No dia que celebramos a Padroeira do Brasil a Virgem Aparecida a Igreja nos convida a refletir as seguintes leituras: Esther 5,1b-2;7,2b-3; Salmo ; 44(45),11-12a.12b-13.14-15a.15b-16 (R. 11.12a); Apocalipse 12,1.5.13a.15-16a e João 2,1-11 (Bodas de Caná)
No coração da história brasileira, Deus quis revelar que a alegria e a graça não dependem do poder, da riqueza ou do ouro, mas da presença que transforma. Maria Aparecida, manifestada no rio Paraíba, nos lembra que a divindade se mostra no simples, no cotidiano, da cor do povo escravo e um gesto discreto que sustenta a vida e alimenta um desejo da libertação. Três pescadores recolheram não apenas uma imagem partida, mas o sinal de que Deus caminha conosco nas fragilidades humanas. A mulher vestida de sol, coroada de estrelas, da qual fala o Apocalipse (Ap 12,1), desceu à história do povo brasileiro como mãe negra e mediadora, lembrando-nos que a verdadeira festa — a alegria do encontro com o Filho — jamais nos faltará. “Fazei tudo o que Ele vos disser” é o comando que abre a experiência do milagre e da nova Aliança.
A liturgia desta solenidade apresenta uma teia de significados. Ester, no Antigo Testamento, arrisca a própria vida para salvar o seu povo diante do rei. Maria, em Caná, intercede diante do Rei eterno. O Salmo 44, canção nupcial, é imagem da alegria da Igreja e da humanidade reunida na Aliança com Deus. O Apocalipse apresenta a Mulher perseguida, fiel e portadora de vida, que não se deixa intimidar pelo dragão, e o evangelho de João traduz a manifestação do Reino em festa, mostrando que a alegria de Deus é contagiosa e inclusiva. Cada leitura é como uma tessela do mosaico da graça: intercessão, fidelidade, comunhão e transformação.
O Evangelho de João 2,1-11, proclamado no 2º Domingo do Tempo Comum – Ano C, bem como em missas votivas e celebrações marianas, revela o início da missão de Jesus como portador de alegria e vida plena. A cena das Bodas de Caná é paradigma de transformação: o ordinário se torna extraordinário, a falta é suprida e a humanidade aprende que a presença de Deus muda a realidade. Nos Sinóticos, vemos ecos dessa festa: Mateus 9,15, Marcos 2,19 e Lucas 5,34 lembram que Jesus inaugura um tempo de alegria que rompe com os ritos formais e convida à comunhão, mostrando que a vida humana é chamada à festa da salvação.
Os símbolos de Caná são densos e multifacetados.
- As seis talhas de pedra, usadas nos ritos de purificação judaicos (Êx 30,17-21; Nm 19,17-19), indicam a antiga Lei, vazia e insuficiente para proporcionar verdadeira alegria.
- A água, elemento vital e cotidiano, representa a fragilidade, a necessidade e a vida ainda inacabada.
- O vinho, transformado por Jesus, é a plenitude da graça, a alegria da nova Aliança (Jr 31,31-34), a comunhão com Deus e a fecundidade da vida humana. Maria, discreta, é mediadora da graça, a escuta ativa que percebe a falta e a entrega ao Filho.
- Os noivos, anônimos, representam toda humanidade;
- O mordomo, que prova o vinho sem saber sua origem, representa a autoridade limitada diante da ação de Deus.
Cada detalhe — talha, água, vinho, intercessão, festa — é ponte entre o humano e o divino. Maria se apresenta como presença discreta e decisiva. Ela percebe a escassez e confia no agir de Deus. Psicologicamente, Maria representa o arquétipo feminino integrador: acolhe, escuta, transforma. Ao dizer “Eles não têm mais vinho”, Maria nomeia a falta e entrega ao Filho. O milagre se realiza na escuta, na confiança e na colaboração. É a primeira discípula, pedagoga da obediência criativa: a vida transformada exige cooperação com a graça, não passividade.
Jesus em Caná inaugura uma sociedade nova, onde a antiga Lei cede lugar à Aliança da alegria. As talhas, símbolos da Lei, cedem ao vinho da graça, anunciando a superação de estruturas que limitam a vida. Sociologicamente, a festa sem vinho denuncia sociedades que acumulam riqueza, poder e saber, mas carecem de solidariedade, compaixão e fraternidade. O episódio critica teologias da prosperidade, do domínio e do individualismo, que transformam a fé em mercadoria ou espetáculo. Em Caná, a alegria é para todos, e o milagre acontece onde há serviço, solidariedade e presença amorosa.
A teologia mariana vê neste gesto princípio de nova criação. Maria conduz a humanidade à escuta e à obediência criativa, transformando o ordinário em extraordinário. A antiga aliança, representada pelas talhas vazias, é superada; a nova Aliança, simbolizada pelo vinho, inaugura a festa da comunhão. A obediência ao Filho não é servil, mas colaborativa, revelando a plenitude da graça. Santo Irineu afirma que Cristo cumpre e supera a Lei; Santo João Damasceno e São Cirilo de Alexandria destacam Maria como colaboradora da salvação, mediadora do amor que se realiza na história humana.
Do ponto de vista trinitário, o Pai é o anfitrião invisível, o Filho realiza o sinal e o Espírito é o vinho que inebria de graça. O milagre de Caná mostra que a fé não se impõe, não manipula, não é espetáculo: é experiência concreta de transformação diária. A festa de Caná é metáfora da utopia concreta: antecipação do Reino, anúncio de alegria, amor e comunhão.
Sabemos que o vinho simboliza a alegria comunitária. A água que falta no cotidiano — alimento, saúde, dignidade, fé viva — é transformada pelo Espírito em vinho novo quando a comunidade se engaja em serviço e ética. Clericalismo e estruturas rígidas são denunciados: o mordomo prova o vinho sem saber sua origem, lembrando que a Igreja verdadeira serve, não domina. Maria, discreta e humilde, ensina que o milagre acontece na colaboração amorosa com Deus, e não em gestos de poder ou ostentação.
O vinho antecipa o banquete escatológico, onde Deus fará novas todas as coisas (Ap 19,9). Entre Caná e o Apocalipse, o fio condutor é o amor que se faz comunhão. Jesus transforma dor em salvação, ausência em festa. Filosoficamente, Caná é metáfora da esperança concreta: a antecipação do mundo reconciliado, onde a alegria é fruto de serviço, escuta e intercessão.
Na Solenidade de Aparecida, renovamos a aliança: viver a fé como serviço, solidariedade e alegria compartilhada. Cada gesto ético, cada escolha de amor, cada ação concreta é uma talha sendo preenchida com vinho da graça. Maria Aparecida inspira a denunciar exploração, clericalismo, fé-mercadoria e desigualdade, celebrando a vida como festa de comunhão.
Que possamos viver o Evangelho como festa, transformar a água da escassez em vinho da alegria, e ser instrumentos do Reino inaugurado por Jesus. Que a Mãe Aparecida nos ensine a enxergar nas ausências oportunidades para ação divina, e nas festas humanas sinais da alegria messiânica, tornando nossa vida verdadeira Bodas de Caná, onde a graça, a comunhão e a presença de Deus jamais faltam.
DNonato - Teólogo do Cotidiano
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