 de outubro de 2025

Um outro olhar em Lucas 1,26-38 — Memória da Bem-Aventurada Virgem Maria do Rosário

Uma ação de graças pelos 86 anos de Mamã Cilda

No 7 de outubro, a Igreja celebra a memória da Bem-Aventurada Virgem Maria do Rosário. Nesta mesma data, rendemos graças pelos esse ano, os 86 anos de Mamã Cilda, minha mãe. Nordestina, corajosa, mãe de dez filhos, avó e bisavó, eu sou o sétimo. Sua vida é travessia e anúncio silencioso, foi uma travessia  não só  de  distâncias físicas, mas desertos de desafios, solidão e incerteza. Essa travessia é revelação de que a fé não é mera teoria, mas vida vivida, decisão diária e coragem silenciosa, um testemunho de coragem, fé e esperança. Há quase sessenta anos, grávida e com dois filhos pequenos, deixou o Ceará para vir ao  encontro  do seu  esposo que viera  na  frente para  fazer o Rio de Janeiro.  Com  seus   primeiros  filhos   se estalaram   na Baixada Fluminense.

Mamã Cilda t não sabe somar letras nem decifrar livros, mas sabe ler a vida. Ela nos ensinou a rezar,  o remédio  certo  do mato, a t devoção a Nossa Senhora do Desterro e a respeitar Padre Cícero. Essa espiritualidade não depende de altares, livros ou liturgias sofisticadas; manifestava-se nos gestos: o cuidado, a espera, o trabalho, a paciência diante da dificuldade, a oração feita no silêncio do lar. Seu “Eis-me aqui” não estava em palavras, mas na vida que ensinava a confiar, servir e perseverar. Sua existência é o cântico mais bonito, tecido de atos, não de palavras. Assim como Maria se fez canal da presença de Deus, Mamã Cilda tornou-se espaço de encarnação do amor divino: na cozinha, no quintal, no trabalho e na rua, seu testemunho é anúncio contínuo.

O Evangelho de Lucas 1,26-38, proclamado na Anunciação do Senhor (25 de março), no IV Domingo do Advento, na Imaculada Conceição,  na Festa da Natividade  que  já refletimos  sobre o texto  e em diversas memórias marianas, incluindo  revela a pedagogia de Deus: o Infinito entra no finito, a Eternidade se encontra com o tempo humano, e a salvação se revela no inesperado, na periferia e no marginalizado. Cada geração que lê essa narrativa encontra-se na mesma tensão: compreender a ação de Deus no cotidiano e responder com fé ativa.

Lucas, evangelista da ternura e da compaixão, situa a Anunciação no “sexto mês” da gravidez de Isabel, mostrando que a história da salvação é sempre relacional. A fé não é ato individual; é tecido de relações, solidariedade e comunhão. O anjo Gabriel não se dirige ao templo de Jerusalém ou ao palácio imperial, mas à aldeia de Nazaré — pequena, marginalizada, desprezada. Natanael questionaria: “Pode vir algo bom de Nazaré?” (Jo 1,46). Deus escolhe o lugar do esquecimento para anunciar a esperança. Paulo dirá: “Deus escolheu o que é fraco para confundir os fortes” (1Cor 1,27). Nazaré simboliza as periferias do mundo, os territórios invisíveis aos poderosos, onde germina a nova história da humanidade.

A saudação do anjo — “Alegra-te, cheia de graça, o Senhor está contigo” — ecoa a promessa de Sofonias: “Exulta, filha de Sião, o Senhor está no meio de ti” (Sf 3,14-17). Maria é nova Sião, templo vivo de Deus. O termo grego kecharitomene indica estado permanente de graça, não momentâneo. A graça não a submete, mas a torna livre, capaz de escolher com consciência. Maria é livre porque confia. Sua pergunta — “Como acontecerá isso, se não conheço homem?” (Lc 1,34) — não é dúvida paralisante, mas desejo lúcido de compreender. Ela acolhe, coopera, dialoga. Seu “sim” — “Eis-me aqui, serva do Senhor” — ecoa o consentimento de Abraão (Gn 22,1), Samuel (1Sm 3,10) e Isaías (Is 6,8). O sim que transforma a história da humanidade, permitindo ao Verbo encarnar-se, é fruto da liberdade e da confiança.

Mas o sim de Maria não é ingênuo. Uma jovem prometida, grávida antes da consumação do casamento, arriscava rejeição social e até apedrejamento (Dt 22,23-24). Seu ato é coragem radical, fé que não anestesia, ousadia que desafia estruturas sociais. A teologia da prosperidade, que promete bênçãos fáceis e imunidade, é diametralmente oposta ao Evangelho: fé verdadeira não busca recompensas, mas confia e persevera mesmo diante da ameaça, da dor ou do fracasso aparente.

O anúncio do anjo tem também dimensão política. O filho de Maria herdará o trono de Davi, mas seu Reino não é de dominação. Roma proclamava César como “filho de deus” e “senhor”; Lucas subverte: o Filho de Deus nasce na periferia e seu trono é a cruz. Sua realeza é serviço, não poder; seu trono é o coração dos humildes. Essa inversão denuncia idolatrias políticas e religiosas, incluindo manipulações da extrema-direita, fundamentalismo, clericalismo e pregadores que confundem fé com mercado, transformando-a em mercadoria.

O Magnificat (Lc 1,46-55) amplia essa visão: “Derruba os poderosos de seus tronos e exalta os humildes; enche de bens os famintos e despede os ricos de mãos vazias.” Celebrar Maria é celebrar a inversão do mundo: sua coroa é humildade; seu trono, amor e serviço. São Romero de América lembrava: “Ninguém pode celebrar a Eucaristia se não se compromete com os pobres.” A fé de Maria e de Mamã Cilda se manifesta no cuidado concreto, na resistência diária, na esperança que nasce onde ninguém espera.

Antropologicamente, a Anunciação é subversão: numa sociedade patriarcal, uma jovem marginal se torna protagonista da história da salvação. Santo Irineu a chama de “nova Eva”; Santo Agostinho afirma que ela concebeu primeiro no coração, pela fé; Santo Atanásio recorda que o Filho de Deus se fez homem para que nós nos tornássemos deuses; Santo Efrém canta: “O ventre de Maria expandiu os céus”; São Bernardo de Claraval escreve que “o mundo inteiro esperava sua resposta.” A encarnação é revolução social, simbólica e espiritual: o feminino assume o centro da história, e a vida cotidiana se torna locus da presença divina.

A Igreja confirma esta compreensão. O Concílio Vaticano II, em Lumen Gentium (n. 63), apresenta Maria como modelo da Igreja: nela se cumpre o que cada cristão é chamado a viver. A Gaudium et Spes (n. 67) afirma que a dignidade humana se realiza na corresponsabilidade; a Evangelii Gaudium (n. 288) convoca a aprender com Maria a docilidade ao Espírito; e a Fratelli Tutti (n. 278) a contempla como mãe universal, tecendo pacientemente uma humanidade nova.

Mamã Cilda, como Maria, viveu e vive a fé encarnada. A devoção a Nossa Senhora do Desterro e o respeito a Padre Cícero estruturaram sua espiritualidade popular, transmitida em gestos e vida cotidiana, não em livros. Sua coragem, ao atravessar o Brasil grávida, criar filhos e sustentar a família, é anúncio vivo de esperança radical. A fé verdadeira não reside nos altares dourados, mas nas mãos que trabalham, nos olhos que choram, nas pessoas que sustentam vidas invisíveis.

Psicologicamente, Maria integra medo e confiança; sua coragem é lúcida. Jung veria nela o arquétipo da integração; Erik Erikson chamaria de confiança fundamental; Viktor Frankl diria que encontrou sentido diante do mistério; Emmanuel Lévinas perceberia a epifania do rosto do Outro convocando à responsabilidade. Hannah Arendt lembraria que cada nascimento é esperança de um mundo novo. No ventre de Maria nasce a possibilidade radical de uma humanidade transformada, vulnerável e livre.

A vida de Mamã Cilda ecoa esta pedagogia do Evangelho. Ela nos ensina que a graça se manifesta nos pequenos atos: a cozinha, a lavanderia, a espera, a oração, o cuidado com filhos e netos. Cada gesto cotidiano é anúncio. A fé que ela vive não se confunde com ostentação, nem se submete a autoridades ouclesiásticas distantes. É fé que cria mundos, que transforma corações, que gera esperança.

O texto de Lucas, revisitado, revela símbolos profundos: Nazaré, periferia e marginalidade; a gravidez inesperada, símbolo do risco da fé; o anjo, mensageiro que transforma medo em confiança; a palavra “cheia de graça”, sinal da presença permanente de Deus; e o consentimento de Maria, que modela a resposta humana à iniciativa divina. Esses elementos nos convidam a refletir sobre a ação de Deus na história e a responsabilidade de cada ser humano: a graça não nos impede de agir, mas nos chama à liberdade e à coragem.

A liturgia, ao proclamar esta passagem repetidamente, nos convida a reconhecer o padrão: Deus escolhe o humilde, a periferia, a jovem, o invisível. Ele transforma a fragilidade em força, o medo em coragem, a obediência em liberdade. O Evangelho de Lucas, assim, é sempre atual: denuncia estruturas de poder, idolatrias políticas e religiosas, clericalismo, teologias da prosperidade e da fé como mercadoria, e mostra que o Reino de Deus é serviço, compaixão, solidariedade e amor.

Assim como Maria, Mamã Cilda disse “sim” todos os dias: ao marido ausente, aos filhos, à vida difícil e à esperança insistente. Sua travessia física do Ceará à Baixada Fluminense é metáfora da travessia espiritual de quem confia, serve e persiste. Sua vida é rosário tecido de atos, cada dia um mistério de amor, coragem e fé.

No 7 de outubro, celebrando a Virgem do Rosário e os 86 anos de Mamã Cilda, rendemos graças. Em cada filho e neto, seu “Eis-me aqui” continua vivo, ecoando no cotidiano, na oração, no cuidado e na perseverança silenciosa. A história dela nos lembra que Deus continua a nascer no humano, que a graça se manifesta nos simples, e que a esperança se renova a cada geração.

“Eis-me aqui, Senhor, faça-se em mim segundo a tua Palavra.”



✍️ DNonato – Teólogo do Cotidiano


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