sexta-feira, 20 de junho de 2025

Um breve olhar sobre Mateus 6,24-34

 


A Confiança como Rebelião: A Subversão do Reino Contra Mamom

A confiança inabalável em Deus, conforme nos propõe Mateus 6,24-34, não é um alívio piedoso ou resignado diante das angústias cotidianas; é um ato de rebelião sagrada contra os ídolos do nosso tempo. Ao afirmar que não se pode servir a Deus e a Mamom, Jesus rasga o véu de um sistema que absolutiza o dinheiro, o consumo e o controle como deuses. Ele não apenas nos exorta a viver sem ansiedade; Ele convoca seus discípulos a uma nova lógica existencial — a lógica do Reino, onde a confiança substitui a ansiedade, a partilha desarma a avareza, e o presente é reconhecido como kairos, tempo oportuno da graça.

"Mamom", em aramaico, não é um substantivo neutro. É nome de senhor. É figura simbólica de um poder espiritual que exige culto. Como Baal nos tempos antigos, é uma divindade sedutora que promete segurança, mas cobra em troca a alma do adorador. Não por acaso, Jesus não descreve o dinheiro como um bem neutro, mas como um senhor rival de Deus. A escolha entre servir a Deus ou a Mamom é a escolha entre liberdade e escravidão. Como adverte São João Crisóstomo: “nada é mais escravizante que a riqueza quando se torna fim e não meio”. A crítica de Jesus, portanto, é estrutural, não meramente ética. Ele toca a raiz da alienação humana: o desejo desordenado de possuir como forma de garantir a própria existência — desejo este que se converte em sistema social, ideologia e mercado.

Do ponto de vista exegético, o texto está situado no coração do Sermão da Montanha — o manifesto do Reino. Jesus ali não oferece conselhos morais avulsos, mas delineia um ethos escatológico: uma forma de viver desde já a realidade do Reino vindouro. A estrutura do discurso progride com intencionalidade pedagógica: começa com o alerta contra o duplo senhorio (v. 24), convida à contemplação da criação (vv. 26-30) e culmina no chamado radical à busca do Reino (v. 33). A repetição do verbo “não vos preocupeis” (merimnáo, em grego) funciona como refrão que desconstrói a ansiedade como modo de ser e revela uma espiritualidade alternativa, fundada na confiança radical.

Do ponto de vista hermenêutico, essa confiança não é ingenuidade, mas resultado de uma antropologia elevada. O ser humano, segundo a tradição bíblica, é mais que consumidor — é imagem e semelhança de Deus (Gn 1,26). O valor da vida não se mede por bens acumulados (cf. Lc 12,15). A criação é sacramento da providência, como sugerem os lírios do campo e as aves do céu. O olhar que Jesus propõe é um olhar contemplativo, que vê na natureza o testemunho da fidelidade divina. Como escreveu São Gregório de Nissa: “quem conhece a si mesmo contempla a Deus também nas criaturas”.

Antropologicamente, a ansiedade descrita por Jesus é mais que um distúrbio psicológico. É uma doença espiritual enraizada em uma cultura que nega o limite, idolatra o futuro e exige autossuficiência. Na lógica neoliberal contemporânea, a ansiedade se torna virtude produtiva: sujeitos ansiosos rendem mais, consomem mais, obedecem mais. A promessa de segurança vendida pelos mercados — por meio de seguros, previdências, investimentos — é, muitas vezes, máscara de um sistema que explora a insegurança para lucrar com ela. O "espírito do capitalismo", como dizia Max Weber, se nutre da ansiedade produtiva. E é contra esse espírito que o Espírito de Deus se ergue.

Jesus, ao dizer “basta a cada dia o seu mal” (Mt 6,34), está propondo uma revolução temporal. Ele nos chama a viver o presente, a redescobrir a sacramentalidade do agora. Aqui há um eco da filosofia de Kierkegaard, que via na angústia a vertigem da liberdade: somos sufocados não pelos fatos, mas pela multiplicidade de possibilidades que tentamos controlar. Confiar em Deus é, portanto, um ato de libertação interior que tem consequências externas: altera nossas relações, nossa economia, nosso modo de habitar o mundo.

É preciso lembrar: Jesus não elogia a pobreza como fatalismo, mas denuncia a riqueza idolatrada como violência. Seu discurso está em consonância com os profetas como Amós e Isaías, que denunciaram as elites que oprimiam os pobres enquanto festejavam nos palácios (cf. Am 6,1-6; Is 5,8). Está também em profunda harmonia com os Padres da Igreja: São Basílio Magno questionava: “Como ousas chamar de teu o que foi dado para todos?” Santo Ambrósio afirmava: “A terra foi feita para todos, mas poucos a tomaram para si”. A espiritualidade cristã verdadeira é incompatível com a acumulação injusta e o desprezo pelos pequenos.

Hoje, essa incompatibilidade exige urgência profética diante da ascensão da extrema direita, que, em nome de um pseudocristianismo de valores, abençoa armas, exclui os estrangeiros e justifica a desigualdade. Não há nada de evangélico nisso. O nacionalismo excludente, o armamentismo, o racismo estrutural e a fobia ao diferente são pecados sociais que ferem o corpo de Cristo. Jesus foi perseguido por desestabilizar as estruturas religiosas e políticas do seu tempo; seria hoje perseguido pelos mesmos que dizem segui-lo enquanto promovem a exclusão.



O clericalismo, por sua vez, é o braço religioso desse sistema. Quando a Igreja se fecha em si mesma, quando seus ministros se comportam como príncipes e não como servidores, quando transformam a liturgia em um espetáculo emocional e sentimentalista, ela deixa de ser celebração da vida, e o dirigente se reduz a um mestre de cerimônias, um popstar. Deixa de ser Pastor com "P" de povo e se torna artista, influenciador ou qualquer outra coisa — menos ministro do sagrado.

A fé celebrada no altar perde a mística da confiança, a verdadeira autoridade, que, como lembra Santo Inácio de Antioquia, “é aquela que se abaixa para lavar os pés”. A fé cristã não é obediência cega, mas seguimento livre e amoroso de Cristo, que nos chama a discernir os sinais dos tempos e a denunciar os ídolos de cada época.

O Magistério da Igreja, em sua melhor expressão, confirma essa leitura. O Concílio Vaticano II, na Gaudium et Spes, afirma que a Igreja está inserida no mundo e sofre com ele. O Papa Francisco, especialmente em Evangelii Gaudium e Laudato Si’, denuncia a “globalização da indiferença” e a “ditadura da economia sem rosto”. Ele nos convida a uma ecologia integral que é, ao mesmo tempo, cuidado com a Terra, com os pobres e com a alma humana. O apelo de Jesus para olhar os lírios do campo é também uma convocação a resistir ao paradigma tecnocrático que devasta o planeta e desumaniza a vida.

A confiança, neste contexto, torna-se profecia. Não é alienação, mas compromisso. Não é passividade, mas coragem. É a virtude dos que ousam viver contra a corrente. Dos que se recusam a vender a alma por estabilidade. Dos que preferem a liberdade dos filhos à segurança dos escravos. Dos que vivem a bem-aventurança da partilha e da sobriedade, mesmo sendo considerados tolos por um mundo que valoriza o acúmulo e o status.

Viver assim é escandaloso. E é por isso que salva. Como escreveu Paulo aos coríntios: “a loucura de Deus é mais sábia do que os homens” (1Cor 1,25). A comunidade primitiva entendeu isso: vendiam seus bens, partilhavam o pão, oravam juntos (cf. At 2,42-47). Era um escândalo para Roma, onde o valor supremo era o poder. É um escândalo para o mundo de hoje, onde o valor supremo é o lucro.

O convite permanece: buscar primeiro o Reino e a sua justiça. Isso significa escolher a gratuidade sobre o cálculo, a relação sobre a competição, a esperança sobre o medo. Significa confiar no Deus que alimenta os pássaros, veste os lírios e conhece cada fio de nosso cabelo. Confiar nesse Deus é dizer ‘não’ ao medo e ‘sim’ à liberdade; é reconhecer que o agora é tempo de graça e que o Reino já pulsa no cotidiano dos que resistem com fé, partilham com coragem e esperam com justiça.

  • E a pergunta se impõe: a quem temos servido? 
  • O que guia nossas escolhas? 
  • Em que ou em quem temos confiado?

É tempo de conversão. É tempo de dizer, como o salmista: “Só em Deus repousa minha alma, dele vem minha salvação” (Sl 62,2).

Esse repouso é revolucionário. É o descanso dos que já não temem o amanhã, porque sabem que o hoje é dom. É o descanso dos que vivem o Reino aqui e agora, como fermento, como semente, como luz.

DNonato - Teólogo do cotidiano 


quinta-feira, 19 de junho de 2025

Um breve olhar sobre Mateus 6,19-23


“Não acumuleis para vós tesouros na terra...” (Mateus 6,19).

Palavra direta, cortante, luminosa, mas que, em tempos de confusão entre fé e ideologia, se torna ainda mais necessária. Jesus, o Cristo de Deus, não é apolítico nem neutro: Ele confronta estruturas, derruba pretensões, desmascara aparências. Seu Evangelho jamais se acomodou ao poder opressor, nem ao acúmulo de privilégios, nem à sacralização da desigualdade. Ao contrário: a Boa Nova é um golpe na lógica dos impérios, antigos e modernos, seculares ou religiosos.

O ensinamento de Mateus 6,19-23, proclamado na 6ª-feira da 11ª semana do Tempo Comum, é um chamado à conversão do olhar, do desejo, do coração. Mas também é denúncia profética contra toda forma de idolatria: seja do dinheiro, da religião corrompida ou da política messiânica. Ao dizer “onde estiver o teu tesouro, aí estará também o teu coração” (v. 21), Jesus revela que o que acumulamos, seja capital, prestígio, influência ou poder religioso,  define quem somos. E se o nosso “tesouro” é o poder político, o domínio sobre os corpos, o culto à violência, então o coração já está nas trevas. Por isso, Ele alerta: “se teu olho for mau, todo o teu corpo estará em trevas” (v. 23).

Nesse contexto, a extrema-direita contemporânea, travestida de guardiã da fé e da moral, propaga um cristianismo desfigurado: fundamentado na força, na exclusão, na meritocracia e na violência — simbólica e real,  contra pobres, mulheres, negros, indígenas, migrantes e dissidentes. Essa ideologia profana o Evangelho quando reduz Jesus a um mascote nacionalista, quando transforma o crucificado em emblema de uma guerra cultural, e a cruz em arma ideológica. Mas Jesus não anda armado, não cultiva o ódio, não incita o medo. Ele é o Cordeiro que se oferece, não o leão que devora. Ele é o servo que lava os pés, não o tirano que impõe seu nome com gritos e bandeiras. 

Como pode alguém, à luz do Evangelho, defender um sistema que acumula riquezas nas mãos de poucos enquanto milhões passam fome? 

Como pode um coração que se diz cristão aclamar governos que cortam direitos, que celebram a tortura, que negam a justiça social, que insultam os pobres, que armam a população e desprezam os refugiados? Tudo isso é o “olho mau” de que fala o Evangelho: a consciência cega pela ideologia, a fé corrompida por interesses terrenos.

Do mesmo modo, cresce entre nós o veneno da teologia da prosperidade, um escândalo contra o Evangelho e uma perversão do coração da fé cristã. Ao transformar Deus em um banqueiro celeste e a fé em moeda de troca, ela trai o Cristo Crucificado, que “não tinha onde reclinar a cabeça” (Mt 8,20) e nos chama a segui-lo no caminho da cruz, não do luxo. Essa falsa teologia instrumentaliza a esperança dos pobres para justificar a cobiça dos ricos, convertendo o Reino de Deus em mercado e o altar em vitrine. Paulo advertiu com veemência: “Os que querem enriquecer caem em tentação e em muitos desejos insensatos e perniciosos” (1Tm 6,9). Já Tiago clama contra os que acumulam riquezas injustas: “O salário dos trabalhadores que ceifaram os vossos campos e que foi retido com fraude está clamando” (Tg 5,4). Não há lugar no Evangelho para um messianismo capitalista, nem para uma espiritualidade que mede bênção por extrato bancário. A teologia da prosperidade serve a Mammon, não a Deus (Mt 6,24), pois troca a cruz pela conta corrente, o discipulado pela autopromoção, a bem-aventurança dos pobres (Lc 6,20) pela idolatria da riqueza. Ela é o “olho mau” que obscurece a fé, cegando consciências e endurecendo corações. Uma Igreja que vende milagres e promete sucesso financeiro em nome de Jesus já se prostituiu com os ídolos deste mundo. Como escreveu o profeta Jeremias, “desde o menor até o maior, todos se entregam à ganância; desde o profeta até o sacerdote, todos praticam a mentira” (Jr 6,13). Quando o lucro se torna doutrina e o altar vira balcão, já não há profecia — só comércio travestido de salvação.

Além dessas deturpações, e não menos grave, é o clericalismo, a doença da alma eclesial que transforma o ministério em privilégio, o altar em trono, o Evangelho em rito sem alma. Clericalismo é a tentação constante de uma Igreja que se esquece de seu Senhor Servo para adotar a postura de senhor feudal. É o acúmulo da autoridade como posse privada, é o abuso de poder travestido de tradição, é a centralização e o silenciamento dos carismas leigos, especialmente das mulheres. Jesus não fundou uma casta sagrada: Ele lavou os pés dos discípulos (Jo 13,14-15), proibiu títulos hierárquicos (Mt 23,8-10) e disse: “quem quiser ser o primeiro, seja o servo de todos” (Mc 10,44). O clericalismo trai essa lógica. É o olho mau que obscurece a Igreja. Quando bispos, padres e leigos clericalizados se aliam à extrema-direita, manipulam o Evangelho, negam o Concílio Vaticano II, desprezam os pobres e abafam a profecia, estão servindo a Mammon, e não a Deus (Mt 6,24).

A exegese deste texto nos mostra que o “tesouro” (do grego thēsauros) é tudo aquilo a que damos valor absoluto. Quando esse tesouro é o prestígio social, o controle eclesiástico, a adesão política inquestionável, já nos desviamos do Reino. A Palavra de Deus nos adverte que “não podeis servir a dois senhores” (Mt 6,24). Ou seguimos o Crucificado, ou seguimos César. Ou carregamos a cruz por amor, ou impomos a cruz como arma de poder. Os paralelos bíblicos reforçam esse juízo. Amós denuncia os que “se deitam em camas de marfim” e “não se afligem com a ruína de José” (Am 6,4-6). Isaías proclama: “Ai dos que fazem decretos iníquos... para negar justiça aos pobres e despojar os humildes” (Is 10,1-2). Jesus, em Lucas 16, narra a história do rico que se banqueteava enquanto o pobre Lázaro morria à porta. Ele não foi condenado por ser rico, mas por ser cego. O mesmo “olho mau” de Mateus 6. O mesmo olhar escurecido que hoje defende políticas iníquas, sacrifica o povo em nome de uma falsa segurança e faz do templo um lugar de prestígio em vez de serviço.

A crítica à extrema-direita, à teologia da prosperidade e ao clericalismo, portanto, não é ideológica: é evangélica. É fidelidade ao Cristo pobre, manso e justo. É compromisso com a Palavra que liberta. É coerência com o coração de Deus, que “resiste aos soberbos e dá graça aos humildes” (Tg 4,6).

Como alertou São João Crisóstomo: “Não compartilhar com os pobres é roubá-los e tirar-lhes a vida. Os bens que temos não são nossos, mas deles.”

Uma Igreja fiel ao Evangelho é profética, não bajuladora; é servidora, não dominadora; é sinal do Reino, não correia de transmissão do poder terreno.

O tesouro do cristão não está no templo luxuoso, nem no respaldo político, nem na aprovação dos poderosos. Está na cruz vivida, na partilha real, na luta por justiça, na esperança concreta dos pobres. Como disse Paulo: “Já não sou eu quem vive, é Cristo que vive em mim” (Gl 2,20). 

E Cristo não vive em quem serve ao dinheiro, ao clericalismo ou à violência de Estado. Vive nos olhos puros dos que veem o outro como irmão, nos corpos cansados dos que lutam pela vida, nos corações quebrantados dos que confiam na misericórdia. 

Essa palavra de Jesus denuncia não apenas o acúmulo de riquezas materiais, mas também a busca insaciável por poder, status e controle dentro da própria Igreja. Hoje, há bispos que mais parecem CEOs, padres que agem como gerentes administrativos e diáconos que, em vez de servidores da Palavra e da caridade, se tornam fiscais e corretores de templo. Não são raros os casos em que funcionários eclesiásticos, para proteger interesses institucionais, são capazes até de mentir em juízo ou perseguir irmãos e irmãs em Cristo. Quando o coração dos ministros se fixa na instituição em vez do Reino, quando acumulam cargos em vez de servir, a luz que deveria brilhar em seus olhos se torna escuridão, e “quão grandes são essas trevas” (Mt 6,23). O Evangelho de Jesus não legitima estruturas opressoras nem privilégios clericais: ele convoca à conversão, ao esvaziamento e à fidelidade ao Cristo pobre e crucificado.

Porque onde está o teu tesouro, seja ele o Evangelho ou o poder  ali estará também teu coração. E do coração, disse Jesus, procedem todas as coisas.

Que nosso coração esteja, pois, no Reino e não no trono. Que a Igreja de Jesus volte a ser tenda entre os pobres, casa para os feridos e semente do Reino. Não queremos tronos, queremos serviço. Não buscamos poder, mas compaixão. Não marchamos com os impérios, mas com os crucificados da história. Porque “onde está o Espírito do Senhor, aí está a liberdade” (2Cor 3,17).

 Amém.



DNonato – Teólogo do Cotidiano


quarta-feira, 18 de junho de 2025

Um breve olhar sobre Lucas 9,11b-17 - Corpus Christi: a Eucaristia que se faz compromisso

 

Celebrar a Solenidade de Corpus Christi é muito mais do que confeitar ruas com tapetes coloridos por onde passa o Corpo do Senhor em ostensório.
  Já  comentamos  no texto: para  transmitirr  ao mundo no ano 2012  sobre a origem  desta festa  e também  já  fizemos um vídeo  sobre  essa importante  celebração   da Igreja  Católica 
 Celebrar  esse  momento é mergulhar no coração do Evangelho, onde o pão que se parte revela o próprio Cristo que se dá. A beleza da festa só encontra sentido quando a forma se alinha com o conteúdo, quando a arte popular reflete uma fé encarnada na vida concreta, nas dores e esperanças do povo. O Evangelho de Lucas (9,11b-17) nos coloca diante de uma cena que é ao mesmo tempo denúncia e anúncio: o povo tem fome, os discípulos querem dispensá-lo, mas Jesus os desafia com firmeza: “Dai-lhes vós mesmos de comer”.

Essa ordem de Jesus desestabiliza a lógica do comodismo. Ela é uma convocação à responsabilidade eclesial e pessoal. Jesus, que acabara de falar do Reino e de curar os doentes, não faz mágica para alimentar a multidão — convida à partilha. Os cinco pães e dois peixes, aparentemente insuficientes, tornam-se abundantes nas mãos daquele que não despreza o pouco oferecido com fé. Os doze cestos cheios que sobram falam de um Deus que não age por escassez, mas por superabundância da graça. A partilha é milagre quando brota da confiança e da solidariedade. A lógica do Reino não é a da acumulação, mas a do dom. Como dirá o profeta Isaías, no capítulo 55, o convite de Deus é para que todos venham à água e comam, mesmo sem dinheiro — porque a graça não é mercadoria, é gratuidade.

É importante perceber os símbolos e números presentes no texto. 

  • Os cinco pães aludem à Torá, fonte da vida e sabedoria de Israel
  •  Os dois peixes apontam para a totalidade da criação, o humano em sua integralidade. 
  • Os doze cestos que sobram remetem às doze tribos, ou seja, ninguém está excluído da mesa do Reino.

 Essa multiplicação não é apenas de alimentos, mas de sentido, de comunhão, de esperança. É a pré-figuração da Eucaristia, como nos lembrará Paulo ao narrar: “Todas as vezes que comerdes este pão e beberdes este cálice, anunciais a morte do Senhor, até que Ele venha” (1Cor 11,26). É o memorial do Cristo que se entrega, mas também da comunidade que se compromete. Por isso Santo Irineu dizia: “Nossa doutrina está de acordo com a Eucaristia, e a Eucaristia, por sua vez, confirma nossa doutrina”.

Essa cena ecoa o Banquete Messiânico prometido por Isaías: “O Senhor dos Exércitos dará neste monte, para todos os povos, um banquete de pratos suculentos, um banquete de vinhos refinados” (Is 25,6). A partilha não é apenas gesto ético, é sinal escatológico — antecipa a plenitude do Reino, onde não haverá mais fome nem lágrimas.

No contexto atual, a fome volta a ser um grito que atravessa nossas ruas, silenciado por discursos religiosos vazios e por líderes que abençoam o poder enquanto desprezam os pobres. Segundo a Rede PENSSAN, mais de 33 milhões de pessoas enfrentam a fome no Brasil. E não é por falta de alimentos, mas por excesso de injustiça, corrupção, concentração de renda e desprezo pelas políticas públicas. O pão está na mesa dos ricos, mas falta nos lares de milhões. E o milagre da multiplicação não virá do céu — ele começa quando rompemos o ciclo do egoísmo. Isaías já alertava que o jejum verdadeiro consiste em “partilhar o pão com o faminto, acolher os pobres sem abrigo, vestir o nu” (Is 58,6-7). E também o profeta Amós, com palavras duras, denuncia a religião descolada da justiça: “Odeio e desprezo as vossas festas, e com vossas assembleias solenes não tenho nenhum prazer. Mas corra o direito como as águas, e a justiça como um ribeiro perene” (Am 5,21.24). Ignorar esse apelo é fazer da religião uma caricatura: um culto que agrada aos homens, mas desagrada a Deus.

Diante dessa realidade, é inaceitável que alguns ministros ordenados — padres e pastores — se contentem em rezar, consagrar e enviar o povo de volta para casa com fome. Tornam-se como os discípulos que queriam dispensar a multidão. Pregam um Cristo espiritualizado e inofensivo, alienado da carne sofredora do povo. A Eucaristia que celebram se torna contraditória: é culto sem compaixão, liturgia sem justiça, fé sem obras (cf. Tg 2,14-17). E como recordava o Papa Bento XVI em Deus Caritas Est (§14), “um cristianismo do culto, sem consequências éticas, é uma caricatura”. O risco de se viver uma fé sem encarnação é o mesmo que Jesus denunciou nos fariseus: “Este povo me honra com os lábios, mas seu coração está longe de mim” (Mt 15,8).

Mas não se trata apenas de crítica. Trata-se de conversão. Porque a verdadeira comunhão só se dá quando nos deixamos tocar pelas feridas do outro. A “fome de Deus”, de que tanto falamos, não se separa da fome de pão, de dignidade, de reconhecimento. Há uma profunda ligação entre o espiritual e o material, entre o culto e a vida. A antropologia nos ensina que o comer é um gesto de pertencimento, um elo entre os corpos e as culturas. A psicologia social fala em solidariedade afetiva: uma empatia ativa que rompe o isolamento e recria vínculos. E é exatamente por isso que Jesus escolhe o pão — simples, cotidiano — para se tornar presença permanente no meio de nós. Como dizia São João Paulo II, “o cristianismo é a religião da encarnação”, e não há Eucaristia autêntica onde o corpo do irmão é ignorado.

A psicologia também nos ajuda a compreender que a fome, em suas muitas formas, provoca angústia, desorientação, apatia. A fome não é só ausência de nutrientes — é ausência de sentido, de esperança, de vínculo. E quando falta pão, falta também confiança. Por isso, alimentar alguém não é apenas um ato de caridade: é um gesto de cura, é devolver ao outro a certeza de que ele importa. É dar à pessoa o que nenhuma doutrina sozinha pode dar: dignidade. A Eucaristia, nesse sentido, torna-se sacramento terapêutico — cura a solidão, a indiferença, o abandono. Ela não é prêmio para os perfeitos, mas remédio e sustento para os fracos, como bem frisou o Papa Francisco.

Na Bíblia, há outras multiplicações — como as narradas em Mateus 15 e Marcos 8 — mas todas apontam para o mesmo horizonte: o Reino de Deus se manifesta quando há partilha. E em todas elas, a iniciativa de Jesus contrasta com a inércia dos discípulos. No deserto, Deus alimentou o povo com o maná (Ex 16), mas o fez como ensaio para que aprendessem a confiar. No livro de Reis, Eliseu multiplica pães para cem homens (2Rs 4,42-44), sinal de que Deus age por meio de seus profetas. E hoje, quem serão os profetas que romperão o ciclo da indiferença? Onde estão os que anunciam e vivem a lógica do Reino, desafiando os mecanismos da exclusão?

Os documentos da Igreja são claros. O Concílio Vaticano II, na Lumen Gentium, afirma que “a Eucaristia é fonte e cume de toda a vida cristã” (LG 11), o que significa que tudo converge para ela, e tudo deve dela derivar. E o Papa Francisco, na Evangelii Gaudium, recorda que “o culto separado da promoção da justiça é inaceitável” (EG 183). A Eucaristia nos educa para a comunhão, mas também para a missão. Comungar é comprometer-se. É tornar-se pão para os outros. É assumir as dores dos crucificados da história. A Igreja não é fim em si mesma; é sacramento do Reino, e o Reino não é feito de teorias, mas de práticas que libertam. Como bem afirma Amoris Laetitia (§108):

A Eucaristia exige a integração da dimensão social”.

É preciso lembrar, como dizia Santo Agostinho, que “ninguém comunga este corpo sem antes comungar o corpo místico de Cristo” — ou seja, os irmãos. Celebrar Corpus Christi não é apenas carregar Jesus pelas ruas, mas reconhecê-lo nos rostos esquecidos, feridos, invisibilizados. O mesmo Cristo que adoramos no altar está também no chão da vida, esperando que o reconheçamos como Ele mesmo nos alertou: “Tive fome e não me destes de comer...” (Mt 25,42). A procissão verdadeira é a que continua depois da missa, no cuidado com os que caíram à beira do caminho. É a liturgia que se estende nas calçadas, nas filas do hospital, nas periferias, nos centros de acolhida. É a Igreja em saída, que não teme se sujar nas ruas do mundo.

Ao final, o apelo de Jesus ecoa como um grito que não pode ser silenciado: “Dai-lhes vós mesmos de comer.” É um imperativo que não admite terceirização, nem desculpas, nem adiamentos. Não haverá milagre enquanto o pão estiver trancado em nossos celeiros, enquanto a fé for um discurso sem prática, enquanto a Igreja for um refúgio para os acomodados e não um abrigo para os necessitados.

Corpus Christi nos lembra que o milagre é possível. Mas ele começa quando abrimos as mãos, o coração, os olhos. Quando deixamos de nos esconder atrás da religiosidade e assumimos o Evangelho como estilo de vida. Quando, ao partilhar o pão, nos tornamos nós mesmos Eucaristia viva. Só assim a festa fará sentido. Só assim a procissão será autêntica. Só assim a Igreja será fiel ao seu Senhor.

DNonato - Teólogo do Cotidiano


terça-feira, 17 de junho de 2025

Um breve olhar sobre Mateus 6,1-6.16-18

 



Quando Mateus 6,1-6.16-18 ressoa em nossos ouvidos,  na liturgia da 4ª-feira de cinzas e na 4ª-feira  dz 11ª semana do Tempo Comum,  é uma palavra afiada como espada (Hb 4,12) nos confronta. Jesus não oferece um mero conselho moral; ele lança uma denúncia Quando Jesus nos confronta nesse  evangelho. Ele não oferece um mero conselho moral; ele lança uma denúncia frontal contra um sistema religioso corrompido pela vaidade e o desejo de reconhecimento. 
Este texto, cerne ético do Sermão da Montanha, anuncia o Reino de Deus como contracultura, um caminho de justiça superior (cf. Mt 5,20), rompendo com uma religiosidade fortemente institucionalizada onde práticas como o jejum, a oração e a esmola haviam se tornado ferramentas de distinção social e autoexaltação. A crítica de Jesus, portanto, é profundamente enraizada numa realidade concreta: a religião usada como instrumento de prestígio e poder.

A palavra "hipócrita", no grego original (hypokritēs), significava literalmente “ator”, alguém que representa um papel. O uso desse termo não é inocente, pois Jesus denuncia uma espiritualidade teatral, onde o altar vira palco e a fé é usada como maquiagem para encobrir estruturas de dominação e conveniência pessoal. Essa mesma denúncia ecoa nos profetas: Isaías 1,13-17 rejeita os sacrifícios de mãos sujas de sangue; Amós 5,21-24 repudia os cultos vazios sem justiça; e Oséias 6,6 nos recorda que Deus prefere a misericórdia ao ritual. O problema não são as práticas, mas as intenções corrompidas. A oração verdadeira é silenciosa, o jejum autêntico é discreto, e a esmola legítima é secreta — porque o Pai “vê o que está oculto” (Mt 6,4.6.18).

Essa crítica de Jesus, tão particular ao seu contexto, ressoa em uma verdade universal. Afinal, do ponto de vista antropológico e histórico, todas as civilizações desenvolveram ritos que expressam relação com o sagrado. O jejum, por exemplo, já era praticado em contextos mesopotâmicos, egípcios e greco-romanos como forma de purificação, luto ou preparação espiritual. 

  • Entre os povos indígenas do Brasil, o jejum aparece em contextos iniciáticos, como preparação para rituais de cura, escuta do espírito ou contato com os encantados. A oração, nesses contextos, não é discurso, mas relação cósmica — diálogo com a natureza, com os ancestrais, com os mistérios. A esmola, por sua vez, se manifesta em formas comunitárias de partilha, em que o bem coletivo supera o individual.
  • As religiões de matriz afro-brasileira nos oferecem outro exemplo vigoroso de autenticidade: a oração é canto, dança, corpo que se doa. O jejum se dá nas restrições alimentares ligadas ao orixá ou ao processo ritual. A caridade, o axé que circula, é força de vida compartilhada. Essas práticas são vividas com reverência e verdade, sem a pretensão de parecer mais espirituais que outros. 
  • No judaísmo, de onde vêm as práticas que Jesus menciona, oração, jejum e esmola são parte inseparável da halachá, a caminhada do justo. O jejum de Yom Kippur é arrependimento profundo, a oração é mergulho na Palavra, e a tzedaká é justiça social. 
  • No Islã, o Ramadã é um grito coletivo de sobriedade e compaixão — jejum diário, orações comunitárias e caridade obrigatória.
  •  Nas religiões orientais, como o budismo e o hinduísmo, o jejum é disciplina do desapego, a oração é meditação, e a generosidade é um dos caminhos para a iluminação.

Contudo, a sociologia da religião já mostrou — desde Durkheim a Bourdieu — que a fé pode ser tanto instrumento de libertação quanto de dominação. No Brasil contemporâneo, vemos essa fé sequestrada por lideranças que a utilizam como capital político. A extrema-direita brasileira invadiu o sagrado: jejuns manipulados por políticos corruptos, orações nas redes usadas como marketing de guerra cultural, e caridades exibidas com câmeras na mão. O nome de Jesus é invocado não para salvar, mas para excluir. Transformaram o altar em palanque e o Evangelho em doutrina de ódio. Essa fé não liberta; ela oprime, revelando-se a religião de Caifás, não a de Jesus.

A psicologia, por sua vez, nos ajuda a compreender esse narcisismo religioso. O ego que busca aplauso se traveste de piedade. O jejum é usado para autopunição neurótica ou para exibir força de vontade. A oração vira monólogo do ego com o espelho. A esmola, feita para os likes, é caridade colonizadora. Mas o verdadeiro encontro com Deus desmascara, descentra e transforma. Jung dizia: “Quem olha para fora sonha; quem olha para dentro desperta.” A verdadeira espiritualidade não é estética, mas ética. Ela nos obriga a encarar nossos abismos e os rostos dos que sofrem.

A teologia bíblica — fiel à tradição dos profetas e de Jesus — não pode compactuar com o cristianismo de fachada. A oração cristã nasce da escuta da Palavra e da solidariedade com os crucificados da história. O jejum cristão é recusa concreta aos ídolos do consumo, do egoísmo, da indiferença. A esmola cristã é profecia contra a miséria institucionalizada. O Papa Francisco é contundente ao dizer que "não há verdadeira piedade sem justiça" (EG 186) e que “a fé que não se traduz em defesa dos pobres é ideologia sem alma” (FT 275). O Concílio Vaticano II, em Gaudium et Spes 1, afirma que o sofrimento da humanidade deve ecoar no coração da Igreja. E não há sofrimento maior hoje do que ver o nome de Deus usado para legitimar o racismo, o machismo, a homofobia e a desigualdade.

A filosofia, ademais, nos lembra que a verdade religiosa precisa ser crítica. Paulo Freire nos ensinou que a educação — e a fé — precisam ser libertadoras, não domesticadoras. Nietzsche, apesar de crítico da religião, denunciava a moral de rebanho e a fé sem coragem. Kierkegaard clamava por uma fé que não fosse espetáculo, mas risco existencial. Simone Weil escreveu que “a atenção pura é a forma mais rara e generosa de oração”. Todos esses ecos nos recordam: o Evangelho é convite ao abismo de Deus, não ao conforto do palco.

Em tempos de “culto-show”, de missas que viram apresentações, de padres que se comportam como celebridades e de pastores que vendem bênçãos como produtos, Mateus 6 nos devolve à essência. A fé não precisa de aplausos. Deus não está nos holofotes, mas no quarto fechado, no rosto do pobre, no pão dividido em silêncio. O Pai que vê no oculto não se impressiona com redes sociais, mas com o coração quebrantado. Se nossa religião virou entretenimento, então perdemos o Cristo. Se nossas igrejas se parecem mais com shoppings do que com comunidades de partilha, então é hora de voltar ao deserto.

Que essa palavra nos incomode. Que não sejamos cúmplices da fé domesticada que se vende aos interesses do mercado, do moralismo vazio ou do autoritarismo político. Rasguemos não as vestes, mas o coração (cf. Jl 2,13). Deixemos cair as máscaras piedosas que escondem o orgulho, a indiferença e o desejo de controle. É tempo de conversão verdadeira. É hora de limpar o templo — começando pelo nosso interior. Não há mais espaço para uma religião de aparência, para um cristianismo sem cruz, sem justiça e sem compaixão. A Palavra foi lançada: oração, jejum e esmola — não como performance, mas como a prática encarnada de quem busca o Reino. Voltemos ao Evangelho, retornemos ao silêncio, reencontremos os pobres. A fé que salva é a que se ajoelha diante de Deus e se levanta para servir ao próximo. Sejamos sal da terra e luz do mundo, não aplauso da plateia. A hora é de profecia. E o tempo, é agora.



DNonato — Teólogo do Cotidiano, servo do Evangelho e filho da Igreja.


segunda-feira, 16 de junho de 2025

Um breve olhar sobre Mateus 5,43-48


Texto  proclamado na Liturgia do sábado da 1ª Semana da Quaresma e na terça-feira da 11ª Semana do Tempo Comum – Ano Ímpar (ferial).

Nós, todos os irmãos, acatamos atentamente o que diz o Senhor: «Amai os vossos inimigos, fazei o bem a quem vos odeia». Nosso Senhor Jesus Cristo, cujos passos devemos seguir (cf. 1Pedro 2,21), deu o nome de amigo àquele que O traía (Mateus 26,50) e ofereceu-Se voluntariamente aos que O iam crucificar. Por conseguinte, são nossos amigos todos aqueles que nos infligem injustamente adversidades e angústias, afrontas e ofensas, dores e tormentos, o martírio e a morte. Devemos amá-los profundamente, porque os ferimentos que nos causam nos proporcionarão a vida eterna. O seguimento de Cristo nos exige um algo a mais do que este mundo está acostumado a ver. Ele exige algo que nos distinga, que nos coloque acima da média. Ser cristão é realizar um amor gratuito, sem necessidade de receber recompensas. Isso nos diferencia das demais pessoas. O modelo oferecido por Jesus é Deus Pai que concede o sol sobre justos e injustos, que faz cair a chuva sobre bons e maus (Mateus 5,45). O amor não pode ser seletivo. Não tenhamos medo de viver os valores do Reino apresentados por Jesus a nós em seu Evangelho, pois, como nos lembra o Concílio Vaticano II, a Igreja é “sinal e instrumento da íntima união com Deus e da unidade de todo o gênero humano” (Lumen Gentium, 1).

Este trecho do Sermão da Montanha, onde Jesus não apenas propõe uma nova ética, mas inverte a lógica do mundo, ultrapassa o mandamento antigo — marcado pela lógica retributiva do “olho por olho, dente por dente” (cf. Êxodo 21,24) — com a lógica da graça e da misericórdia. Amar o inimigo é, à luz da antropologia bíblica, um gesto que transcende o instinto tribal e o desejo de vingança, marcas profundas do ser humano ferido. Paulo, na Carta aos Romanos, reforça essa visão dizendo que não devemos retribuir mal por mal, mas vencer o mal com o bem (Romanos 12,17-21). 

Esse ensinamento é uma provocação radical à ordem estabelecida. Vai contra a cultura do ódio disseminada nas redes sociais, contra os discursos de violência promovidos por setores da extrema direita e da religião vazia, que se perdeu em ideologias de exclusão e intolerância. O Evangelho é, hoje mais do que nunca, um grito contra a banalização do inimigo e contra a desumanização do outro. O Papa Francisco, em sua encíclica Fratelli Tutti, adverte para a urgente necessidade do diálogo, da fraternidade e do amor social, como resposta a essa cultura do descarte e da hostilidade.

Pedro escreve: “Cristo padeceu por vós, deixando-vos exemplo para que sigais os seus passos” (1Pedro 2,21). A prática de Jesus, que chama Judas de “amigo” mesmo sabendo de sua traição (Mateus 26,50), é o ápice do amor gratuito e incondicional. Aqui está a diferença cristã: a fé não é performance moralista, mas participação na própria lógica do Reino, onde a misericórdia triunfa sobre o juízo (cf. Tiago 2,13).

O que Cristo propõe não é passividade diante da injustiça, mas resistência ativa: amar o inimigo é um ato de desobediência profética ao ciclo da violência. É por isso que os que causam dor, perseguição e até a morte — como nos tempos dos mártires e dos atuais defensores dos direitos humanos — tornam-se, paradoxalmente, instrumentos de salvação. A cruz não é glorificação do sofrimento, mas a revelação de um amor que não se dobra ao mal (cf. Romanos 8,37-39).

O Pai faz nascer o sol sobre bons e maus, envia chuva sobre justos e injustos (Mateus 5,45). Aqui, Jesus critica diretamente a religiosidade exclusivista que se julga merecedora do favor divino. Essa é uma denúncia clara ao clericalismo que seleciona quem “merece” o altar e quem deve ficar à margem — sejam mulheres, pobres, LGBTQIA+, ou os que questionam estruturas de poder dentro da Igreja. Essa postura reflete-se também nos grupos que, usando uma linguagem pseudo-cristã, promovem discursos de ódio contra minorias, negam o sofrimento dos pobres, zombam da empatia e da justiça social. A extrema-direita religiosa, quando absolutiza a doutrina e silencia a compaixão, nega o próprio Evangelho.

O amor aos inimigos, longe de ser submissão, é ato de rebeldia. É um “não” ao ciclo de ódio que alimenta guerras, exclusões, perseguições políticas e religiosas. É pedagógico e transformador. A educação cristã, inspirada pela pedagogia de Jesus, não forma apenas obedientes, mas seres capazes de amar gratuitamente, até aqueles que nos fazem mal. Ao propor esse amor sem fronteiras, Jesus planta no coração humano uma nova possibilidade: romper com a lógica meritocrática e assumir a gratuidade como caminho de santidade. Isso é profundamente escandaloso num mundo que valoriza o mérito, a punição, o controle e o poder. A perfeição cristã, como nos ensina o próprio Senhor, não é moralismo rígido, mas maturidade no amor: “Sede perfeitos, como vosso Pai celeste é perfeito” (Mateus 5,48). É viver além do esperado, além do razoável, além do merecido. É, como escreveu o teólogo Dietrich Bonhoeffer, “seguir Jesus mesmo quando isso nos leva à contradição e ao sofrimento”. Na sociedade da polarização, onde se grita e se cancela ao invés de dialogar, o cristão é chamado a ser sinal de reconciliação. Isso não significa aceitar injustiças, mas superá-las com a força revolucionária do amor que transforma o mundo.

A santidade não se manifesta em templos adornados por vaidades clericais ou dogmas vazios de compaixão, mas em cada gesto concreto de quem se recusa a odiar, mesmo sendo odiado (cf. 1 João 3,18).

Oração: 

Senhor, ensina-nos a amar como Tu amas. Livra-nos da armadilha da indiferença e do ódio travestido de justiça. Que possamos viver o Evangelho com coragem profética, mesmo quando isso nos custar o conforto, o prestígio ou a segurança. Amém.




DNonato - Teólogo do cotidiano