A liturgia dominical do 24º Domingo do Tempo Comum, Ano A, retoma esta mesma passagem, mas, na quinta-feira da 19ª semana, a leitura se prolonga até Mateus 19,1, que registra a mudança geográfica de Jesus da Galileia para a Judeia, rumo a Jerusalém — movimento que dá ao ensinamento sobre o perdão um tom ainda mais dramático, pois o Mestre caminha para entregar a própria vida como perdão vivo (cf. Lc 23,34). Este deslocamento de Jesus também indica que a mensagem do perdão não é apenas pessoal, mas comunitária e universal, destinada a atravessar fronteiras geográficas, culturais e históricas.
A parábola do servo impiedoso (Mt 18,23-35) mostra que o perdão recebido de Deus é infinitamente maior do que qualquer ofensa que alguém nos possa fazer. A dívida de dez mil talentos equivale a algo impagável, ecoando a condição humana diante do pecado (cf. Sl 130,3: “Se levardes em conta as nossas faltas, Senhor, quem poderá subsistir?”). O perdão concedido pelo rei simboliza a graça gratuita de Deus (cf. Ef 2,8-9), mas o servo, ao não perdoar o companheiro por uma dívida mínima, revela o coração endurecido que recusa viver segundo a lógica do Reino. Lucas 17,3-4 apresenta a mesma exigência de perdoar sempre, e Marcos 11,25 reforça que o perdão é condição para a própria oração ser ouvida. Jesus liga a reconciliação à liturgia: “Se fores ao altar e te lembrares que teu irmão tem algo contra ti, deixa a oferta... e vai reconciliar-te” (Mt 5,23-24), ensinando que a religião sem perdão é idolatria de si mesmo. Lucas 6,37 reforça: “Perdoai e sereis perdoados; não julgueis e não sereis julgados”, conectando a misericórdia com a justiça plena.
O Antigo Testamento mostra que o perdão é fundamento da vida em comunidade e da harmonia social. José perdoa seus irmãos mesmo depois de terem vendido-no como escravo (Gn 50,15-21), mostrando que a reconciliação restaura famílias e sociedades. Provérbios 10,12 adverte: “O ódio provoca contendas, mas o amor cobre todos os pecados.” Isaías 1,18 convida: “Vinde, e discutamos, diz o Senhor; ainda que os vossos pecados sejam como escarlate, eles se tornarão brancos como a neve.” O Salmo 103,8-14 reforça que a misericórdia divina é a força que renova a história humana: “O Senhor é compassivo e misericordioso, tardio em irar-se e rico em amor.” Eclesiástico 27,33–28,9 sublinha: “Quem perdoa o próximo promove a paz; quem guarda rancor, traz discórdia.”
No Novo Testamento, a radicalidade do perdão é central: o filho pródigo (Lc 15,11-32) revela o perdão como acolhimento que devolve dignidade e reintegra na família; Jesus, na cruz, mesmo diante da violência extrema, intercede: “Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem” (Lc 23,34). Mateus 5,44 desafia ainda mais: “Amai os vossos inimigos e orai pelos que vos perseguem”, mostrando que o perdão é uma força profética capaz de quebrar ciclos de ódio e violência.
Do ponto de vista histórico e antropológico, no mundo mediterrâneo do século I, a honra e a reciprocidade de ofensas eram reguladas por códigos de vingança. A cultura da retribuição impunha que qualquer injúria fosse respondida com igual intensidade, perpetuando conflitos familiares e sociais. Jesus rompe com esse padrão e propõe uma lógica revolucionária: o perdão como fundamento da vida em comunidade, da confiança social e da reconciliação. Psicologicamente, o rancor aprisiona a mente e o coração, gera ansiedade e prejudica a saúde; perdoar é libertar-se. Sociologicamente, sociedades que cultivam a revanche perpetuam ciclos de violência; comunidades que aprendem a perdoar constroem capital social e confiança. Filosoficamente, o perdão evidencia que a liberdade verdadeira não é a imposição do direito, mas a escolha do bem acima do mal. Teologicamente, ele é participação na vida de Deus: “Sede misericordiosos como vosso Pai é misericordioso” (Lc 6,36).
Aqui se impõe a crítica às distorções da fé. A teologia da prosperidade reduz a vida espiritual a troca e recompensa, tornando o perdão opcional e condicionado a benefícios; a teologia do domínio instrumentaliza a religião para impor poder, esquecendo que Jesus lavou os pés dos discípulos (Jo 13,14-15); o individualismo fecha a pessoa no “eu” que exige direitos mas recusa responsabilidades; a fé como mercadoria transforma até a reconciliação em serviço pago ou espetáculo. O clericalismo, denunciado pelo Papa Francisco, é uma dessas distorções, quando ministros se colocam como donos da graça e não como seus servidores, manipulando o perdão como arma de controle e não como dom.
A patrística nos recorda a radicalidade deste chamado. Santo Agostinho afirma: “Nada é tão exigido pelo Evangelho quanto o perdão mútuo; e nada é tão eficaz para apagar os pecados” (Sermão 114). São João Crisóstomo sublinha que perdoar não é fraqueza, mas imitação de Deus: “Quando perdoas, tornas-te semelhante ao teu Senhor” (Homilias sobre Mateus 61,4). Santo Ambrósio afirma: “Quem não perdoa aos homens não pode receber a misericórdia de Deus.” São João Damasceno completa: “O perdão não anula a justiça, mas a aperfeiçoa no amor.”
São Maximiliano Maria Kolbe, cuja memória hoje celebramos, viveu isso até o fim: no campo de concentração de Auschwitz, ofereceu-se para morrer no lugar de um pai de família condenado. Seu gesto não foi apenas heroísmo humano, mas encarnação do Evangelho do perdão, pois não só deu a vida, mas o fez sem ódio aos algozes, testemunhando que a misericórdia vence o mal (cf. Rm 12,21). São Maximiliano Maria Kolbe escrevia em suas cartas: “Somente o amor cria” e “Não existe felicidade fora do amor.” Ele afirmava ainda: “O ódio não é uma força criadora: a única força criadora é o amor. O mundo não será salvo por engenheiros, mas por santos.” Em São Maximiliano Maria Kolbe, vemos o “setenta vezes sete” tornar-se carne, lembrando que a misericórdia não é teoria, mas vida que se doa e transforma.
Exemplos contemporâneos reforçam esta verdade. Movimentos de reconciliação pós-conflito, testemunhos de vítimas que perdoaram assassinos ou traidores, mostram que o perdão continua a gerar vida onde o ódio parecia definitivo. Assim, somos convidados a viver o perdão não como conceito abstrato, mas como prática diária, transformadora e comunitária.
Ao ouvirmos hoje esta Palavra, somos convocados não a um cálculo de quantas vezes perdoar, mas a uma vida inteira moldada pelo perdão. Perdoar é mais do que esquecer; é lembrar sem rancor, é escolher não devolver o mal recebido. É caminho difícil, impossível sem a graça, mas absolutamente necessário para quem quer seguir Jesus. Como o Mestre, que “amou até o fim” (Jo 13,1), somos chamados a amar até perdoar sempre. E como São Maximiliano Maria Kolbe, somos desafiados a viver um amor tão grande que seja capaz de transformar a própria morte em semente de vida para outros. O perdão cristão não é romântico nem ingênuo. Ele é radical, perigoso e escandaloso para quem vive de lógicas de poder, de acúmulo, de honra ou de vingança. Mas é exatamente por isso que ele é profético: anuncia um mundo onde a última palavra não é do ódio, e sim da misericórdia. Quem o acolhe entra no movimento mesmo de Deus, que “faz nascer o sol sobre bons e maus e faz chover sobre justos e injustos” (Mt 5,45).
DNonato – Teólogo do Cotidiano