O contexto narrativo de Lucas é carregado de força simbólica. Jesus “endurece o rosto” para ir a Jerusalém, expressão que evoca a decisão dos profetas diante da missão (cf. Is 50,7). Jerusalém é o lugar do sacrifício, da entrega, da morte e da ressurreição. É o centro da história da salvação, o lugar onde o tempo se cumpre. Caminhar para Jerusalém é caminhar para a cruz, mas também para a vida nova. Por isso, esse caminho não admite distrações nem meias medidas. O discípulo é convidado a seguir Jesus não em uma estrada cômoda, mas em um êxodo existencial, em um deserto interior que exige confiança radical. Nesse cenário, três pessoas aparecem em diálogo com Jesus. A primeira se oferece espontaneamente: “Eu te seguirei para onde quer que fores” (Lc 9,57). A resposta de Jesus soa como um choque de realidade: “As raposas têm tocas e as aves do céu ninhos, mas o Filho do Homem não tem onde reclinar a cabeça” (Lc 9,58). A segunda é chamada diretamente: “Segue-me” (Lc 9,59). Mas a resposta é condicionada: “Deixa-me primeiro ir sepultar meu pai.” Jesus replica: “Deixa que os mortos sepultem seus mortos; tu, porém, vai anunciar o Reino de Deus” (Lc 9,60). A terceira pessoa também se oferece, mas com a condição de despedir-se dos familiares. Jesus, então, encerra com a sentença dura: “Quem põe a mão no arado e olha para trás não é apto para o Reino de Deus” (Lc 9,62). Três encontros, três exigências, três revelações do que significa seguir Jesus.
O texto de Lucas 9,57-62 está carregado de símbolos que revelam camadas profundas do discipulado. O “Filho do Homem sem onde reclinar a cabeça” simboliza a total entrega, a renúncia às seguranças humanas e a vida itinerante do discípulo, evocando o Servo sofredor de Isaías e a peregrinação do povo de Israel pelo deserto. O pedido de deixar os mortos enterrarem os mortos não se refere apenas à literalidade do sepultamento, mas ao abandono das convenções sociais e do apego às estruturas que impedem a vida plena do Reino. O arado representa o trabalho cotidiano e a disciplina necessária para cultivar o Reino, enquanto o ato de “não olhar para trás” evidencia que o discípulo deve fixar o olhar no horizonte do Reino de Deus, sem permitir que a nostalgia, os medos ou as obrigações paralelas comprometam a missão. Cada símbolo dialoga com imagens bíblicas, patrísticas e existenciais: o arado ecoa o chamado de Eliseu por Elias, o olhar para trás lembra a esposa de Ló, e a ausência de morada remete à total confiança em Deus como verdadeira segurança.
Os paralelos nos demais sinóticos enriquecem a compreensão. Mateus (8,18-22) apresenta duas dessas exigências, sem a terceira. Lucas, ao acrescentar a terceira, radicaliza ainda mais. Essa terceira evocação remete ao chamado de Eliseu por Elias (1Rs 19,19-21). Eliseu estava lavrando a terra com doze juntas de bois, quando Elias o chama. Eliseu pede para despedir-se da família, e Elias consente. Mas Eliseu, para não voltar atrás, sacrifica os bois e queima o arado. A cena mostra que quem é chamado deve romper com as seguranças e não deixar brechas para voltar atrás. Lucas parece intensificar esse paralelo, pois em Jesus a urgência é maior: nem tempo de despedida há. O Reino já chegou, e sua exigência é imediata. Paulo ressoa essa mesma lógica em Filipenses 3,13-14: “Esquecendo o que fica para trás e lançando-me para o que está à frente, prossigo para a meta, para o prêmio da vocação celeste em Cristo Jesus.” O autor da Carta aos Hebreus reforça: “Corramos com perseverança a corrida que nos é proposta, fixando os olhos em Jesus” (Hb 12,1-2). A experiência de fé é sempre movimento para frente, nunca prisão ao passado. O Evangelho de João, em outro registro, mostra a mesma dureza: quando muitos abandonam Jesus após o discurso do pão da vida, Ele pergunta: “Também vós quereis ir embora?” (Jo 6,67). O discipulado não admite meias medidas.
O texto toca no coração das estruturas culturais do Oriente antigo. O sepultamento do pai não era apenas um dever familiar, mas a expressão máxima da identidade coletiva. Renunciar a isso parecia escandaloso. Mas Jesus provoca: o Reino inaugura um tempo novo, que relativiza até mesmo os vínculos mais sagrados. Isso não significa desprezar a família, mas ordená-la ao Reino. Hoje, quantas vezes se absolutizam valores de família, tradição ou nação como se fossem intocáveis, e acabam tornando-se ídolos? O Evangelho nos liberta desses absolutismos. O Papa Francisco, em Evangelii Gaudium (n. 53-54), lembra que a fé não pode se confundir com nacionalismo excludente nem com religiosidade autorreferencial. O discipulado exige abertura ao universal, ao pobre, ao migrante, ao descartado.
A psicologia existencial ajuda a perceber o drama humano que o texto revela. A necessidade de ter onde reclinar a cabeça é o anseio profundo de segurança, abrigo, estabilidade. Mas a fé nos convida a viver o despojamento, a suportar a vulnerabilidade. O ser humano, muitas vezes, busca máscaras de estabilidade para não encarar a própria fragilidade. O seguimento de Jesus desmonta essas máscaras. Quem quer segui-lo deve aceitar a condição de estrangeiro, de peregrino, de andarilho da fé. A verdadeira segurança não está nas posses, mas em Deus. A renúncia ao passado e às despedidas simboliza a necessidade de viver o presente com inteireza, sem deixar-se paralisar por nostalgias ou medos.
A filosofia ilumina esse horizonte. Kierkegaard via na fé um salto no absurdo, uma decisão radical que não pode ser garantida pela razão, mas apenas pela confiança. Nietzsche denunciava a vida ressentida, presa ao passado. Lévinas falava da urgência do outro: a responsabilidade pelo próximo não pode ser adiada. Arendt lembra que toda ação é início, e olhar para trás é abdicar da possibilidade de recomeço. O discípulo deve criar o novo, lançar-se para frente, confiar no futuro que Deus inaugura.
A patrística leu essas palavras com profundidade. Orígenes via no Filho do Homem sem onde reclinar a cabeça o símbolo do cristão sempre em êxodo. Agostinho advertia que quem olha para trás, depois de pôr a mão no arado, mostra coração dividido, incapaz de amar a Deus totalmente. Gregório Magno aplicava o texto aos pastores da Igreja: se buscam privilégios, não seguem o Cristo pobre. João Crisóstomo via no “não olhar para trás” a renúncia à duplicidade, e Inácio de Antioquia lembrava que “é melhor ser discípulo em silêncio do que em palavras”.
Contra a teologia da prosperidade, que promete riquezas e conforto, Jesus responde: o Filho do Homem não tem onde reclinar a cabeça. Contra a teologia do domínio, que instrumentaliza a fé para poder político, Jesus mostra que o Reino não se impõe pela força. Contra o individualismo, que reduz a fé a projeto de autorrealização, Jesus lembra que é preciso romper vínculos egocêntricos. Contra a fé como mercadoria, o Evangelho mostra que a adesão a Cristo não se vende nem se compra. Contra o clericalismo, o texto denuncia qualquer apego a títulos, status ou honras.
Historicamente, o texto se insere no itinerário da subida de Jesus a Jerusalém. Lucas apresenta Jesus como profeta decidido, que caminha sem medo. Os discípulos, ao contrário, ainda querem recorrer à violência ou aos apegos culturais. A tensão entre Jesus e os discípulos mostra que o discipulado não é evidente nem fácil. É aprendizagem, é conversão. Sociologicamente, o texto desmascara a tentação do comodismo. Quando a fé se torna acomodada, perde sua força profética. É o que vemos hoje em igrejas que transformam o Evangelho em espetáculo, em arma ideológica ou em mercadoria. O texto lucano desmonta essas distorções e chama de volta à radicalida. O texto revela que o ser humano é um ser de decisão. Não decidir é já escolher o comodismo. Jesus exige decisão clara. O olhar para trás simboliza a indecisão, a nostalgia, o coração dividido. O ser humano encontra sua plenitude quando aceita arriscar-se na entrega total. Esse risco é condição da liberdade. Só quem arrisca descobre o sentido pleno da vida. Só quem abandona as falsas seguranças encontra a verdadeira segurança.
Portanto, Lucas 9,57-62 é texto de exigência radical e de esperança escatológica. Ele nos lembra que o seguimento de Jesus não é romantismo nem tradição morta, mas decisão concreta, feita de pobreza, disponibilidade e firmeza. Seguir Jesus é aceitar não ter onde reclinar a cabeça, reconhecendo que a verdadeira morada é Deus, como canta o Salmo: “Tu que habitas sob a proteção do Altíssimo e moras à sombra do Onipotente” (Sl 91,1). É deixar que os mortos enterrem seus mortos, reconhecendo que a vida do Reino não pode ser paralisada por nostalgias ou tradições que não geram vida. É pôr a mão no arado e não olhar para trás, lembrando a esposa de Ló (Gn 19,26), que se petrificou ao voltar-se para o passado, e entendendo, como dizia Santo Agostinho, que “não se pode caminhar para a frente com os pés presos às correntes do ontem”.
O arado, que corta a terra e abre sulcos, é símbolo do discipulado que abre a história, sem possibilidade de ser guiado olhando no retrovisor. Como lembra Hannah Arendt, toda ação é início, novidade que se abre diante de nós; olhar para trás é abdicar da possibilidade de recomeço. O discípulo é chamado a seguir Jesus com o olhar fixo no horizonte do Reino, não como quem caminha de costas, mas como quem confia no futuro que Deus inaugura.
São João Crisóstomo via no “não olhar para trás” a renúncia a toda duplicidade de coração; Inácio de Antioquia lembrava que “é melhor ser discípulo em silêncio do que apenas em palavras”, advertindo contra desculpas que adiam a decisão. Hoje, essa mesma exigência desmascara o clericalismo que busca privilégios e o escândalo de uma Igreja que acumula seguranças enquanto proclama seguir o Cristo sem lugar para reclinar a cabeça. Denuncia também a teologia da prosperidade e do domínio, que reduzem o Evangelho a mercadoria e o transformam em instrumento de poder.
Esse texto nos convoca a romper com as falsas missões que buscam glória distante, mas se esquecem do pobre ao lado. Ele nos chama a uma Igreja que não teme perder prestígio para ganhar fidelidade ao Reino, que não negocia com a violência nem com os poderes deste mundo, mas fixa o rosto para Jerusalém como o Mestre. Em tempos em que muitos tentam controlar o sagrado para transformá-lo em palco, o Evangelho nos pede silêncio fecundo e decisão concreta.
Por isso, não é à toa que a liturgia nos entrega esse Evangelho em etapas: na terça-feira da 26ª semana do Tempo Comum, vemos a firme decisão de Jesus e sua reprovação à violência dos discípulos; na quarta-feira, ouvimos as exigências concretas do seguimento; e no 13º Domingo do Tempo Comum, contemplamos o conjunto que une a decisão de Cristo e a convocação da comunidade. Esse itinerário pedagógico nos ensina que o discipulado não é escolha isolada, mas caminho comunitário, contínuo, sustentado pela decisão irrevogável de Jesus que caminha à frente. Como afirma o Papa Francisco em Evangelii Gaudium (n. 49), “prefiro uma Igreja acidentada, ferida e enlameada por ter saído pelas estradas, a uma Igreja enferma pelo fechamento e pela comodidade de se agarrar às próprias seguranças”. Seguir Jesus é isso: caminhar sem olhar para trás, com coragem profética e confiança no futuro de Deus.
✍️ DNonato – Teólogo do Cotidiano
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