quinta-feira, 18 de setembro de 2025

Um breve olhar sobre Lucas 8,1-3..

 
A narrativa de Lucas 8,1-3, usada na liturgia da sexta-feira da 24ª Semana do Tempo Comum, apresenta uma cena aparentemente simples, mas que, sob o olhar atento da exegese, revela um gesto de profunda revolução social e teológica. Jesus, em sua missão pela Galileia e regiões próximas, não caminha sozinho. Ele é acompanhado por um grupo diversificado de discípulos, incluindo mulheres que desempenham papéis essenciais, servindo não apenas com suas mãos, mas com seus bens e compromisso vital. Maria Madalena, Joana, Susana e muitas outras representam mais do que presença: são testemunhas vivas da inclusão radical do Reino de Deus, desafiando estruturas patriarcais, religiosas e sociais que buscavam silenciá-las. Em uma sociedade fortemente patriarcal, onde mulheres eram restringidas à esfera doméstica e excluídas de espaços públicos de decisão, a presença ativa dessas discípulas demonstra a coragem de romper com o status quo. Elas não se limitam a acompanhar Jesus; participam ativamente de sua missão. Lucas, sensível à marginalização dos pobres, pecadores e mulheres, destaca que a salvação não conhece gênero, classe ou prestígio social. As mulheres de Lucas 8 não são decorativas; elas são estruturantes da comunidade, contribuindo material, espiritual e afetivamente para a missão de Jesus, mostrando que o serviço é uma forma profunda de discipulado.

O paralelo com outros evangelhos evidencia a consistência dessa visão. Em Marcos 15,40-41, vemos as mulheres permanecendo firmes na crucificação, enquanto em Mateus 27,55-56 elas são destacadas por sua fidelidade. Lucas também aponta para a continuidade dessa participação feminina desde a Galileia até Jerusalém, e a narrativa de Lucas 10,38-42, com Maria e Marta, reforça que a escuta e o serviço são igualmente valorizados. Esses paralelos sinóticos revelam que a missão de Jesus se concretiza na solidariedade e na corresponsabilidade, não na exclusão ou no privilégio de alguns.

Quando examinamos essa passagem à luz da hermenêutica e da exegese, percebe-se que Lucas constrói uma teologia do serviço e da comunidade. As mulheres servem não para receber bênçãos materiais ou retorno imediato, mas por amor e gratidão. Aqui, a narrativa se contrapõe à Teologia da Prosperidade, que reduz a fé a uma moeda de troca, e denuncia a fé como mercadoria. A verdadeira fé não se compra nem se manipula; ela se vive na gratuidade do serviço, na entrega desinteressada e na solidariedade para com o outro.

A cena de Lucas também desafia a teologia do domínio e o individualismo religioso. Jesus não organiza sua comunidade segundo hierarquias rígidas ou autoridade coercitiva. Ele promove relações horizontais, onde cada contribuição é reconhecida e cada pessoa valorizada. A psicologia comunitária contemporânea mostra que grupos estruturados com cooperação e corresponsabilidade desenvolvem resiliência, senso de pertencimento e identidade sólida. A sociologia confirma que sociedades hierarquizadas tendem a marginalizar e excluir, reproduzindo injustiça; Lucas propõe um modelo radicalmente alternativo: a comunidade é construída na inclusão e na valorização de todos os membros.

O clericalismo é contestado de forma explícita. Jesus confia sua missão a homens e mulheres, a leigos e leigas, demonstrando que o poder não pertence a poucos, mas que o serviço e o testemunho são responsabilidade de todos. Documentos da Igreja como Christifideles Laici (n. 27-30) e o Catecismo da Igreja Católica (n. 894-896) reforçam esta vocação universal à santidade e ao serviço, enquanto a patrística, em autores como Tertuliano e Hipólito, reconhecia a presença ativa de mulheres no culto e na catequese como expressão da dignidade batismal. Lucas antecipa, de forma profética, uma Igreja inclusiva, onde o dom de cada pessoa é necessário para a vida comunitária.

Historicamente, a coragem das mulheres é ainda mais impressionante. Participar publicamente de uma missão espiritual, no contexto da Galileia e da Judeia, implicava risco social, marginalização e, em alguns casos, exposição ao escárnio. Mas é justamente essa disposição que torna o gesto revolucionário: Jesus redefine o pertencimento ao Reino não pela conformidade, mas pela fidelidade ao chamado de serviço e amor. A filosofia ética, de Aristóteles a Tomás de Aquino, reconhece no serviço ao outro uma expressão da virtude e da realização humana; Lucas 8 concretiza essa ética na vida comunitária de Jesus.

Do ponto de vista antropológico e sociológico, a inclusão das mulheres, assim como de pobres e marginalizados, é uma denúncia profética às estruturas de poder que continuam reproduzindo desigualdades. Em paralelo, a psicologia relacional revela que a presença ativa de todos fortalece a identidade do grupo, promove empatia e constrói resiliência emocional. Lucas nos mostra que o Reino de Deus se manifesta na comunidade, e não na coerção ou na manipulação de interesses pessoais.


As mulheres de Lucas 8,1-3 sustentam a pregação, apoiam a logística da missão e representam simbolicamente a reciprocidade que deve reger a vida da comunidade de fé. Este serviço gratuito e comprometido é uma resistência ética contra a instrumentalização da religião. Elas nos ensinam que a missão da Igreja e o Reino de Deus não se reduzem ao poder ou à riqueza, mas à inclusão, ao serviço e à promoção da dignidade de cada pessoa.

O paralelismo com o Antigo Testamento reforça esta visão: Débora, profetisa e juíza de Israel (Juízes 4-5), liderou com coragem e sabedoria, mostrando que o Espírito não se limita a homens ou elites. Isaías 61,1-3 anuncia a libertação dos oprimidos e marginalizados, e Lucas realiza essa profecia de forma concreta na caminhada de Jesus. A comunidade que Ele forma é um sinal vivo do Reino, uma antecipação do mundo reconciliado, justo e inclusivo.

Em um paralelo contemporâneo, o papel da mulher se mantém central na solidariedade e na transformação social. Assim como Maria Madalena, Joana e Susana contribuíram com seus recursos e serviço na missão de Jesus, hoje mulheres em todo o mundo sustentam comunidades, iniciativas sociais e movimentos de justiça, muitas vezes sem reconhecimento formal, enfrentando desigualdades estruturais, violência e exclusão. Elas se tornam o coração pulsante de projetos de educação, saúde, assistência aos marginalizados e defesa dos direitos humanos, mostrando que a coragem e o compromisso profético narrados no Evangelho continuam vivos. O serviço desinteressado, a solidariedade e a liderança ética das mulheres são hoje, como então, sinais concretos da presença do Reino de Deus entre nós.

De forma complementar, os textos apócrifos e extracanonicos reforçam ainda mais a presença ativa das mulheres no ministério de Jesus. O Evangelho de Maria Madalena descreve Maria como interlocutora privilegiada dos ensinamentos de Cristo, capaz de orientar e consolar os discípulos, confirmando que sua autoridade espiritual era reconhecida. No Evangelho de Filipe, observa-se que mulheres participavam plenamente da vida comunitária e da transmissão dos mistérios do Reino, servindo e ensinando ao lado dos homens. O Evangelho de Tomé inclui ditos que reforçam a importância da percepção feminina na compreensão dos ensinamentos de Jesus. Estas fontes, embora extracanonicas, ecoam o princípio de Lucas: o discipulado não se mede por gênero, mas pelo compromisso com a missão e pelo serviço desinteressado. Elas lembram que a liderança feminina não é novidade, mas continuidade de um padrão que Jesus instituiu e que a Igreja é chamada a cultivar hoje.

Ainda hoje, o exemplo bíblico e apócrifo converge com iniciativas contemporâneas de mulheres que promovem transformação social e espiritual. Em comunidades, organizações sociais, movimentos de direitos humanos e pastoral urbana, elas se tornam agentes de reconciliação, proteção e educação, muitas vezes enfrentando resistência cultural ou institucional. Este paralelo evidencia que a solidariedade, o cuidado e a coragem para liderar, ensinando e servindo, continuam sendo traços essenciais do discipulado, que Lucas e os textos apócrifos celebram e inspiram.

Ao olhar para Lucas 8,1-3, somos desafiados a refletir sobre a Igreja contemporânea: quantos marginalizados ainda não têm voz? Quantos dons permanecem invisíveis por preconceito, hierarquia ou medo? Como resistir à fé mercantilizada, à teologia do domínio ou ao individualismo religioso? A liturgia nos lembra que o chamado de Deus é inclusivo, que o serviço é maior expressão de fé, e que a verdadeira comunidade é construída na solidariedade e corresponsabilidade, conforme nos ensina Evangelii Gaudium (n. 66) e Fratelli Tutti (n. 272-273).

A profecia de Lucas não é apenas histórica; é prática e contemporânea. Convida-nos à ação concreta: reconstruir comunidades horizontais, incluir os marginalizados, valorizar o serviço gratuito e resistir a estruturas que reduzem a fé a mercadoria ou privilégio. Que possamos, à luz desta passagem, viver uma fé que transforma, acolhe, respeita e promove justiça, fazendo do serviço e da solidariedade expressão concreta do Reino de Deus no mundo.

Assim, Lucas 8,1-3 nos desafia a caminhar com os olhos de Cristo, a construir comunidades de igualdade e reciprocidade, e a perceber que cada gesto de serviço, cada ato de amor gratuito, é um fragmento do Reino que se manifesta hoje. Que nossas ações reflitam a coragem das mulheres que seguiram Jesus, sustentando a missão, resistindo às distorções e anunciando a Boa Nova de Deus, com fidelidade, coragem e generosidade.

DNonato - Teólogo do Cotidiano 

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