terça-feira, 14 de outubro de 2025

Um breve olhar sobre Lucas 11, 37-41

O fariseu ajeita o assento, observa cada gesto, mede o olhar do hóspede. O perfume do pão recém-assado se mistura ao silêncio constrangido. Jesus chega, senta-se, e não lava as mãos. O escândalo está servido antes da refeição começar. Não se trata de descuido, mas de provocação. O gesto é símbolo e denúncia: Deus está cansado de mãos limpas que não tocam feridas, de ritos impecáveis que ignoram a dor humana. O Evangelho proclamado nesta terça-feira da 28ª semana do Tempo Comum (Lucas 11,37–41) é daqueles que expõem o nervo da religião, rasgando o verniz da aparência para revelar o que pulsa no coração.
Jesus, convidado a uma refeição na casa de um fariseu, surpreende o anfitrião ao sentar-se à mesa sem realizar as abluções rituais prescritas pela tradição dos anciãos. O espanto do fariseu é o espelho do escândalo religioso: Jesus rompe com o formalismo que confunde pureza com aparência. A liturgia da Igreja proclama esse texto também nas memórias de santos e santas que, como Ele, denunciaram a hipocrisia das práticas religiosas desumanas, revelando que Deus não se deixa aprisionar por rituais vazios, mas habita o interior que ama, partilha e serve.
O contexto de Lucas é teologicamente denso. O evangelista, que escreve a comunidades marcadas por tensões entre judeus e cristãos de origem pagã, apresenta Jesus como aquele que revela o coração de Deus e desmascara o coração endurecido da religião institucionalizada. A refeição — lugar de comunhão e fraternidade — transforma-se em espaço de confronto. O gesto de Jesus, aparentemente banal, torna-se sinal profético. Ao não lavar as mãos, Ele mostra que a impureza não vem de fora, mas do interior, da corrupção do coração (cf. Mc 7,15). O fariseu, defensor da pureza ritual, revela sua própria impureza interior: julga, condena, escandaliza-se, enquanto ignora a fome e a miséria ao redor.
“Vós, fariseus, limpais o copo e o prato por fora, mas o vosso interior está cheio de roubo e maldade” (Lc 11,39). É com essa sentença que Jesus rompe o silêncio cortante do jantar. O que Ele diz não é apenas uma crítica moral; é uma denúncia teológica. Deus não habita nas mãos limpas, mas no coração livre. A purificação ritual, separada da ética e da compaixão, é idolatria. Essa mesma denúncia ecoa em Mateus 23,25–26: “Ai de vós, escribas e fariseus hipócritas! Vós limpais o exterior do copo e do prato, mas o interior está cheio de ganância e intemperança.” E Marcos 7,1–23 reforça o mesmo ensinamento, quando Jesus cita Isaías: “Este povo me honra com os lábios, mas seu coração está longe de mim” (Is 29,13).
Esses paralelos sinóticos revelam uma coerência profética que remonta à raiz hebraica da fé. Os profetas sempre denunciaram o culto desvinculado da justiça. Amós gritou: “Eu odeio, desprezo as vossas festas; não suporto as vossas assembleias solenes. Corra o direito como as águas, e a justiça como um rio perene” (Am 5,21.24). Isaías clamou: “Lavai-vos, purificai-vos, cessai de fazer o mal, aprendei a fazer o bem; buscai o direito, socorrei o oprimido” (Is 1,16–17). Miquéias resumiu o essencial: “Praticar a justiça, amar a misericórdia e caminhar humildemente com teu Deus” (Mq 6,8). O mesmo Deus que libertou Israel do Egito não exigiu mãos lavadas, mas pés em caminho. A pureza do Êxodo é o movimento, não o ritual; é o sair do Egito da indiferença para o deserto da confiança. Jesus, herdeiro dessa tradição profética, retoma o fio rompido entre fé e vida.
O símbolo do copo e do prato é uma metáfora antropológica. O copo é o interior humano, a consciência, o coração — lugar das motivações, desejos e afetos. Limpar apenas o exterior é mascarar o ego, é criar uma persona religiosa que busca aprovação social e status espiritual. A psicologia profunda, especialmente em Jung, chamaria isso de “sombra não integrada”: a parte de nós que negamos e projetamos nos outros. Os fariseus de ontem e de hoje são aqueles que projetam sua própria impureza nos outros, construindo uma moral de fachada para esconder sua vaidade espiritual.
Na dimensão sociológica, o texto revela uma crítica à religião como instrumento de poder. O legalismo religioso funciona como mecanismo de controle: define quem é puro e quem é impuro, quem pertence e quem é excluído. Jesus desestabiliza essa lógica, porque Sua mesa é inclusiva — Ele come com publicanos e pecadores, acolhe mulheres e estrangeiros, toca os impuros. Sua transgressão ritual é libertação social. Por isso, a denúncia de Jesus é perigosa: desmascara o sistema religioso que legitima desigualdades sob o manto da pureza.
Teologicamente, o gesto de Jesus revela o verdadeiro culto: a misericórdia. Ele conclui: “Dai antes esmola do que possuís, e tudo ficará puro para vós” (Lc 11,41). A esmola, aqui, não é apenas caridade ocasional; é símbolo de partilha existencial. É a tradução da conversão interior em prática concreta. Santo Agostinho comentava que “dar esmola é purificar o coração, porque quem partilha o que tem liberta-se do que o possui.” São João Crisóstomo, em sua homilia sobre os pobres, dizia: “Não lavar as mãos não torna impuro, mas negar o pão a quem tem fome é o maior dos pecados.”
Quem dá, purifica. Quem reparte, reza com as mãos. Quem toca as feridas do mundo, comunga com o próprio Cristo. Porque o altar verdadeiro não é o de mármore — é o coração que sangra e ama. Dar esmola é mais do que um ato: é uma mística. É o gesto que devolve ao humano a dignidade divina. É tornar-se ponte entre a abundância e a carência, entre o pão e a esperança.
Essa lógica é frontalmente oposta à teologia da prosperidade que invade nossos templos e telas. Enquanto Jesus fala de desprendimento, os pregadores do lucro falam de acúmulo. Enquanto o Evangelho convida à partilha, eles transformam a fé em investimento e Deus em acionista. Essa deformação não é cristianismo, é idolatria financeira travestida de piedade. Como denunciou o Papa Francisco na Evangelii Gaudium, “a adoração do antigo bezerro de ouro encontrou uma nova e cruel versão na idolatria do dinheiro e na ditadura de uma economia sem rosto e sem um objetivo verdadeiramente humano.”
A teologia do domínio, que prega poder e conquista, é outro rosto do mesmo farisaísmo moderno. Ela sacraliza o autoritarismo e chama de bênção o que é opressão. Jesus, ao contrário, revela que o Reino de Deus não se impõe, se propõe; não domina, serve; não conquista, acolhe. “Entre vós não será assim: quem quiser ser o maior, seja o servo de todos” (Mc 10,43–44). O clericalismo, denunciado tantas vezes pelo Papa Francisco, é filho dessa mesma lógica: reduz o ministério a privilégio e o altar a trono. Esquece que o Cristo que preside é o que lava os pés, não o que exige reverência. Hoje, quando templos disputam fiéis como empresas disputam clientes e padres e pastores competem por visibilidade digital, o gesto de Jesus sentado à mesa sem lavar as mãos soa como provocação divina: menos palco, mais pão.
A filosofia moral ajuda-nos a entender a profundidade do gesto de Jesus. Ele não rejeita os ritos em si, mas a absolutização deles. O rito é linguagem simbólica do invisível, mas quando o símbolo se torna fim em si mesmo, degenera em fetiche. Kierkegaard dizia que a fé sem interioridade é estética, não ética; é performance, não compromisso. O problema não é o rito, mas a inversão de valores que o transforma em máscara para o vazio espiritual.
Jesus  vem reordenar o sagrado. Ele desloca o eixo da pureza do corpo para o coração, do templo para a casa, da lei para o amor. Essa mudança é civilizacional. A religião, que até então demarcava fronteiras, passa a ser caminho de comunhão. A fé torna-se experiência existencial, não sistema normativo. A purificação, antes ritual, torna-se ética: viver de modo puro é viver com compaixão.
É aqui que o paralelo com o gesto de Pilatos se torna ainda mais revelador. Quando Pilatos, diante do clamor do povo, lava as mãos (Mt 27,24), ele simboliza a covardia política e espiritual de quem se exime da responsabilidade pelo sofrimento do inocente. As mãos lavadas de Pilatos contrastam com as mãos não lavadas de Jesus. Um lava as mãos para fugir da justiça; o outro não as lava para revelar a injustiça. Um busca se manter puro aos olhos do poder; o outro se contamina pelo amor aos esquecidos. Pilatos lava para preservar o império; Jesus deixa de lavar para inaugurar o Reino. As mãos lavadas de Pilatos são símbolo da omissão que mata; as mãos não lavadas de Jesus são sinal da compaixão que salva. Entre os dois gestos se decide o destino da humanidade: a religião do medo ou a fé do amor.
No horizonte da Gaudium et Spes, a fé autêntica deve iluminar as estruturas humanas, sociais e econômicas, libertando-as da idolatria do lucro e da indiferença. Quando Jesus fala de dar esmola, está proclamando uma nova economia da graça: o amor como medida da pureza. “Tudo vos será puro” não é promessa mágica, mas consequência ética: quem reparte o pão purifica o coração. Também a Fratelli Tutti recorda que “a vida é a arte do encontro, mesmo com aqueles de quem discordamos”. O fariseu fecha-se no ritual; Jesus abre-se ao encontro. O fariseu busca distinguir-se; Jesus busca aproximar-se. O fariseu quer ser visto; Jesus quer ver. O fariseu lava as mãos; Jesus toca as feridas. Por isso, a Boa Nova é subversiva: ela não purifica pela água externa, mas pelo fogo do amor que consome o egoísmo.
Lucas escreve esse episódio quando a comunidade cristã já começa a sofrer as tentações do poder e do legalismo interno. É uma advertência para nós: não basta proclamar Jesus com os lábios se o coração está corrompido pela vaidade e pelo prestígio. A Igreja corre o risco de ser farisaica quando se preocupa mais com paramentos do que com pessoas, mais com rubricas do que com o pão dos pobres, mais com o decoro litúrgico do que com a justiça social.
Esse trecho  do evangelho nos convida à coerência interior. Lavar o exterior e ignorar o interior é viver uma cisão da alma. A espiritualidade autêntica é integração, não aparência. Jesus chama a essa integração: “Limpai primeiro o interior do copo, para que também o exterior fique limpo” (Mt 23,26). A pureza começa onde o ego morre e o amor renasce.
O gesto de Jesus, portanto, é um chamado à conversão profunda. Não uma conversão moralista, mas libertadora. Uma fé que não se mede por normas, mas por gestos de amor. Uma Igreja que não se define por leis, mas por compaixão. Uma espiritualidade que não teme sujar as mãos para lavar as feridas do mundo.
Diante dessa Palavra, somos interpelados: quantas vezes limpamos o copo por fora com nossas aparências religiosas enquanto o interior está cheio de indiferença, consumismo e vaidade espiritual? Quantas vezes usamos a fé para nos exibir em vez de servir? Quantas vezes confundimos ortodoxia com arrogância e pureza com isolamento? Jesus desmonta essas máscaras com uma frase simples: “Dai esmola do que possuís.”
Dar esmola é dar-se. É libertar-se da idolatria do eu. É romper com a lógica da acumulação e da aparência. É fazer da fé um movimento de saída, não de exibição. Essa é a pureza que Deus reconhece: o amor que se torna pão, o perdão que se torna gesto, a fé que se torna carne.
Essa é a Boa Nova: a pureza não está nas mãos lavadas, mas no coração que partilha. A santidade não é brilho exterior, é transparência interior. A fé não é etiqueta religiosa, é encontro que transforma. Que nossas comunidades redescubram o essencial: não há culto verdadeiro sem justiça, nem liturgia sem partilha, nem pureza sem misericórdia.
Que o Cristo, que ousou sentar-se à mesa sem lavar as mãos, desperte em nós uma Igreja que não tema sujar-se para servir, que prefira as mãos calejadas às mãos limpas e que descubra, na lama do mundo, o brilho da graça. Porque o Reino começa quando o copo do coração transborda amor.



DNonato – Teólogo do Cotidiano

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