quinta-feira, 16 de outubro de 2025

Um breve olhar sobre Lucas 12,1-7

Há palavras de Jesus que soam como um sussurro ao coração e outras que ecoam como um trovão na consciência. O Evangelho de Lucas, ao narrar o alerta contra o “fermento dos fariseus”, situa-nos diante de uma dessas vozes firmes e luminosas que atravessam os séculos. É uma denúncia que não envelhece, porque toca o que há de mais atual: a tentação da aparência, da duplicidade e do medo. O contexto histórico de Jesus — entre tensões religiosas e opressões políticas — não está distante de nossas realidades, onde a fé muitas vezes se torna palco e a verdade é trocada por conveniência.

Falar do “fermento da hipocrisia” é falar de todos os mecanismos que corrompem o coração humano, mesmo quando mascarados por piedade, ortodoxia ou zelo. É reconhecer que o perigo não está apenas “lá fora”, mas dentro, no modo como moldamos a fé às expectativas sociais e tememos mais o julgamento dos homens do que o olhar de Deus.
Esta reflexão percorre o texto de Lucas 12,1-7 da sexta-feira da 28ª semana do Tempo Comum não como simples comentário, mas como caminho espiritual: uma travessia entre o medo e a confiança, entre a aparência e a autenticidade, entre o poder humano e o cuidado divino. A partir da voz de Jesus, escutamos o chamado à liberdade interior e à coragem da transparência, à vida verdadeira que nasce da relação com Deus e floresce em meio às sombras do mundo.
A multidão se apertava ao redor de Jesus; o ar estava carregado de vozes, corpos e expectativas. Em meio a essa massa, Ele ergue a voz com firmeza serena: “Cuidado com o fermento dos fariseus, que é a hipocrisia”. Não era o fermento da massa de pão que Ele alertava, mas o veneno que cresce silencioso dentro do coração humano, a duplicidade que transforma a prática religiosa em espetáculo e a ética em aparência. O fermento, símbolo antigo do crescimento interior, agora é metáfora da corrupção que pode infectar não apenas a observância, mas a alma inteira. Desde os profetas, como Isaías e Amós, até os salmos, Deus alerta para a hipocrisia: o culto vazio não salva, a fé de fachada é estéril; e é exatamente isso que Jesus denuncia diante da multidão.
O contexto do Evangelho de Lucas nos ajuda a compreender o peso da palavra de Jesus. Ele falava em um tempo de tensões políticas e sociais, sob o Império Romano, em que o medo humano não era apenas emoção: era estrutura de poder. Fariseus, mestres da Lei, zelosos da tradição, exercendo influência pedagógica e moral sobre o povo, corrompiam, muitas vezes, o próprio ideal que deveriam encarnar. Nesse cenário, o discípulo precisava discernir, resistir e viver a fé sem se submeter ao temor humano. Lucas registra que Jesus primeiro dirige a advertência aos discípulos — seu círculo íntimo — ainda que a multidão ouça, pois a formação da comunidade exige clareza e coerência interior.

“Não há nada oculto que não venha a ser revelado, nada escondido que não venha a ser conhecido.” Palavras duras, mas libertadoras. A luz escatológica de Deus vai revelar tudo, e o que escondemos em segredos será trazido à plena claridade. A transparência ética exigida não é para humilhar, mas para alinhar o coração humano à justiça divina. A psicologia moderna reconhece essa luta interna: o conflito entre “eu público” e “eu privado”, entre a aparência e a realidade, é fonte de ansiedade e medo. Jesus convida à coragem da autenticidade, ao rompimento com a duplicidade, à libertação do medo do olhar alheio.

O medo humano, porém, não é o centro da atenção de Jesus. “Meus amigos, não temais os que matam o corpo e depois nada mais podem fazer. Mas temei aquele que, tendo o poder de tirar a vida, pode também lançar no inferno.” Aqui, o Evangelho desloca a escala do temor: do imediato para o eterno, do humano para o divino. A ameaça real não é a morte física, mas a perda da vida em sua totalidade, aquela vida que consiste em relação com Deus. A filosofia existencial cristã nos lembra que a liberdade plena está vinculada à fidelidade a Deus, não ao consenso social, e que o bem-estar externo é insuficiente para a vida verdadeira. Jesus reforça sua palavra com a parábola dos pardais: “Não se vendem cinco pardais por dois asse? E nenhum deles cai em terra sem o Pai; nem mesmo os cabelos de vossa cabeça estão todos contados. Vós valeis mais do que muitos pardais.” O pardal, criatura aparentemente insignificante, é símbolo da providência divina: se Deus cuida das mínimas criaturas, quanto mais de seus filhos. O cabelo, detalhe íntimo e pessoal, indica o conhecimento preciso que Deus tem de cada um. A antropologia da criação, os Salmos 139 e 147, e os textos sapienciales, como Sabedoria 11,24, reforçam essa imagem de cuidado minucioso. É um chamado à confiança radical: mesmo em meio à perseguição, à pobreza, ao desprezo, a vida confiada a Deus permanece segura.

Essa lógica encontra eco nos Evangelhos sinóticos. Em Mateus 10,29‑31, a mesma parábola é retomada, reforçando que o valor humano é incomensurável diante de Deus; em Marcos 4,28, o cuidado de Deus sobre a criação é indicado como modelo de confiança. O tema da providência transcende a materialidade: não se trata de segurança econômica ou conforto, mas de uma proteção ética, psicológica e espiritual que nos permite agir com coragem e autenticidade.

A crítica profética surge com clareza diante das distorções contemporâneas. A teologia da prosperidade promete bênçãos materiais como prêmio de fé; o evangelho de Lucas 12,1‑7 desarma essa ilusão: Jesus prepara os discípulos para enfrentar medo, perseguição e até morte física, sem promessas de conforto externo. A fé mercadoria — investida para retorno material — é refutada pela certeza de que o valor humano está no amor e na fidelidade a Deus, não em indicadores visíveis de sucesso. O individualismo religioso, que isola a fé em uma relação exclusiva e privada, também é questionado: o “meus amigos” de Jesus indica comunidade, partilha, responsabilidade e testemunho público.

O clericalismo, que impõe medo e silêncio, é igualmente desafiado. Jesus ensina que a autoridade nunca deve dominar pelo temor, mas pela verdade, transparência e serviço. Os documentos da Igreja, de Lumen Gentium a Evangelii Gaudium e Gaudete et Exsultate, ecoam essa crítica: hipocrisia, vaidade espiritual e abuso de poder corroem a Igreja. Santo Agostinho, nas Confissões, lembra que nada escapa a Deus, e que a autenticidade é caminho de libertação. Padres gregos, como São Gregório de Níssa, chamam a revelação do íntimo de cada pessoa de apokalypseō, um movimento de luz que traz coerência e verdade à existência.

A leitura antropológica, sociológica e psicológica se cruza com a teologia. Vivemos em sociedades de alta vigilância, redes que medem reputação, moral e imagem; muitos sucumbem à performance religiosa. Jesus anuncia a liberdade interior: não temer o homem, mas confiar no Pai que conta cada cabelo. Psicologicamente, isso reduz a ansiedade do oculto, sociologicamente desafia estruturas de poder e filosófica e espiritualmente desloca a confiança do humano para o divino. A esperança cristã, tão central à reflexão, é vivida em relação com Deus. Quem não conhece Deus pode ter desejos e expectativas, mas permanece sem a grande esperança que sustenta a vida. Jesus anuncia que a verdadeira vida — a vida eterna — é conhecer o único Deus verdadeiro e a Jesus Cristo, enviado do Pai (Jo 17,3). Essa vida não se alcança isoladamente; ela se realiza em relação e em comunhão, na fidelidade que suporta desilusões e ameaça de morte, na confiança radical no cuidado de Deus, que ama até a plena consumação (Jo 13,1; 19,30).

Que nossa existência seja transparente, sem hipocrisia. Que não vivamos à sombra do medo humano, mas à luz do temor santo, conscientes de que somos conhecidos, amados e valorizados por Deus. Como os pardais que voam sob os olhos do Criador e como cada fio de cabelo contado, valemos infinitamente diante d’Ele. Viver assim é abraçar a plenitude da vida, que consiste em relação, amor, confiança e coragem — a verdadeira esperança que sustenta a existência até o fim.

A vida autêntica, portanto, não é mera sobrevivência ou acúmulo de experiências; é relação contínua com Aquele que é a fonte da vida, que se revela no detalhe íntimo, no cuidado com o fraco, no amor que permanece mesmo na invisibilidade. Cada gesto cotidiano, cada palavra, cada silêncio, torna-se sacramento quando se vive à luz dessa relação.

A vigilância ética exigida pelo Evangelho é, ao mesmo tempo, convite à ousadia. Não é medo do mundo, mas liberdade em Deus. A coragem de viver a fé diante da injustiça, do poder opressor ou da superficialidade religiosa é central: o discípulo não se acomoda, não disfarça, não negocia valores. Em um mundo marcado pela exibição de fé e pelo sucesso mediático, o Evangelho lembra que a autenticidade é revolucionária.

O cuidado divino sobre cada vida, simbolizado nos pardais e nos cabelos contados, revela uma pedagogia de amor que supera os cálculos humanos de mérito e poder. Em qualquer circunstância, mesmo diante da morte ou do silêncio social, a vida confiada a Deus permanece em segurança. A psicologia da confiança e da resiliência encontra aqui um eco profundo: a certeza do valor humano diante do Criador sustenta a integridade interior.

No horizonte da esperança, Deus é aquele que ama “até ao fim” (Jo 13,1) e garante a consumação da vida em plenitude (Jo 19,30). Essa esperança não depende da condição material, da aprovação social ou do sucesso visível; ela floresce na fidelidade, na transparência, na coragem de viver como discípulo. O temor divino, entendido como respeito reverente e consciência da responsabilidade, desloca o medo humano, que paralisa e escraviza.

A comunidade cristã é chamada a ser espaço de clareza, onde a verdade vem à luz sem manipulação ou medo, onde o serviço e a misericórdia superam a vaidade e a performance religiosa. A Igreja, guiada pelos documentos conciliares e pela tradição patrística, é chamada a ser reflexo do cuidado divino, modelo de transparência e liberdade interior. A fé não é mercadoria, o poder não é instrumento de opressão, e a vida não é medição de sucesso, mas relação de amor e confiança.

Assim, diante do fermento da hipocrisia, do medo humano e das estruturas de poder, somos convocados à coragem, à autenticidade e à esperança. Cada gesto cotidiano, cada cuidado com o outro, cada palavra de verdade torna-se semente de vida eterna. Como os pardais que voam sob o olhar atento do Pai e como cada fio de cabelo contado, valemos infinitamente diante d’Ele. Viver em relação com Deus é viver a plenitude da vida, a vida que resiste, ama e espera, mesmo diante das tempestades, das desilusões e das injustiças.

Que nossas vidas sejam translúcidas, nossas comunidades espaços de liberdade, e nossa fé uma resposta constante ao amor que nos criou e sustenta. Assim, a grande esperança se realiza: não na prosperidade, não na aparência, mas na relação viva, confiável e transformadora com Deus, que nos conhece, nos ama e nos chama à vida em plenitude.



DNonato – Teólogo do Cotidiano


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