sábado, 4 de outubro de 2025

Um olha sofre Lucas 17, 5-10 - 27⁰ domingo do tempo comum

No 27º Domingo do Tempo Comum, somos convidados a meditar nas leituras: Habacuque 1,2-3; 2,2-4; Salmo 94(95),1-2.6-7.8-9 (R.8); 2 Timóteo 1,6-8.13-14 e Lucas 17,5-10. Elas dialogam entre si e iluminam de modo especial a condição da fé no coração humano. A primeira leitura, do profeta Habacuque, revela a angústia do justo diante da violência e da aparente inação de Deus. O salmo nos chama à escuta humilde da voz do Senhor e ao não endurecimento do coração. Na segunda leitura, Paulo encoraja Timóteo a reavivar o dom recebido, a não se envergonhar do testemunho e a guardar o depósito da fé com a força do Espírito Santo. Por fim, o Evangelho apresenta os discípulos pedindo a Jesus: “Aumenta a nossa fé!”, e o Mestre respondendo com a imagem do grão de mostarda e da amoreira que poderia ser arrancada e plantada no mar. Em seguida, narra a parábola do servo que, mesmo cumprindo seu dever, deve reconhecer-se como “servo inútil”. Esse conjunto constitui uma verdadeira escola de espiritualidade e discernimento, na qual fé e serviço se unem no horizonte de uma existência marcada pela confiança absoluta em Deus e pela humildade diante do chamado ao discipulado.

O pedido dos discípulos — “Aumenta a nossa fé!” — ecoa o clamor de Habacuque: “Até quando, Senhor, clamarei sem que me ouças?” (Hab 1,2). Ambos expressam a consciência da fragilidade humana diante das exigências da vida e do Reino. A fé, no contexto bíblico, não é apenas assentimento intelectual, mas adesão existencial, confiança radical, como a que Abraão manifestou ao deixar sua terra confiando na promessa de Deus (Gn 12,1-4). Jesus, ao afirmar que basta a fé do tamanho de um grão de mostarda para mover uma amoreira, relativiza a preocupação com a quantidade e aponta para a qualidade da fé. O grão de mostarda, a menor das sementes conhecidas na Palestina, simboliza a potência escondida, a força que não está no tamanho, mas na autenticidade. A amoreira, árvore de raízes profundas, representa o que é aparentemente inamovível. A imagem paradoxal de plantar uma árvore no mar, espaço instável e hostil, ilustra o poder transformador da fé: ela torna possível o impossível, não como espetáculo, mas como confiança que se deixa conduzir pelo poder de Deus. Assim como em Mateus 17,20, onde se fala da fé que transporta montanhas, Lucas insiste: não é a grandiosidade humana, mas a entrega confiante ao Senhor que gera transformação. O mesmo eco ressoa em Marcos 9,23, quando Jesus diz: “Tudo é possível ao que crê”, e o pai da criança possuída acrescenta: “Eu creio, ajuda a minha falta de fé!”, revelando a tensão entre desejo e limite, fé e incredulidade que habita o coração humano.

A hermenêutica desta passagem nos mostra que a fé é dom antes de ser conquista, mas também é exercício que precisa ser cultivado. Paulo lembra a Timóteo que é preciso “reavivar o dom de Deus” (2Tm 1,6), indicando que a fé não é estática, mas vital e dinâmica, fortalecida no cotidiano. A tradição patrística também enfatiza isso. Santo Agostinho, comentando os salmos, afirma: “A fé cresce quando é posta em prática” (Enarrationes in Psalmos, 130,8). Orígenes lembra que a fé, sendo dom, precisa ser continuamente nutrida pela escuta da Palavra e pelo exercício da caridade, sob risco de enfraquecer. A exegese moderna confirma que o pedido dos discípulos surge após Jesus falar sobre a necessidade do perdão ilimitado (Lc 17,3-4), mostrando que a fé pedida não é teórica, mas a capacidade concreta de perdoar sem medida, de romper com a lógica da vingança. A fé que arranca amoreiras é a mesma que desarma corações endurecidos, que rompe estruturas de ódio, que se opõe à violência presente na sociedade.

No Evangelho, podemos destacar dois núcleos:

1. O pedido dos discípulos e a resposta de Jesus (vv.5-6):
Os discípulos reconhecem sua fragilidade e pedem crescimento na confiança em Deus. Jesus responde com a imagem do grão de mostarda: mesmo uma fé pequena, se autêntica, possui poder transformador. A comparação com a amoreira plantada no mar é paradoxal, ilustrando que a fé não depende de tamanho, mas da confiança que se entrega a Deus. O foco não está na grandiosidade humana, mas na qualidade da fé, manifestada na confiança e na obediência ao Senhor.

2. A parábola do servo inútil (vv.7-10):
Jesus apresenta o serviço sem busca de reconhecimento. O servo, mesmo cumprindo seu dever, não espera louvor ou recompensa; apenas cumpre o que lhe é exigido. A expressão “servo inútil” não diminui a ação, mas coloca em perspectiva que tudo o que fazemos é graça de Deus, e não mérito próprio. Essa lição revela que a fé se expressa na humildade e na obediência diária, sem buscar recompensas, status ou reconhecimento.

Historicamente, o servo representava o trabalhador dependente, cuja função era servir sem exigir reconhecimento. Jesus não legitima exploração, mas usa uma imagem conhecida para ensinar a humildade radical. São João Crisóstomo explica: “Não é que sejamos inúteis por nada fazermos, mas porque, ainda que façamos tudo, não acrescentamos nada a Deus, mas apenas a nós mesmos” (Homilias sobre Mateus, 77,3). Reconhecer que tudo vem da graça liberta o discípulo da tentação do clericalismo, que transforma serviço em poder, e do farisaísmo, que transforma obediência em prestígio. O Papa Francisco, em Evangelii Gaudium (n.93), alerta: “O clericalismo leva a uma concepção elitista e excluente, que interpreta o ministério recebido como poder a ser exercido, e não como serviço gratuito e humilde.”

Psicologicamente, essa humildade rompe com a lógica do narcisismo contemporâneo, onde tudo é medido por reconhecimento e recompensa. Servir sem esperar nada desafia a mentalidade do “eu faço, logo mereço”, presente tanto na cultura capitalista quanto nas teologias da prosperidade, que reduzem a fé a moeda de troca. A fé cristã não é contrato comercial, mas entrega confiada. A teologia do domínio, que associa fé ao poder político, também é desmascarada: o discípulo não é senhor, mas servo, e o serviço não é meio de ascensão social, mas de comunhão com o Senhor que se fez servo de todos (cf. Fl 2,7). A fé individualista, fechada em experiências subjetivas, perde espaço diante de um texto que une fé e serviço: acreditar em Deus significa viver em relação com os outros, perdoar, servir e construir o Reino no cotidiano. Como recorda Gaudium et Spes (n.66): “O homem, única criatura terrestre que Deus quis por si mesma, não pode encontrar-se plenamente senão pelo dom sincero de si mesmo.” Servir na humildade é, portanto, a via da realização humana autêntica.

Historicamente e antropologicamente, a fé está ligada à confiança e fidelidade. O termo hebraico emunah (fé) vem da mesma raiz de “firmeza” e “estabilidade”. Em Habacuque 2,4 lemos: “O justo viverá por sua fidelidade”, frase central na tradição judaica e cristã, retomada por Paulo em Romanos 1,17 e Gálatas 3,11. Aqui, mais uma vez, não é a quantidade que importa, mas a qualidade da confiança que sustenta o justo em meio às tribulações. O servo inútil é aquele que vive dessa confiança e não busca garantias externas. Filosoficamente, Kierkegaard lembra que a fé é salto no absurdo, entrega total sem apoio em cálculos racionais; Nietzsche denunciaria a fé cristã como submissão, mas Lucas nos mostra que não é submissão: é liberdade, pois não precisamos nos afirmar pelo poder, porque encontramos sentido em servir.

Na prática pastoral, esta mensagem nos leva a um exame de consciência profundo: qual é a nossa amoreira que precisa ser arrancada pela fé? Que estruturas de ódio, preconceito ou indiferença precisam ser deslocadas? Quantas vezes nosso serviço ainda busca reconhecimento em vez da gratuidade? Quantas vezes reduzimos a fé a números, eventos ou estatísticas, esquecendo que basta o grão de mostarda de confiança verdadeira? O Papa Francisco, em Fratelli Tutti (n.115), lembra: “O serviço sempre olha para o rosto do irmão, toca a sua carne, sente sua proximidade e até, em alguns casos, ‘padece’ com ele e busca a promoção do irmão.” A fé que arranca amoreiras é a mesma que nos move ao serviço compassivo.

Ao unir a súplica da fé com a parábola do servo, Lucas nos oferece uma síntese poderosa: crer é servir, e servir é crer. A fé não se mede por sinais espetaculares, mas pela capacidade de viver o Evangelho no cotidiano, no perdão, na caridade, na humildade. A fé que pedimos a Deus é a mesma que nos torna servos inúteis, livres da lógica do mérito e abertos à graça. Ela não busca recompensa, mas se alegra em cumprir a vontade do Senhor. Em tempos em que a fé se transforma em mercadoria, espetáculo digital ou instrumento de poder, esta mensagem é profundamente profética. O grão de mostarda continua sendo a pequena semente que, confiada a Deus, pode transformar o mundo; a amoreira, as estruturas aparentemente inamovíveis que podem ser arrancadas pela fé; e o servo inútil, o modelo de Igreja chamada não a dominar, mas a servir, não a enriquecer, mas a partilhar, não a brilhar, mas a iluminar pelo testemunho humilde.
No final, permanecem duas perguntas essenciais:
  • Qual é a nossa amoreira que precisa ser arrancada pela fé?
  • Nosso serviço é busca de reconhecimento ou gratuidade?
A liturgia nos coloca diante da súplica de Habacuque, do convite do salmo, da exortação paulina e da palavra de Jesus, para que possamos reconhecer que tudo vem de Deus, que a fé é dom a ser pedido e cultivado, e que servir é graça e alegria. O discípulo que ora como Habacuque, canta como o salmista, reaviva o dom como Timóteo e serve como servo inútil é o verdadeiro homem e mulher de fé, humildade e serviço.



DNonato - Teólogo do Cotidiano 

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