terça-feira, 30 de setembro de 2025

Um breve olhar sobre Lucas 9,51-56

O Evangelho de Lucas, no capítulo 9, versículos 51 a 56, nos coloca diante de um momento decisivo da vida de Jesus: a sua decisão firme de subir a Jerusalém. O texto litúrgico recorda que, “ao se completarem os dias de sua elevação, Jesus tomou a firme decisão de partir para Jerusalém” (Lc 9,51). A liturgia proclama esse trecho específico na terça-feira da 26ª semana do Tempo Comum, mas convém lembrar que a narrativa aparece de forma mais ampla, até o versículo 62, no 13º Domingo do Tempo Comum do Ano C, quando o chamado radical ao discipulado se torna ainda mais evidente. Essa contextualização litúrgica é importante porque nos ajuda a perceber como a Igreja distribui, ao longo do ano, os momentos pedagógicos da caminhada de Jesus rumo a Jerusalém, caminho que é, ao mesmo tempo, histórico e teológico, pessoal e comunitário, pedagógico e profético.

Lucas organiza o Evangelho de tal maneira que Jerusalém se torna o ponto de chegada e, ao mesmo tempo, o lugar da revelação do verdadeiro sentido da missão. Não se trata apenas de um deslocamento geográfico, mas de um caminho de entrega radical, de revelação da identidade messiânica de Jesus e de desmascaramento das falsas compreensões do poder religioso e político. Ao tomar a firme decisão, Jesus se coloca em oposição ao fluxo da história marcada pela dominação imperial de Roma e pela cumplicidade de setores do judaísmo oficial. Essa decisão é também a manifestação da liberdade plena de quem sabe que amar exige atravessar o risco, enfrentar as rejeições e expor-se à violência.

A recusa dos samaritanos em acolher Jesus neste caminho (Lc 9,53) tem raízes históricas e culturais. Os samaritanos não acolheram Jesus nem aqueles que iam a Jerusalém porque a divisão histórica e religiosa entre judeus e samaritanos era profunda. Após a conquista assíria do Reino do Norte, os israelitas foram deportados e povos estrangeiros se estabeleceram na região, misturando-se com os remanescentes locais (2Rs 17,24-34). Essa mistura gerou uma identidade religiosa diferente, centrada no monte Garizim e em práticas que os judeus de Jerusalém consideravam ilegítimas. Para os samaritanos, os judeus representavam exclusão, arrogância e centralização do culto em Jerusalém, o que gerava desconfiança e ressentimento. Assim, qualquer judeu que se dirigisse a Jerusalém era visto como representante de uma tradição que os marginalizava e desautorizava sua fé local, tornando natural a rejeição a Jesus e aos mensageiros que anunciavam a boa nova do Reino.

Quando Tiago e João, inflamados de zelo, pedem que desça fogo do céu sobre os samaritanos (Lc 9,54), a cena não é apenas histórica, mas profética. Ela denuncia a tentação humana de transformar Deus em instrumento de vingança, poder ou exclusão. No mundo contemporâneo, essa mesma lógica aparece nas polarizações ideológicas que atravessam sociedades inteiras. Há aqueles que, de extrema-direita ou de extrema-esquerda, acreditam que a verdade política ou religiosa que defendem justifica ataques simbólicos ou reais sobre os adversários. A violência não é apenas física; é também cultural, econômica e espiritual. O fogo que Tiago e João queriam fazer cair sobre os samaritanos encontra ecos nos discursos de ódio que se espalham entre setores de diferentes tradições políticas, muitas vezes travestidos de zelo religioso ou moral.

Entre católicos e evangélicos, por exemplo, percebe-se a mesma tentação de fazer “descer fogo” sobre o outro. É a disputa pelo controle do discurso público, o julgamento moral, a demonização do diferente, transformando a fé em arma de imposição. Entre cristãos e grupos de matriz africana, essa mesma lógica se manifesta quando há tentativa de deslegitimar práticas religiosas ou de coagir sincretismos, esquecendo que o Evangelho de Jesus atravessa fronteiras culturais e reconhece a alteridade como parte da criação divina. A recusa em acolher o diferente, que Jesus confronta na Samaria, se repete hoje quando se deseja impor uma fé única e uniforme, negando a pluralidade legítima da experiência humana.

Essa lógica de exclusão também se observa nas tensões entre heterossexuais e a comunidade LGBTQIAPN+. Muitos querem transformar diferenças de orientação e identidade em justificativa para discriminação, agressão simbólica ou até física, ignorando o princípio cristão da dignidade de cada pessoa, criada à imagem de Deus (Gn 1,27). O fogo que se deseja fazer cair sobre os outros é sempre expressão de medo, insegurança e incapacidade de conviver com a alteridade. Lucas nos lembra, com clareza, que a missão de Jesus não é consumir ou destruir, mas atravessar as barreiras do ódio e da incompreensão, abrindo caminho para reconciliação e diálogo.

A polarização religiosa e ideológica, portanto, não é neutra. Ela reproduz a lógica de Tiago e João, que preferem a destruição do outro à paciência pedagógica de Jesus. Extremismos de qualquer lado — políticos, religiosos ou culturais — tendem a reduzir a complexidade do humano, transformando pessoas em inimigos a serem apagados. A repreensão de Jesus é, assim, uma advertência atemporal: Deus não é instrumento de vingança, e o verdadeiro discípulo não se deixa arrastar pela lógica da intolerância, mas pela coragem de caminhar, dialogar e testemunhar o amor, mesmo diante da rejeição.

Jerusalém  é o lugar do poder religioso e político, mas também o lugar do sacrifício pascal. Ao decidir subir a Jerusalém, Jesus sabe que enfrentará o sinédrio, Herodes, Pilatos e o templo transformado em mercado (cf. Lc 19,46). Ele caminha para o coração do sistema que transforma a fé em mercadoria, que instrumentaliza Deus para legitimar privilégios. Essa crítica é profundamente atual diante das novas formas de “templo” erigidas por pastores digitais, padres empresários e políticos messiânicos, que vendem prosperidade e domínio como se fossem o Evangelho. A teologia da prosperidade, ao prometer bênçãos materiais em troca de dízimos e fidelidade, repete a lógica da barganha que Jesus denunciou. A teologia do domínio, ao confundir fé com poder político e imposição cultural, reedita o pedido dos discípulos: fazer descer fogo contra os outros. Ambas negam a cruz, porque não aceitam que a vitória de Deus se manifeste na fragilidade do amor crucificado. Orígenes, comentando este trecho, dizia que Jesus não veio para destruir os pecadores, mas para destruir o pecado, e que o fogo que ele traz não é o da vingança, mas o da purificação interior. Santo Agostinho, por sua vez, advertia que os discípulos, ao pedirem fogo, estavam cegos pelo desejo de glória humana, enquanto o Mestre os chamava a um caminho de humildade. Essa tensão entre a tentação da glória e a pedagogia da cruz atravessa toda a história da Igreja, manifestando-se hoje no clericalismo, que transforma o ministério em privilégio, e na religião-espetáculo, que busca aplausos em vez de conversão.

Aqui  se revela  uma cena  de um confronto entre duas concepções de poder: a potência como dom de si ou a potência como imposição sobre o outro. Nietzsche criticava o cristianismo como moral dos fracos; mas, em Jesus, vemos que a verdadeira força não está em dominar, mas em entregar-se. Hannah Arendt lembrava que a violência nunca cria poder verdadeiro, apenas destrói; poder autêntico nasce do consenso, da palavra e da ação conjunta. Jesus, ao rejeitar o fogo da vingança, funda um poder novo, que é o poder do amor reconciliador.

Precisamos  saber que as culturas humanas sempre usaram o sagrado como justificativa para eliminar inimigos. René Girard mostrou como os mecanismos do bode expiatório estruturaram sociedades inteiras, legitimando a violência contra minorias. Jesus, ao repreender os discípulos, rompe com essa lógica sacrificial: ele não autoriza a violência, mas se oferece a si mesmo como vítima inocente, revelando a injustiça do sistema e abrindo o caminho da reconciliação.

O Magistério da Igreja também insiste nessa chave. O Concílio Vaticano II, na Gaudium et Spes (n. 78), afirma que a paz nunca é fruto da violência, mas da justiça e do amor. A Evangelii Gaudium (n. 93-97) denuncia a mundanidade espiritual que leva muitos a buscar prestígio e poder em nome da fé. E a Fratelli Tutti (n. 25-28) recorda que as guerras e divisões sempre nascem da incapacidade de reconhecer o outro como irmão. Assim, ao repreender os discípulos, Jesus já antecipa o coração do Evangelho social: não se trata de excluir, mas de abrir espaço para o encontro.

Se olharmos para os paralelos sinóticos, veremos que esse episódio é exclusivo de Lucas, mas a lógica da rejeição e da incompreensão aparece em Marcos e Mateus em outras formas, como na rejeição de Jesus em Nazaré (Mc 6,1-6; Mt 13,54-58) ou no envio dos discípulos em meio a perseguições (Mt 10,16-23). O tema é constante: seguir Jesus significa enfrentar incompreensões, rejeições, até mesmo da parte dos mais próximos. A Samaria é, assim, um espelho das nossas próprias resistências: quantas vezes recusamos acolher Jesus porque ele não vem confirmar nossos preconceitos, mas desinstalar nossas seguranças?

O texto conclui de modo sóbrio: “E seguiram para outra aldeia” (Lc 9,56). Não há vingança, não há fogo, não há espetáculo. Apenas a continuidade do caminho. Jesus não se prende à recusa, não perde tempo em guerras inúteis. Ele segue adiante, porque sua missão é maior do que as pequenas disputas humanas. Esse detalhe é profundamente pedagógico: a Igreja também precisa aprender a seguir adiante, sem se enredar em polarizações vazias, sem gastar energia em guerras culturais que apenas alimentam o ódio.

O caminho para Jerusalém é, portanto, o caminho da fidelidade ao amor até o fim. É o caminho que rejeita o clericalismo, a fé como mercadoria, a violência travestida de zelo, a religião que se vende ao poder. É o caminho que chama cada discípulo a vencer a tentação de fazer descer fogo sobre os outros, para deixar que o fogo do Espírito desça primeiro sobre si. Só assim a missão se cumpre, e a história encontra novo rumo.

DNonato – Teólogo do Cotidiano


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