quarta-feira, 13 de agosto de 2025

Um breve olhar sobre Mateus 18,21–19,1

O Evangelho de Mateus 18,21–19,1, proclamado na quinta-feira da 19ª semana do Tempo Comum no Ano Ímpar, apresenta o diálogo em que Pedro pergunta a Jesus: “Senhor, quantas vezes devo perdoar, se meu irmão pecar contra mim? Até sete vezes?” (Mt 18,21). Jesus, superando o cálculo limitado, responde: “Não te digo até sete vezes, mas até setenta vezes sete” (v. 22), número que, na tradição bíblica, indica plenitude e não um limite matemático. É o mesmo símbolo presente em Gênesis 4,24, onde Lamec, expressão da vingança desmedida, se orgulha de vingar-se “setenta vezes sete”; Jesus inverte o paradigma e transforma a lógica da violência na lógica da misericórdia.

A liturgia dominical do 24º Domingo do Tempo Comum, Ano A, retoma esta mesma passagem, mas, na quinta-feira da 19ª semana, a leitura se prolonga até Mateus 19,1, que registra a mudança geográfica de Jesus da Galileia para a Judeia, rumo a Jerusalém — movimento que dá ao ensinamento sobre o perdão um tom ainda mais dramático, pois o Mestre caminha para entregar a própria vida como perdão vivo (cf. Lc 23,34). Este deslocamento de Jesus também indica que a mensagem do perdão não é apenas pessoal, mas comunitária e universal, destinada a atravessar fronteiras geográficas, culturais e históricas.

A parábola do servo impiedoso (Mt 18,23-35) mostra que o perdão recebido de Deus é infinitamente maior do que qualquer ofensa que alguém nos possa fazer. A dívida de dez mil talentos equivale a algo impagável, ecoando a condição humana diante do pecado (cf. Sl 130,3: “Se levardes em conta as nossas faltas, Senhor, quem poderá subsistir?”). O perdão concedido pelo rei simboliza a graça gratuita de Deus (cf. Ef 2,8-9), mas o servo, ao não perdoar o companheiro por uma dívida mínima, revela o coração endurecido que recusa viver segundo a lógica do Reino. Lucas 17,3-4 apresenta a mesma exigência de perdoar sempre, e Marcos 11,25 reforça que o perdão é condição para a própria oração ser ouvida. Jesus liga a reconciliação à liturgia: “Se fores ao altar e te lembrares que teu irmão tem algo contra ti, deixa a oferta... e vai reconciliar-te” (Mt 5,23-24), ensinando que a religião sem perdão é idolatria de si mesmo. Lucas 6,37 reforça: “Perdoai e sereis perdoados; não julgueis e não sereis julgados”, conectando a misericórdia com a justiça plena.

O Antigo Testamento mostra que o perdão é fundamento da vida em comunidade e da harmonia social. José perdoa seus irmãos mesmo depois de terem vendido-no como escravo (Gn 50,15-21), mostrando que a reconciliação restaura famílias e sociedades. Provérbios 10,12 adverte: “O ódio provoca contendas, mas o amor cobre todos os pecados.” Isaías 1,18 convida: “Vinde, e discutamos, diz o Senhor; ainda que os vossos pecados sejam como escarlate, eles se tornarão brancos como a neve.” O Salmo 103,8-14 reforça que a misericórdia divina é a força que renova a história humana: “O Senhor é compassivo e misericordioso, tardio em irar-se e rico em amor.” Eclesiástico 27,33–28,9 sublinha: “Quem perdoa o próximo promove a paz; quem guarda rancor, traz discórdia.”

No Novo Testamento, a radicalidade do perdão é central: o filho pródigo (Lc 15,11-32) revela o perdão como acolhimento que devolve dignidade e reintegra na família; Jesus, na cruz, mesmo diante da violência extrema, intercede: “Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem” (Lc 23,34). Mateus 5,44 desafia ainda mais: “Amai os vossos inimigos e orai pelos que vos perseguem”, mostrando que o perdão é uma força profética capaz de quebrar ciclos de ódio e violência. 

Do ponto de vista histórico e antropológico, no mundo mediterrâneo do século I, a honra e a reciprocidade de ofensas eram reguladas por códigos de vingança. A cultura da retribuição impunha que qualquer injúria fosse respondida com igual intensidade, perpetuando conflitos familiares e sociais. Jesus rompe com esse padrão e propõe uma lógica revolucionária: o perdão como fundamento da vida em comunidade, da confiança social e da reconciliação. Psicologicamente, o rancor aprisiona a mente e o coração, gera ansiedade e prejudica a saúde; perdoar é libertar-se. Sociologicamente, sociedades que cultivam a revanche perpetuam ciclos de violência; comunidades que aprendem a perdoar constroem capital social e confiança. Filosoficamente, o perdão evidencia que a liberdade verdadeira não é a imposição do direito, mas a escolha do bem acima do mal. Teologicamente, ele é participação na vida de Deus: “Sede misericordiosos como vosso Pai é misericordioso” (Lc 6,36).

Aqui se impõe a crítica às distorções da fé. A teologia da prosperidade reduz a vida espiritual a troca e recompensa, tornando o perdão opcional e condicionado a benefícios; a teologia do domínio instrumentaliza a religião para impor poder, esquecendo que Jesus lavou os pés dos discípulos (Jo 13,14-15); o individualismo fecha a pessoa no “eu” que exige direitos mas recusa responsabilidades; a fé como mercadoria transforma até a reconciliação em serviço pago ou espetáculo. O clericalismo, denunciado pelo Papa Francisco, é uma dessas distorções, quando ministros se colocam como donos da graça e não como seus servidores, manipulando o perdão como arma de controle e não como dom.

A patrística nos recorda a radicalidade deste chamado. Santo Agostinho afirma: “Nada é tão exigido pelo Evangelho quanto o perdão mútuo; e nada é tão eficaz para apagar os pecados” (Sermão 114). São João Crisóstomo sublinha que perdoar não é fraqueza, mas imitação de Deus: “Quando perdoas, tornas-te semelhante ao teu Senhor” (Homilias sobre Mateus 61,4). Santo Ambrósio afirma: “Quem não perdoa aos homens não pode receber a misericórdia de Deus.” São João Damasceno completa: “O perdão não anula a justiça, mas a aperfeiçoa no amor.”

São Maximiliano Maria Kolbe, cuja memória hoje celebramos, viveu isso até o fim: no campo de concentração de Auschwitz, ofereceu-se para morrer no lugar de um pai de família condenado. Seu gesto não foi apenas heroísmo humano, mas encarnação do Evangelho do perdão, pois não só deu a vida, mas o fez sem ódio aos algozes, testemunhando que a misericórdia vence o mal (cf. Rm 12,21). São Maximiliano Maria Kolbe escrevia em suas cartas: “Somente o amor cria” e “Não existe felicidade fora do amor.” Ele afirmava ainda: “O ódio não é uma força criadora: a única força criadora é o amor. O mundo não será salvo por engenheiros, mas por santos.” Em São Maximiliano Maria Kolbe, vemos o “setenta vezes sete” tornar-se carne, lembrando que a misericórdia não é teoria, mas vida que se doa e transforma.

Exemplos contemporâneos reforçam esta verdade. Movimentos de reconciliação pós-conflito, testemunhos de vítimas que perdoaram assassinos ou traidores, mostram que o perdão continua a gerar vida onde o ódio parecia definitivo. Assim, somos convidados a viver o perdão não como conceito abstrato, mas como prática diária, transformadora e comunitária.

Ao ouvirmos hoje esta Palavra, somos convocados não a um cálculo de quantas vezes perdoar, mas a uma vida inteira moldada pelo perdão. Perdoar é mais do que esquecer; é lembrar sem rancor, é escolher não devolver o mal recebido. É caminho difícil, impossível sem a graça, mas absolutamente necessário para quem quer seguir Jesus. Como o Mestre, que “amou até o fim” (Jo 13,1), somos chamados a amar até perdoar sempre. E como São Maximiliano Maria Kolbe, somos desafiados a viver um amor tão grande que seja capaz de transformar a própria morte em semente de vida para outros. O perdão cristão não é romântico nem ingênuo. Ele é radical, perigoso e escandaloso para quem vive de lógicas de poder, de acúmulo, de honra ou de vingança. Mas é exatamente por isso que ele é profético: anuncia um mundo onde a última palavra não é do ódio, e sim da misericórdia. Quem o acolhe entra no movimento mesmo de Deus, que “faz nascer o sol sobre bons e maus e faz chover sobre justos e injustos” (Mt 5,45).

DNonato – Teólogo do Cotidiano


terça-feira, 12 de agosto de 2025

Um outro olhar sobre Mateus 18,15-20

O Evangelho de Mateus 18,15-20, proclamado na 4ª-feira da 19ª semana do Tempo Comum do Ano impar   e no 23º Domingo do Tempo Comum do Ano A, nos insere-se no chamado “Discurso Eclesial”, pronunciado por Jesus provavelmente em Cafarnaum, logo após a discussão entre os discípulos sobre quem seria o maior no Reino dos Céus (Mt 18,1). Este não é um código jurídico rígido, mas um itinerário espiritual e pastoral para preservar a comunhão e evitar rupturas que ferem a Igreja enquanto Corpo de Cristo. No contexto histórico-cultural das comunidades cristãs primitivas, espalhadas na periferia do Império Romano, o ensinamento de Jesus respondia a tensões internas, exclusões e ameaças externas. Havia o risco da divisão que poderia enfraquecer a missão evangelizadora e o testemunho público da fé. A exortação de Jesus era, portanto, uma resposta urgente e prática para manter a unidade e a santidade da comunidade.

Jesus, ao retomar o princípio de Deuteronômio 19,15 — “pelo depoimento de duas ou três testemunhas se estabelecerá a causa” — o ressignifica, não como um instrumento de condenação, mas como um caminho de misericórdia. Primeiro, o convite é para falar a sós com o irmão; depois, para envolver dois ou três; por fim, para apresentar a questão à ekklesia — termo grego que significa assembleia convocada, um espaço dinâmico e ativo de discípulos e não uma instituição burocrática rígida.

O verbo grego usado para “repreender” (ἐπιτιμάω) traz a conotação de chamar à conversão, ao ajuste de rota, mais do que uma acusação implacável. A estrutura tripartite do processo é cuidadosamente articulada para evitar injustiças e favorecer a reconciliação. O diálogo pessoal preserva a dignidade e evita expor publicamente a falha; a intervenção de duas ou três testemunhas traz equilíbrio e imparcialidade; e a intervenção comunitária simboliza a responsabilidade da Igreja como corpo de fiéis para manter a unidade. Essa progressão espelha a pedagogia do amor paciente que quer reconstruir e não destruir.

Quando Jesus diz que, se necessário, o irmão “seja para ti como um pagão ou publicano”, não autoriza a exclusão definitiva, mas um recomeço missionário. A palavra grega ethnos (“pagão”) remete a quem está fora da aliança, e “publicano” lembra aqueles marginalizados por colaborarem com Roma. Contudo, Jesus acolheu esses grupos e elogiou a fé da mulher cananeia (Mt 9,10-13; 15,21-28), indicando que esse “excluir” é um convite à conversão e reintegração.

O processo de correção fraterna, longe de ser fechado, é um caminho que impulsiona a comunidade para fora de si mesma, reafirmando sua missão de testemunhar o Reino. A exclusão temporária é sempre um “estado transitório”, uma pausa para conversão e reconciliação.

A promessa: “onde dois ou três estiverem reunidos em meu nome, eu estou no meio deles” é uma afirmação fundamental da presença real de Cristo na comunhão fraterna e reconciliadora. Essa presença não depende do número, mas da qualidade da comunhão e da intenção sincera de seguir Jesus e restaurar relações. A Shekiná judaica, presença divina entre o povo reunido, é retomada como sinal de que Deus habita onde reina a unidade e o perdão. Essa promessa inspira a Igreja a confiar no poder transformador da oração comunitária e do perdão mútuo, fundando sobre essa experiência o anúncio do Reino.

Os paralelos nos Sinóticos reforçam essa pedagogia: Lucas 17,3-4 convoca ao perdão reiterado; Marcos 11,25 vincula o perdão à eficácia da oração; Levítico 19,17 do Antigo Testamento reforça a exigência moral de confrontar o irmão para evitar o cúmplice silêncio que permite o pecado persistir.

Essa pedagogia confronta as distorções modernas da fé: a teologia da prosperidade que transforma a comunhão em espetáculo e negócio; a teologia do domínio que subjuga com discursos autoritários; o individualismo que se exime da responsabilidade comunitária; e a fé-mercadoria que reduz oração a contrato de troca. Também desafia o clericalismo denunciado pelo Papa Francisco, que concentra a correção como prerrogativa exclusiva dos líderes, enquanto toda a comunidade é responsável.

O Papa Francisco insiste no espírito sinodal que deve animar a Igreja hoje, enfatizando que “a responsabilidade pela vida da comunidade é de todos, não só de uns poucos” (Evangelii Gaudium, 32). Santo João Crisóstomo ensina que a correção deve ser sempre temperada pela paciência e caridade, pois “corrigir é um ato de amor que quer a cura e não a punição”.

Gaudium et Spes (n. 27) afirma que “tudo o que se opõe à vida envenena a convivência humana”. Santo Agostinho já ensinava: “Corrigir é amar, calar-se é odiar” (Sermão 82). Santo Ambrósio, refletindo sobre a Igreja, exorta que “a caridade corrige, mas jamais destrói a comunhão”.

No dia  13 de agosto, celebramos Santa Dulce Lopes Pontes a  "Santa Dulce dos Pobres", canonizada em 2019, exemplo vivo deste Evangelho. Quando sua irmã Dulcinha enfrentou uma gravidez de risco, em 1956, Irmã Dulce fez um voto: se a irmã sobrevivesse, dormiria sentada pelo resto da vida, como sinal de gratidão e penitência. Cumpriu-o por 30 anos, até ser convencida pelos médicos a parar, pois sua saúde já estava fragilizada por enfisema pulmonar. A cadeira simples onde dormia está hoje no Memorial Irmã Dulce, em Salvador. Esse gesto encarna João 15,13: “Ninguém tem amor maior do que aquele que dá a vida pelos amigos”. Santa Dulce não corrigia com discursos vazios, mas com gestos concretos que restauravam dignidade. Fundou obras que acolhem milhares de pobres e doentes, sem discriminação, denunciando a fé-espetáculo e proclamando a presença real de Cristo “no meio” daqueles que se reúnem para amar.

A psicologia aponta que a confrontação construtiva nasce da empatia; a antropologia revela que, nas culturas tradicionais, a queda de um membro ameaça o grupo, exigindo reconciliação; a filosofia, de Sócrates a Levinas, lembra que o rosto do outro convoca à responsabilidade ética.

Este Evangelho, iluminado pelo testemunho de Santa Dulce, é antídoto contra a cultura do descarte, como denuncia Fratelli Tutti (n. 215). Ecoa o Salmo 133: “Como é bom e agradável viverem unidos os irmãos! Ali o Senhor concede a bênção e a vida para sempre”.

Corrigir, perdoar, recomeçar: eis o caminho do Reino, vivido com coragem e ternura. Que sejamos, como Santa Dulce, artesãos da paz e da comunhão, porque onde dois ou três estão reunidos em Seu nome, Ele está no meio de nós, sustentando a vida e o amor que permanecem firmes, mesmo quando o corpo cansa e o mundo tenta nos separar.



DNonato – Teólogo do Cotidiano

O Brasil à Venda Com Frete Grátis: O Patriotismo à La Bolsonaros

Enquanto o Brasil tenta defender sua economia e sua democracia, há quem atravesse o continente para oferecer nossa soberania num bandejão de fast food diplomático — e o comprador ainda é pago para levar. Este não é um tropeço qualquer: é a prova de que, no jogo de xadrez geopolítico, temos peças que empurram o próprio rei para o xeque-mate — e ainda distribuem a coroa de presente.

Mais do que um episódio pontual, é a repetição de um velho padrão de subserviência das elites brasileiras. Da carta régia de 1808 ao WhatsApp de 2025, o roteiro é o mesmo: elites locais buscando aprovação do poder estrangeiro enquanto dizem agir pelo bem do país.

Desde o período colonial, essa dinâmica está entranhada em nossa história. A elite colonial sempre resistiu à independência, temendo perder privilégios garantidos pela metrópole portuguesa. Após a independência, no século XIX, foi a vez da submissão à Inglaterra, que ditava as regras econômicas e políticas da jovem nação. A elite brasileira, então, passou a babar por essa potência estrangeira, abrindo mão de soberania para manter seus interesses e o status quo.

A Proclamação da República, em 1889, longe de representar uma ruptura com esse padrão, foi um movimento liderado pelas elites militares e civis que continuaram a preservar interesses estrangeiros e oligárquicos. Mais do que libertar o país, consolidou um sistema que manteve a dependência econômica e política do Brasil em relação a potências externas, especialmente os Estados Unidos e a Inglaterra.

Durante a ditadura militar (1964–1985), o discurso oficial era um tripé supostamente inabalável: “defesa do mundo livre”, “defesa da democracia” e “combate ao comunismo”. Hoje sabemos que tudo isso foi uma fake news — uma cortina de fumaça para encobrir o golpe e a repressão que se seguiram, que violaram direitos, assassinaram e silenciaram vozes democráticas. A história provou que a ditadura não foi defesa da democracia, mas seu sepultamento.

Agora, com Eduardo Bolsonaro, o método é o mesmo,  só trocaram a farda por stories no Instagram.

Na América Latina, o filme é repetido. Em 1954, na Guatemala, Jacobo Árbenz caiu porque contrariou a United Fruit Company. Em 1973, Salvador Allende foi derrubado sob cerco econômico e sabotagem política. E mais recentemente, Cuba e Venezuela sofrem embargos econômicos e tentativas de isolamento político que visam sufocar suas soberanias.

No governo Bolsonaro, a base espacial de Alcântara, localizada no Maranhão — uma das mais estratégicas do mundo devido à sua proximidade com o Equador, que facilita lançamentos com menor gasto de combustível — foi cedida para uso dos Estados Unidos. Essa entrega representa uma grave afronta à soberania nacional, pois permite que uma potência estrangeira controle uma instalação estratégica em nosso território, com potencial impacto militar e comercial.

Sempre com ajuda interna, sempre com um rosto local para legitimar a traição. Eduardo Bolsonaro não é inovador — é só mais um capítulo do manual do entreguista.

Enquanto Eduardo negocia em Washington, o trabalhador brasileiro vê sua fábrica fechando, o pequeno comerciante apertar o cinto e a esperança de dias melhores fugir. 

Para quem serve esse entreguismo?

 Para o povo, certamente não.

Sociologicamente, o bolsonarismo fez do patriotismo um culto familiar. A lealdade não é à Constituição, mas a um sobrenome. Governadores que sonham com a faixa presidencial se calam, com medo de perder a bênção do clã. É o caudilhismo latino-americano, agora com filtro de rede social.

Politicamente, não é “oposição”. É lobby contra o próprio país. Eduardo pressiona o governo Trump para parar o julgamento de Jair por tentativa de golpe e para aprovar uma anistia feita sob medida. Usa tarifas e barreiras comerciais como chantagem. Em países sérios, isso se chama sabotagem. Aqui, ainda há quem aplauda.

Antropologicamente, é teatro. Muita bandeira, muito hino, mas, nos bastidores, a pátria é mercadoria de exportação. É patriotismo de fachada: a plateia canta o refrão enquanto o país é entregue em suaves prestações… ou de graça — e o comprador ainda é pago para levar.

A resposta de Eduardo é a cereja do bolo: diz que não controla a agenda de Bessent (como se alguém acreditasse), mas admite que Trump apresentou “razões para as tarifas” — inclusive suspender o julgamento do pai. Tradução: obedecer ordens de Washington. E já avisou que volta para mais reuniões, com R$ 2 milhões do pai para financiar a missão. Persistente, sim. Patriota, não.

Como dizia Chico Buarque, “Apesar de você, amanhã há de ser outro dia” — mas só se deixarmos o entreguismo de lado.

 Até quando aceitaremos que nossos representantes negociem nossa soberania como mercadoria de feira? 

Quem realmente serve ao Brasil nessa história?

A elite empresarial, que defende a “pauta liberal”, aplaude quando governadores culpam Lula por problemas criados pela extrema direita. Mas se fosse um político de esquerda articulando contra um governo de direita, já teríamos capa de jornal e contagem regressiva para o impeachment. Dois pesos, duas medidas.

A omissão da mídia e de líderes conservadores é cúmplice. Democracias não caem só por golpes: apodrecem por dentro, corroídas por quem acha que o próprio cargo vale mais que o país.

Num mundo multipolar, perder autonomia para interesses externos é retroceder décadas. O Brasil já resistiu a pressões externas e soube dizer não. Merece líderes que entendam que soberania não se negocia. Quem a vende é traidor.

Hoje, defender o Brasil significa exigir que Eduardo Bolsonaro perca o mandato, seja exonerado e responda por crime de lesa-pátria. O cidadão comum pode cobrar isso de seus representantes, apoiar movimentos pela democracia e não se calar diante do entreguismo.

Quem a vende é traidor. E no caso de Eduardo, nem precisa vender: o comprador leva de graça, é pago para isso e ainda recebe em casa com frete grátis.

DNonato - Teólogo do Cotidiano 

segunda-feira, 11 de agosto de 2025

Um breve olhar sobre Mateus 18,1-5.10.12-14

Na liturgia, o trecho de Mateus 18,1-5.10.12-14 é especialmente proposto nas celebrações que enfatizam a humildade e a comunhão fraterna, sobretudo no Tempo Comum, quando a Igreja nos convida a refletir sobre a vida comunitária e o cuidado com os mais frágeis. Com autoridade, Jesus chama os discípulos e a cada um de nós a uma conversão profunda do olhar e do coração: “Quem é o maior no Reino dos Céus?” (Mt 18,1). Ele propõe que nos tornemos “como crianças” (v. 3), introduzindo uma inversão radical dos valores que o mundo, e até muitas vezes a própria Igreja, naturalizam. A verdadeira grandeza está na humildade e na capacidade de se abrir à confiança plena. Quem de nós não precisa reaprender a confiar como uma criança?

Esse chamado à simplicidade e à confiança ressoa poderosamente em Marcos 9,33-37. Lá, Jesus corrige a disputa entre os discípulos sobre quem seria o maior e afirma que “quem quiser ser o primeiro deverá ser o último de todos e servo de todos” (Mc 9,35). Lucas 9,46-48 reforça esta lição, acrescentando que “quem receber uma criança em meu nome, está me recebendo a mim” (Lc 9,48). Diante dessas palavras, cabe refletir: como pode a Igreja acolher o Reino se permanece presa ao clericalismo e ao individualismo?

Essa valorização da humildade e dos pequenos tem raízes profundas no Antigo Testamento. O Salmo 34,19-20 revela que o Senhor cuida dos aflitos e quebrantados de coração, enquanto Isaías 66,2 afirma que Deus se inclina para quem “se humilha e treme à sua palavra”. Jesus, portanto, não está inventando algo novo, mas dá continuidade a essa tradição profética ao destacar o valor dos pequeninos — símbolo dos excluídos e vulneráveis —, lembrando-nos que acolher o menor é acolher o próprio Cristo e, portanto, o Pai (Mt 18,5).

Além disso, a proteção divina sobre os pequeninos, realçada em Mateus 18,10, encontra eco em passagens como o Salmo 91,11-12, onde Deus envia seus anjos para guardar os fiéis, e Provérbios 22,6, que enfatiza a importância da educação e proteção dos pequenos. Esta preocupação se concretiza na parábola da ovelha perdida (Mt 18,12-14), que revela o coração misericordioso de Deus ao abandonar as noventa e nove para buscar a que está perdida — gesto também presente em Lucas 15,3-7. Não se trata apenas de uma bela imagem, mas do caminho real da misericórdia e da justiça que Jesus nos convida a seguir.

Compreender essa dinâmica da confiança e do cuidado nos ajuda a conectar com as descobertas da psicologia, que apontam a importância da dependência positiva. Jeremias 29,11 assegura que Deus tem planos de paz e futuro para nós. Paulo, em Filipenses 4,6-7, nos exorta a não nos inquietarmos, mas a confiar plenamente em Deus, superando medo e ansiedade. Por isso, a simplicidade que Jesus propõe não é ingenuidade, mas esperança fundamentada. É como um sol que rompe a névoa da dúvida. 

Em termos sociais, essa passagem desafia e subverte as estruturas que exploram e excluem. Jesus convoca a comunidade a ser uma nova realidade, onde o poder se traduz em serviço, a liderança se expressa em humildade, e o cuidado com o vulnerável é o critério da verdadeira autoridade (cf. Atos 6,1-7). A Igreja primitiva encarnou essa ética comunitária, rompendo com as lógicas do império e dos privilégios.

Filosoficamente, o convite a ser como criança ecoa a virtude da humildade, considerada caminho para a sabedoria verdadeira (cf. Santo Tomás de Aquino, Suma Teológica, II-II, q.161). Além disso, Provérbios 3,5-6 reforça a confiança em Deus: “Confia no Senhor de todo o teu coração e não te estribes no teu próprio entendimento”. É nesta simplicidade — este campo fértil — que Deus semeia sua esperança.

Diante disso, precisamos denunciar com veemência as falsas linhas teológicas que distorcem o Evangelho, como a teologia da prosperidade, que transforma a fé em negócio e o amor em mercadoria. Jesus alerta: “Não ajunteis para vós tesouros na terra...” (Mt 6,19-20). A fé não é mercadoria; o Reino não se vende; a salvação não tem preço. O individualismo que fragmenta a comunidade e o clericalismo que fomenta privilégios rejeitam a humildade que Jesus exige. Filipenses 2,5-8 nos lembra que Cristo se esvaziou, assumindo a condição de servo; somos chamados a imitá-lo.

O Magistério do Concílio Vaticano II reforça essa visão: a Igreja é povo de Deus, chamado a viver a humildade e o serviço em solidariedade com os mais frágeis. O documento Lumen Gentium afirma que “todo o povo de Deus, mas particularmente os que receberam o ministério sagrado, devem imitar com toda a diligência a humildade de Cristo” (LG 32). A Gaudium et Spes destaca que “a Igreja, unida ao seu divino Fundador pelo vínculo da fé e da caridade, sabe que está especialmente comprometida com os pequeninos, os pobres e os fracos” (GS 24). Neste mesmo espírito, o Papa Francisco insiste na necessidade de uma Igreja pobre para os pobres, que renuncia ao clericalismo e se aproxima do povo com ternura e simplicidade, conforme expõe em Evangelii Gaudium (EG 195-196).

Santo Agostinho, um dos grandes Padres da Igreja, também nos oferece luzes preciosas. Em seus sermões, ele afirma que “a verdadeira grandeza consiste em tornar-se pequeno” (De sermone Domini in monte, 18,3), interpretando o Evangelho como um convite à humildade que abre o coração para Deus e para a fraternidade, sinal da pureza que transforma a comunidade.

Assim, somos desafiados a renunciar a nós mesmos, a romper com o orgulho, a soberba e a lógica da meritocracia e do poder mundano, para abraçar a simplicidade, a confiança e a responsabilidade pelo outro, sobretudo pelo mais vulnerável.

Renuncie ao orgulho, abra seu coração, confie como criança e desarme-se da lógica do poder. Que o Senhor nos conceda aprender com as crianças, deixar-nos desarmar pela simplicidade e pela verdade, e renunciar a nós mesmos para confiar plenamente no amor do Pai que nunca abandona as suas ovelhas perdidas. Só assim, com humildade e coragem, a comunidade eclesial poderá ser verdadeiramente lugar onde o Reino se manifesta: uma casa aberta aos pequenos, um refúgio para os excluídos, um espaço de denúncia às falsas doutrinas que mercantilizam a fé e alimentam o egoísmo. Que cada discípulo, inspirado por Jesus, seja fermento vivo no mundo, rompendo as correntes do clericalismo, da teologia da prosperidade e do individualismo voraz.

Não podemos nos acomodar. Não podemos nos calar. O chamado é urgente e desafiante: ser Igreja pobre para os pobres, humilde para servir, simples para amar. Que o Espírito Santo nos fortaleça para vivermos esse compromisso radical, porque o Reino dos Céus pertence aos que se tornam pequenos, confiantes e fiéis até o fim.

Que essa Boa Nova transforme não apenas nossas palavras, mas nossas vidas. E que, ao caminharmos com Jesus, possamos, de fato, construir um mundo onde a justiça, a paz e a misericórdia sejam realidade para todos — sobretudo para aqueles que o mundo insiste em esquecer.



DNonato - Teólogo do Cotidiano 


Tributo a Arlindo Cruz: “O Bem” como canto universal de luz, esperança e resistência

Arlindo Cruz, registrado Arlindo Domingos da Cruz Filho  nasceu no domingo,  14 de setembro de 1958, data que celebra a Exaltação da Santa Cruz na fé católica, símbolo de fé, sacrifício e esperança. Nesse mesmo dia, Oxalá, orixá da criação e da paz, também é celebrado no Candomblé, trazendo luz e pureza para a vida que ali começava na cidade do Rio de Janeiro  capital  da República 

Em 8 de agosto de 2025, numa sexta-feira, Arlindo partiu no dia dedicado a São Domingos de Gusmão, santo da pregação e da perseverança fundador da ordem dominicana no catolicismo. No Candomblé, essa data é ligada a Ogum, o guerreiro protetor que abre caminhos e traz força para enfrentar as batalhas da vida. Assim, a trajetória de Arlindo Cruz é marcada por sinais profundos de fé e proteção, entrelaçando a espiritualidade católica e a riqueza das tradições afro-brasileiras. Que sua memória siga sendo luz, cruz e força para todos que o amaram.

Ousamos dizer  que não foi apenas um sambista, foi um mensageiro da alma brasileira, que em cada verso cantado deixava um legado de fé, cultura e esperança. Com sucessos marcantes como “O Show Tem que Continuar”, “Tá Faltando Eu”, “Meu Lugar” e, claro, “O Bem”, Arlindo construiu uma trajetória que dialoga profundamente com a alma do povo brasileiro. Sua música reflete sua fé de matriz afro-brasileira, sua luta pela preservação da cultura popular e seu compromisso com mensagens de amor, esperança e resistência. Este texto é um tributo a Arlindo Cruz, inspirado especialmente na canção “O Bem”, que nos convida a refletir sobre a força transformadora da bondade — um “bem” que pode ser compreendido como o amor descrito por São Paulo em 1 Coríntios 13, aquele amor paciente, bondoso e que tudo suporta.

A canção “O Bem” é uma dessas obras raras que unem simplicidade popular e profundidade espiritual. Mais do que versos e acordes, é um manifesto de vida: um chamado para que a bondade não seja apenas ideia, mas prática diária, renovada no olhar, na mão estendida, no cuidado que sustenta. O bem não é luxo de gente perfeita. É direito e dever de todos — algo que atravessa culturas, credos e tempos.

Desde o início, a música ressalta o papel do “bem” como força iluminadora e protetora, que “ilumina o sorriso” e “dá abrigo”, funcionando como um verdadeiro amigo que estende a mão. O “bem” não aparece como uma entidade específica, mas é tratado com força e presença quase humanas, como se tivesse corpo e alma. Essa personificação poética, tão comum no samba e na tradição oral, dialoga com a forma como nas religiões afro-brasileiras se fala das forças de axé: energias de luz e equilíbrio que orientam e protegem, mesmo sem rosto próprio. No candomblé e na umbanda, a “corrente do bem” é como um sopro vital que conecta a pessoa aos orixás, aos guias e aos ancestrais — é força viva, não um ser isolado. Arlindo, que viveu sua fé de matriz africana, transforma essa experiência em arte, sem fronteiras. Essa personificação encontra paralelo também na Bíblia, onde a Sabedoria é apresentada como companheira que guia (Provérbios 8).

Essa descrição remete ao princípio universal da solidariedade, presente em quase todas as tradições religiosas, que enfatizam o amor ao próximo e o cuidado mútuo como base para a convivência harmoniosa. O cristianismo fala do mandamento do amor; o judaísmo, da tzedaká (justiça solidária); o islamismo, da zakat (caridade); o budismo, da compaixão (karuna); o hinduísmo, do dever (dharma) de servir e proteger a vida; o candomblé e a umbanda, do respeito aos mais velhos e da partilha como caminho de equilíbrio.

Neste ponto, é impossível não lembrar o Sermão da Montanha, onde Jesus apresenta uma ética revolucionária de amor e luz para o mundo. Ele afirma: “Vós sois a luz do mundo” (Mt 5,14), chamando seus seguidores a serem faróis que iluminam mesmo em meio às trevas. Jesus nos convida a sermos sal da terra, preservando o sabor e evitando a corrupção (Mt 5,13). Além disso, lembra que Deus “faz nascer o sol sobre maus e bons e faz chover sobre justos e injustos” (Mt 5,45), simbolizando a graça divina que não distingue e que sustenta toda a criação. A mansidão, a paciência e a busca pela justiça, tão presentes na canção de Arlindo, ressoam com as bem-aventuranças que prometem a herança da terra aos mansos, a consolação aos aflitos e a justiça aos perseguidos (Mt 5,3-12).

No Sermão da Planície, que apresenta ensinamentos semelhantes, Jesus reforça o chamado ao amor incondicional: “Amai os vossos inimigos e orai pelos que vos perseguem” (Lc 6,27-28). Essa visão transcende o senso comum e encontra eco na crítica feita por Arlindo à valorização do traidor, denunciando a inversão de valores que impera na sociedade.

O refrão da canção reforça que, apesar das armadilhas do mundo, o bem não pode ser suplantado. A fé aparece como fonte que sustenta essa esperança, um tema comum a diversas religiões que valorizam a transformação interior e comunitária.

Versos como “muitas vezes é bem mais valorizado e amado quem é traidor” denunciam a cultura do oportunismo e da injustiça, lembrando os profetas bíblicos, como Isaías: “Ai dos que chamam o mal de bem e o bem de mal” (Is 5,20). Essa denúncia atravessa tradições e tempos, apontando para a urgência de reconhecer e praticar o bem concreto.

Quando olhamos para diferentes religiões, percebemos que o “bem” de Arlindo é ponto de encontro. No cristianismo, viver o bem é preparar-se para a comunhão eterna com Deus; no judaísmo, cumprir a Torá e encontrar descanso na paz do Eterno; no islamismo, trilhar a retidão que leva ao paraíso; no espiritismo, semear luz para colher aprendizado no plano espiritual; nas tradições afro-brasileiras, construir axé e dignidade, preparando-se para o reencontro com os ancestrais no Orum. As imagens de luz, abrigo e proteção que Arlindo usa são pontes que ligam todas essas visões.

“O Bem” também aponta para a universalidade da esperança, usando símbolos naturais como o sol, a noite e o luar para representar a luz que nunca se apaga. O sol e a lua, no universo da canção, são sinais do cuidado divino gratuito e abrangente.

A canção sugere que o bem é eterno, que não se apaga com a morte. Seja como memória viva nos corações, seja como energia que retorna ao Todo, o bem vivido aqui segue atuando depois que o corpo parte. É o que as tradições afirmam de formas diferentes, mas com um núcleo comum: a vida continua, e o amor é o que realmente permanece.

Arlindo Cruz faleceu na  sexta-feira 8 de agosto de 2025, mas “O Bem” o mantém presente. Sua voz, seu violão e sua poesia são parte dessa corrente que não se quebra, desse sol que continua a nascer sobre todos. Ele soube transformar sua fé e sua cultura em música que abraça, sem exigir passaporte religioso.

Cantar “O Bem” hoje é ato de resistência contra a indiferença e a violência. É afirmar que a verdadeira religião — seja na Bíblia, no Alcorão, no Torá, nos pontos de umbanda ou nos cânticos de terreiro — se mede pelo cuidado com o próximo, pelo compromisso com a justiça e pela generosidade sem fronteiras. Arlindo fez disso o seu legado, e por isso seu samba não morre: ele caminha com quem ama a vida e acredita que o bem, mesmo quando silencioso, sempre vence.

Que, inspirados pelo legado de Arlindo, possamos ser luz na vida uns dos outros, e fazer do bem a nossa maior herança. Como ele mesmo cantava em “O Show Tem Que Continuar”, a vida é resistência, é insistência, é seguir cantando mesmo diante das dificuldades. Que o samba de Arlindo nos lembre que, apesar dos desafios, o bem sempre encontra caminho — e o show, o bem maior, realmente tem que continuar.

DNonato - Teólogo do Cotidiano