A Confiança como Rebelião: A Subversão do Reino Contra Mamom
A confiança inabalável em Deus, conforme nos propõe Mateus 6,24-34, não é um alívio piedoso ou resignado diante das angústias cotidianas; é um ato de rebelião sagrada contra os ídolos do nosso tempo. Ao afirmar que não se pode servir a Deus e a Mamom, Jesus rasga o véu de um sistema que absolutiza o dinheiro, o consumo e o controle como deuses. Ele não apenas nos exorta a viver sem ansiedade; Ele convoca seus discípulos a uma nova lógica existencial — a lógica do Reino, onde a confiança substitui a ansiedade, a partilha desarma a avareza, e o presente é reconhecido como kairos, tempo oportuno da graça.
"Mamom", em aramaico, não é um substantivo neutro. É nome de senhor. É figura simbólica de um poder espiritual que exige culto. Como Baal nos tempos antigos, é uma divindade sedutora que promete segurança, mas cobra em troca a alma do adorador. Não por acaso, Jesus não descreve o dinheiro como um bem neutro, mas como um senhor rival de Deus. A escolha entre servir a Deus ou a Mamom é a escolha entre liberdade e escravidão. Como adverte São João Crisóstomo: “nada é mais escravizante que a riqueza quando se torna fim e não meio”. A crítica de Jesus, portanto, é estrutural, não meramente ética. Ele toca a raiz da alienação humana: o desejo desordenado de possuir como forma de garantir a própria existência — desejo este que se converte em sistema social, ideologia e mercado.
Do ponto de vista exegético, o texto está situado no coração do Sermão da Montanha — o manifesto do Reino. Jesus ali não oferece conselhos morais avulsos, mas delineia um ethos escatológico: uma forma de viver desde já a realidade do Reino vindouro. A estrutura do discurso progride com intencionalidade pedagógica: começa com o alerta contra o duplo senhorio (v. 24), convida à contemplação da criação (vv. 26-30) e culmina no chamado radical à busca do Reino (v. 33). A repetição do verbo “não vos preocupeis” (merimnáo, em grego) funciona como refrão que desconstrói a ansiedade como modo de ser e revela uma espiritualidade alternativa, fundada na confiança radical.
Do ponto de vista hermenêutico, essa confiança não é ingenuidade, mas resultado de uma antropologia elevada. O ser humano, segundo a tradição bíblica, é mais que consumidor — é imagem e semelhança de Deus (Gn 1,26). O valor da vida não se mede por bens acumulados (cf. Lc 12,15). A criação é sacramento da providência, como sugerem os lírios do campo e as aves do céu. O olhar que Jesus propõe é um olhar contemplativo, que vê na natureza o testemunho da fidelidade divina. Como escreveu São Gregório de Nissa: “quem conhece a si mesmo contempla a Deus também nas criaturas”.
Antropologicamente, a ansiedade descrita por Jesus é mais que um distúrbio psicológico. É uma doença espiritual enraizada em uma cultura que nega o limite, idolatra o futuro e exige autossuficiência. Na lógica neoliberal contemporânea, a ansiedade se torna virtude produtiva: sujeitos ansiosos rendem mais, consomem mais, obedecem mais. A promessa de segurança vendida pelos mercados — por meio de seguros, previdências, investimentos — é, muitas vezes, máscara de um sistema que explora a insegurança para lucrar com ela. O "espírito do capitalismo", como dizia Max Weber, se nutre da ansiedade produtiva. E é contra esse espírito que o Espírito de Deus se ergue.
Jesus, ao dizer “basta a cada dia o seu mal” (Mt 6,34), está propondo uma revolução temporal. Ele nos chama a viver o presente, a redescobrir a sacramentalidade do agora. Aqui há um eco da filosofia de Kierkegaard, que via na angústia a vertigem da liberdade: somos sufocados não pelos fatos, mas pela multiplicidade de possibilidades que tentamos controlar. Confiar em Deus é, portanto, um ato de libertação interior que tem consequências externas: altera nossas relações, nossa economia, nosso modo de habitar o mundo.
É preciso lembrar: Jesus não elogia a pobreza como fatalismo, mas denuncia a riqueza idolatrada como violência. Seu discurso está em consonância com os profetas como Amós e Isaías, que denunciaram as elites que oprimiam os pobres enquanto festejavam nos palácios (cf. Am 6,1-6; Is 5,8). Está também em profunda harmonia com os Padres da Igreja: São Basílio Magno questionava: “Como ousas chamar de teu o que foi dado para todos?” Santo Ambrósio afirmava: “A terra foi feita para todos, mas poucos a tomaram para si”. A espiritualidade cristã verdadeira é incompatível com a acumulação injusta e o desprezo pelos pequenos.
Hoje, essa incompatibilidade exige urgência profética diante da ascensão da extrema direita, que, em nome de um pseudocristianismo de valores, abençoa armas, exclui os estrangeiros e justifica a desigualdade. Não há nada de evangélico nisso. O nacionalismo excludente, o armamentismo, o racismo estrutural e a fobia ao diferente são pecados sociais que ferem o corpo de Cristo. Jesus foi perseguido por desestabilizar as estruturas religiosas e políticas do seu tempo; seria hoje perseguido pelos mesmos que dizem segui-lo enquanto promovem a exclusão.
O clericalismo, por sua vez, é o braço religioso desse sistema. Quando a Igreja se fecha em si mesma, quando seus ministros se comportam como príncipes e não como servidores, quando transformam a liturgia em um espetáculo emocional e sentimentalista, ela deixa de ser celebração da vida, e o dirigente se reduz a um mestre de cerimônias, um popstar. Deixa de ser Pastor com "P" de povo e se torna artista, influenciador ou qualquer outra coisa — menos ministro do sagrado.
A fé celebrada no altar perde a mística da confiança, a verdadeira autoridade, que, como lembra Santo Inácio de Antioquia, “é aquela que se abaixa para lavar os pés”. A fé cristã não é obediência cega, mas seguimento livre e amoroso de Cristo, que nos chama a discernir os sinais dos tempos e a denunciar os ídolos de cada época.
O Magistério da Igreja, em sua melhor expressão, confirma essa leitura. O Concílio Vaticano II, na Gaudium et Spes, afirma que a Igreja está inserida no mundo e sofre com ele. O Papa Francisco, especialmente em Evangelii Gaudium e Laudato Si’, denuncia a “globalização da indiferença” e a “ditadura da economia sem rosto”. Ele nos convida a uma ecologia integral que é, ao mesmo tempo, cuidado com a Terra, com os pobres e com a alma humana. O apelo de Jesus para olhar os lírios do campo é também uma convocação a resistir ao paradigma tecnocrático que devasta o planeta e desumaniza a vida.
A confiança, neste contexto, torna-se profecia. Não é alienação, mas compromisso. Não é passividade, mas coragem. É a virtude dos que ousam viver contra a corrente. Dos que se recusam a vender a alma por estabilidade. Dos que preferem a liberdade dos filhos à segurança dos escravos. Dos que vivem a bem-aventurança da partilha e da sobriedade, mesmo sendo considerados tolos por um mundo que valoriza o acúmulo e o status.
Viver assim é escandaloso. E é por isso que salva. Como escreveu Paulo aos coríntios: “a loucura de Deus é mais sábia do que os homens” (1Cor 1,25). A comunidade primitiva entendeu isso: vendiam seus bens, partilhavam o pão, oravam juntos (cf. At 2,42-47). Era um escândalo para Roma, onde o valor supremo era o poder. É um escândalo para o mundo de hoje, onde o valor supremo é o lucro.
O convite permanece: buscar primeiro o Reino e a sua justiça. Isso significa escolher a gratuidade sobre o cálculo, a relação sobre a competição, a esperança sobre o medo. Significa confiar no Deus que alimenta os pássaros, veste os lírios e conhece cada fio de nosso cabelo. Confiar nesse Deus é dizer ‘não’ ao medo e ‘sim’ à liberdade; é reconhecer que o agora é tempo de graça e que o Reino já pulsa no cotidiano dos que resistem com fé, partilham com coragem e esperam com justiça.
- E a pergunta se impõe: a quem temos servido?
- O que guia nossas escolhas?
- Em que ou em quem temos confiado?
É tempo de conversão. É tempo de dizer, como o salmista: “Só em Deus repousa minha alma, dele vem minha salvação” (Sl 62,2).
Esse repouso é revolucionário. É o descanso dos que já não temem o amanhã, porque sabem que o hoje é dom. É o descanso dos que vivem o Reino aqui e agora, como fermento, como semente, como luz.
DNonato - Teólogo do cotidiano