quinta-feira, 16 de outubro de 2025

Um breve olhar sobre Lucas 12,1-7

Há palavras de Jesus que soam como um sussurro ao coração e outras que ecoam como um trovão na consciência. O Evangelho de Lucas, ao narrar o alerta contra o “fermento dos fariseus”, situa-nos diante de uma dessas vozes firmes e luminosas que atravessam os séculos. É uma denúncia que não envelhece, porque toca o que há de mais atual: a tentação da aparência, da duplicidade e do medo. O contexto histórico de Jesus — entre tensões religiosas e opressões políticas — não está distante de nossas realidades, onde a fé muitas vezes se torna palco e a verdade é trocada por conveniência.

Falar do “fermento da hipocrisia” é falar de todos os mecanismos que corrompem o coração humano, mesmo quando mascarados por piedade, ortodoxia ou zelo. É reconhecer que o perigo não está apenas “lá fora”, mas dentro, no modo como moldamos a fé às expectativas sociais e tememos mais o julgamento dos homens do que o olhar de Deus.
Esta reflexão percorre o texto de Lucas 12,1-7 da sexta-feira da 28ª semana do Tempo Comum não como simples comentário, mas como caminho espiritual: uma travessia entre o medo e a confiança, entre a aparência e a autenticidade, entre o poder humano e o cuidado divino. A partir da voz de Jesus, escutamos o chamado à liberdade interior e à coragem da transparência, à vida verdadeira que nasce da relação com Deus e floresce em meio às sombras do mundo.
A multidão se apertava ao redor de Jesus; o ar estava carregado de vozes, corpos e expectativas. Em meio a essa massa, Ele ergue a voz com firmeza serena: “Cuidado com o fermento dos fariseus, que é a hipocrisia”. Não era o fermento da massa de pão que Ele alertava, mas o veneno que cresce silencioso dentro do coração humano, a duplicidade que transforma a prática religiosa em espetáculo e a ética em aparência. O fermento, símbolo antigo do crescimento interior, agora é metáfora da corrupção que pode infectar não apenas a observância, mas a alma inteira. Desde os profetas, como Isaías e Amós, até os salmos, Deus alerta para a hipocrisia: o culto vazio não salva, a fé de fachada é estéril; e é exatamente isso que Jesus denuncia diante da multidão.
O contexto do Evangelho de Lucas nos ajuda a compreender o peso da palavra de Jesus. Ele falava em um tempo de tensões políticas e sociais, sob o Império Romano, em que o medo humano não era apenas emoção: era estrutura de poder. Fariseus, mestres da Lei, zelosos da tradição, exercendo influência pedagógica e moral sobre o povo, corrompiam, muitas vezes, o próprio ideal que deveriam encarnar. Nesse cenário, o discípulo precisava discernir, resistir e viver a fé sem se submeter ao temor humano. Lucas registra que Jesus primeiro dirige a advertência aos discípulos — seu círculo íntimo — ainda que a multidão ouça, pois a formação da comunidade exige clareza e coerência interior.

“Não há nada oculto que não venha a ser revelado, nada escondido que não venha a ser conhecido.” Palavras duras, mas libertadoras. A luz escatológica de Deus vai revelar tudo, e o que escondemos em segredos será trazido à plena claridade. A transparência ética exigida não é para humilhar, mas para alinhar o coração humano à justiça divina. A psicologia moderna reconhece essa luta interna: o conflito entre “eu público” e “eu privado”, entre a aparência e a realidade, é fonte de ansiedade e medo. Jesus convida à coragem da autenticidade, ao rompimento com a duplicidade, à libertação do medo do olhar alheio.

O medo humano, porém, não é o centro da atenção de Jesus. “Meus amigos, não temais os que matam o corpo e depois nada mais podem fazer. Mas temei aquele que, tendo o poder de tirar a vida, pode também lançar no inferno.” Aqui, o Evangelho desloca a escala do temor: do imediato para o eterno, do humano para o divino. A ameaça real não é a morte física, mas a perda da vida em sua totalidade, aquela vida que consiste em relação com Deus. A filosofia existencial cristã nos lembra que a liberdade plena está vinculada à fidelidade a Deus, não ao consenso social, e que o bem-estar externo é insuficiente para a vida verdadeira. Jesus reforça sua palavra com a parábola dos pardais: “Não se vendem cinco pardais por dois asse? E nenhum deles cai em terra sem o Pai; nem mesmo os cabelos de vossa cabeça estão todos contados. Vós valeis mais do que muitos pardais.” O pardal, criatura aparentemente insignificante, é símbolo da providência divina: se Deus cuida das mínimas criaturas, quanto mais de seus filhos. O cabelo, detalhe íntimo e pessoal, indica o conhecimento preciso que Deus tem de cada um. A antropologia da criação, os Salmos 139 e 147, e os textos sapienciales, como Sabedoria 11,24, reforçam essa imagem de cuidado minucioso. É um chamado à confiança radical: mesmo em meio à perseguição, à pobreza, ao desprezo, a vida confiada a Deus permanece segura.

Essa lógica encontra eco nos Evangelhos sinóticos. Em Mateus 10,29‑31, a mesma parábola é retomada, reforçando que o valor humano é incomensurável diante de Deus; em Marcos 4,28, o cuidado de Deus sobre a criação é indicado como modelo de confiança. O tema da providência transcende a materialidade: não se trata de segurança econômica ou conforto, mas de uma proteção ética, psicológica e espiritual que nos permite agir com coragem e autenticidade.

A crítica profética surge com clareza diante das distorções contemporâneas. A teologia da prosperidade promete bênçãos materiais como prêmio de fé; o evangelho de Lucas 12,1‑7 desarma essa ilusão: Jesus prepara os discípulos para enfrentar medo, perseguição e até morte física, sem promessas de conforto externo. A fé mercadoria — investida para retorno material — é refutada pela certeza de que o valor humano está no amor e na fidelidade a Deus, não em indicadores visíveis de sucesso. O individualismo religioso, que isola a fé em uma relação exclusiva e privada, também é questionado: o “meus amigos” de Jesus indica comunidade, partilha, responsabilidade e testemunho público.

O clericalismo, que impõe medo e silêncio, é igualmente desafiado. Jesus ensina que a autoridade nunca deve dominar pelo temor, mas pela verdade, transparência e serviço. Os documentos da Igreja, de Lumen Gentium a Evangelii Gaudium e Gaudete et Exsultate, ecoam essa crítica: hipocrisia, vaidade espiritual e abuso de poder corroem a Igreja. Santo Agostinho, nas Confissões, lembra que nada escapa a Deus, e que a autenticidade é caminho de libertação. Padres gregos, como São Gregório de Níssa, chamam a revelação do íntimo de cada pessoa de apokalypseō, um movimento de luz que traz coerência e verdade à existência.

A leitura antropológica, sociológica e psicológica se cruza com a teologia. Vivemos em sociedades de alta vigilância, redes que medem reputação, moral e imagem; muitos sucumbem à performance religiosa. Jesus anuncia a liberdade interior: não temer o homem, mas confiar no Pai que conta cada cabelo. Psicologicamente, isso reduz a ansiedade do oculto, sociologicamente desafia estruturas de poder e filosófica e espiritualmente desloca a confiança do humano para o divino. A esperança cristã, tão central à reflexão, é vivida em relação com Deus. Quem não conhece Deus pode ter desejos e expectativas, mas permanece sem a grande esperança que sustenta a vida. Jesus anuncia que a verdadeira vida — a vida eterna — é conhecer o único Deus verdadeiro e a Jesus Cristo, enviado do Pai (Jo 17,3). Essa vida não se alcança isoladamente; ela se realiza em relação e em comunhão, na fidelidade que suporta desilusões e ameaça de morte, na confiança radical no cuidado de Deus, que ama até a plena consumação (Jo 13,1; 19,30).

Que nossa existência seja transparente, sem hipocrisia. Que não vivamos à sombra do medo humano, mas à luz do temor santo, conscientes de que somos conhecidos, amados e valorizados por Deus. Como os pardais que voam sob os olhos do Criador e como cada fio de cabelo contado, valemos infinitamente diante d’Ele. Viver assim é abraçar a plenitude da vida, que consiste em relação, amor, confiança e coragem — a verdadeira esperança que sustenta a existência até o fim.

A vida autêntica, portanto, não é mera sobrevivência ou acúmulo de experiências; é relação contínua com Aquele que é a fonte da vida, que se revela no detalhe íntimo, no cuidado com o fraco, no amor que permanece mesmo na invisibilidade. Cada gesto cotidiano, cada palavra, cada silêncio, torna-se sacramento quando se vive à luz dessa relação.

A vigilância ética exigida pelo Evangelho é, ao mesmo tempo, convite à ousadia. Não é medo do mundo, mas liberdade em Deus. A coragem de viver a fé diante da injustiça, do poder opressor ou da superficialidade religiosa é central: o discípulo não se acomoda, não disfarça, não negocia valores. Em um mundo marcado pela exibição de fé e pelo sucesso mediático, o Evangelho lembra que a autenticidade é revolucionária.

O cuidado divino sobre cada vida, simbolizado nos pardais e nos cabelos contados, revela uma pedagogia de amor que supera os cálculos humanos de mérito e poder. Em qualquer circunstância, mesmo diante da morte ou do silêncio social, a vida confiada a Deus permanece em segurança. A psicologia da confiança e da resiliência encontra aqui um eco profundo: a certeza do valor humano diante do Criador sustenta a integridade interior.

No horizonte da esperança, Deus é aquele que ama “até ao fim” (Jo 13,1) e garante a consumação da vida em plenitude (Jo 19,30). Essa esperança não depende da condição material, da aprovação social ou do sucesso visível; ela floresce na fidelidade, na transparência, na coragem de viver como discípulo. O temor divino, entendido como respeito reverente e consciência da responsabilidade, desloca o medo humano, que paralisa e escraviza.

A comunidade cristã é chamada a ser espaço de clareza, onde a verdade vem à luz sem manipulação ou medo, onde o serviço e a misericórdia superam a vaidade e a performance religiosa. A Igreja, guiada pelos documentos conciliares e pela tradição patrística, é chamada a ser reflexo do cuidado divino, modelo de transparência e liberdade interior. A fé não é mercadoria, o poder não é instrumento de opressão, e a vida não é medição de sucesso, mas relação de amor e confiança.

Assim, diante do fermento da hipocrisia, do medo humano e das estruturas de poder, somos convocados à coragem, à autenticidade e à esperança. Cada gesto cotidiano, cada cuidado com o outro, cada palavra de verdade torna-se semente de vida eterna. Como os pardais que voam sob o olhar atento do Pai e como cada fio de cabelo contado, valemos infinitamente diante d’Ele. Viver em relação com Deus é viver a plenitude da vida, a vida que resiste, ama e espera, mesmo diante das tempestades, das desilusões e das injustiças.

Que nossas vidas sejam translúcidas, nossas comunidades espaços de liberdade, e nossa fé uma resposta constante ao amor que nos criou e sustenta. Assim, a grande esperança se realiza: não na prosperidade, não na aparência, mas na relação viva, confiável e transformadora com Deus, que nos conhece, nos ama e nos chama à vida em plenitude.

DNonato – Teólogo do Cotidiano


quarta-feira, 15 de outubro de 2025

Um breve olhar sobre Lucas 11,47-54

O Evangelho de Lucas 11,47-54 é proclamado na quinta-feira da 28ª semana do Tempo Comum, em meio a um ciclo de leituras que revelam a tensão entre o desígnio amoroso de Deus e a recusa humana em acolhê-lo. Nesse mesmo dia, a liturgia propõe a carta aos Efésios (1,1-10), na qual Paulo anuncia o projeto divino de recapitular todas as coisas em Cristo. É belo e provocante perceber o contraste: enquanto o Apóstolo contempla a unidade de todas as criaturas no amor, Jesus denuncia o fechamento religioso que mata os profetas. A Igreja reza, portanto, entre dois mundos — o do plano de Deus, que reconcilia, e o do coração humano, que ainda resiste.

jesus pronuncia palavras cortantes: “Ai de vós, que construís os túmulos dos profetas, mas vossos pais os mataram! Assim sois testemunhas e aprovais as obras de vossos pais” (Lc 11,47-48). O termo “ai” não é maldição, mas lamento. É a dor de Deus diante da cegueira humana. O grego ouai exprime compaixão indignada, como um suspiro de quem ama e sofre com o endurecimento do outro. Jesus não fala como juiz, mas como amante ferido: lamenta o destino de um povo que se acostumou a calar as vozes que o chamavam à conversão.O contexto é tenso: os fariseus e doutores da Lei se consideravam guardiões da tradição, mas haviam transformado a Lei em muralha. Construíam túmulos para os profetas não por veneração verdadeira, mas para controlar sua memória. Ao sepultar os profetas, sepultavam a exigência de conversão que vinha com eles. É mais fácil homenagear o mártir do passado do que escutar o profeta do presente. Assim, a hipocrisia religiosa se perpetua sob o disfarce da piedade.

A ironia de Jesus é amarga: aqueles que honram os profetas mortos são os mesmos que perseguem os vivos. O profetismo é sempre incômodo, porque desinstala, desmascara e denuncia. Do Gênesis ao Apocalipse, o fio da história bíblica é o mesmo: Deus fala, e o homem resiste. Desde o sangue de Abel até o de Zacarias, a Escritura narra uma longa genealogia da violência contra a verdade. O Evangelho de Lucas retoma essa linha para mostrar que Jesus é o ponto culminante dessa história — o último e definitivo Profeta, o Verbo que encarna a Palavra que o mundo tenta silenciar.

Mas a sabedoria de Deus é paciente. “Eu lhes enviarei profetas e apóstolos”, diz o texto, “a uns matarão e perseguirão” (Lc 11,49). Essa Sabedoria, personificada no Antigo Testamento, é expressão do Espírito que sopra onde quer. Negar o profeta é apagar o Espírito. E apagar o Espírito é sufocar o sopro mesmo da vida. Onde o Espírito é livre, há profecia; onde o Espírito é controlado, há túmulos.

O “ai” de Jesus, portanto, é também um grito pneumatológico: é o Espírito que chora dentro dele, lamentando o endurecimento humano. A profecia nasce sempre do Espírito, não da vaidade. Ela é sopro, não discurso. É fogo que aquece e queima. Por isso os profetas nunca são neutros: eles trazem o oxigênio da verdade, e o mundo os asfixia.

Sabemos que o  profeta é o mediador entre o divino e o humano. Vive a tensão entre o céu e a terra, entre a transcendência e o chão da história. Em toda cultura, ele representa a voz da alteridade — o Outro que nos convoca a sair de nós mesmos. O fariseu, ao contrário, teme a alteridade: quer um Deus espelho, não um Deus outro. Quer um Deus que confirme suas certezas, não um Deus que o desinstale. Por isso, o fariseu não suporta o profeta. A profecia é a pedagogia da alteridade: nela aprendemos que o rosto do outro é a primeira página do Evangelho.

O texto denuncia uma religião que espiritualiza a injustiça. Aqueles que matam os profetas o fazem em nome da ordem, da tradição, da pureza doutrinal. São defensores da moral, mas traidores da vida. Transformam a fé em instrumento de poder e o sagrado em moeda. É o mesmo mecanismo que sustenta, hoje, as teologias da prosperidade e do domínio. A religião-mercado vende milagres como produtos e transforma Deus em patrocinador de sucesso. É a nova idolatria: dourada, triunfalista, espetacular. Uma espiritualidade líquida, na expressão de Zygmunt Bauman, em que o sagrado se consome e se descarta conforme o humor do mercado.

O profeta, no entanto, não se curva a essa lógica. Ele não vende conforto, oferece conversão. E por isso é sempre perseguido. Quando o púlpito vira palco, o altar se torna vitrine e o Evangelho se reduz a marketing, os profetas se tornam subversivos perigosos. Mas são eles que mantêm acesa a chama da autenticidade espiritual..Do ponto de vista psicológico, o fariseísmo é o mecanismo de defesa da alma religiosa. Freud chamaria de recalque da verdade; Jung, de sombra espiritual. O ser humano teme o profeta porque ele obriga a olhar para dentro. O profeta é o espelho que revela o que escondemos sob nossas certezas. Carl Rogers diria que a autenticidade é a base da maturidade. O fariseu, então, é o imaturo espiritual — aquele que vive de máscaras, com medo da transparência. A religião, quando se torna disfarce do ego, mata o Evangelho.

Nietzsche denunciava  a religião que reprime a vida, e Jesus denunciava  exatamente isso: a fé usada para dominar. Hannah Arendt alertou que o mal se banaliza quando o coração se acostuma à injustiça. E é disso que fala o Evangelho: a banalização do mal em nome do bem. Quando a fé se torna rotina, o Evangelho morre no hábito. A palavra “ai” é o choque necessário para despertar a consciência..A patrística reconheceu a atualidade desse perigo. Santo Agostinho advertia: “Ai daqueles que amam mais a honra dos homens do que a glória de Deus, pois constroem monumentos aos santos e matam a verdade que os santos pregaram.” João Crisóstomo denunciava que os ministros da Igreja podem tornar-se cúmplices da morte espiritual do povo quando buscam prestígio em vez de serviço. Orígenes acrescentava que o profeta vive já no tempo de Deus, e por isso é sempre estrangeiro entre os homens — a história tenta domesticá-lo, mas ele fala com acento do céu.

Essa denúncia se dirige também a nós, Igreja do século XXI. O clericalismo, que o Papa Francisco tantas vezes denunciou, é a forma moderna de trancar a porta do Reino. “Ai de vós, doutores da Lei, que tomastes a chave da ciência: vós mesmos não entrastes e impedistes os que queriam entrar!” (Lc 11,52). A imagem da chave é símbolo poderoso: representa o acesso ao mistério. Quando o ministro se coloca como dono da chave, transforma a mediação em barreira. O Evangelho não precisa de guardiões, mas de testemunhas.

A Gaudium et Spes recorda que o homem só se realiza no dom sincero de si. A Evangelii Gaudium denuncia o clericalismo como desfiguração da missão. E a Fratelli Tutti amplia o horizonte: a fé só é verdadeira quando gera fraternidade. O profeta, portanto, é o guardião da comunhão. Ele reconecta o humano ao divino, o pobre ao rico, o centro à periferia. É a ponte viva entre mundos que o medo separa.

A exegese nos mostra que, após essas palavras, “os escribas e fariseus começaram a pressioná-lo fortemente e a armar-lhe ciladas” (Lc 11,53). É o início da perseguição. A luz provoca a escuridão. O mesmo Espírito que o impulsiona à verdade desperta a ira dos que preferem as trevas. Assim também na história: quanto mais o Evangelho é fiel, mais ele incomoda os poderes deste mundo. O sangue dos profetas continua a clamar da terra (Ap 6,9).

Mas mesmo entre os escombros da religião morta, o Espírito sopra. O mesmo vento que ergueu Ezequiel diante do vale de ossos secos continua a percorrer a história. Há sempre um resto fiel, um pequeno grupo que, entre feridas e esperança, resiste ao império da morte e prepara o caminho da vida. A profecia é o suspiro de Deus que insiste.

Hoje, a perseguição aos profetas se dá por meios sutis. Não se apedreja mais, mas se cancela. O martírio acontece em pixels e algoritmos. As redes sociais se tornaram tribunais públicos onde a superficialidade julga a profundidade. O Evangelho da vida é abafado pelo ruído do espetáculo. Mas o profeta continua a falar, mesmo que sua voz pareça frágil. É no sussurro do vento, e não no trovão, que Deus se revela (1Rs 19,11-13).

Há, portanto, uma dimensão espiritual que atravessa o texto: a vitória silenciosa da vida. O Reino de Deus não triunfa pela força, mas pela fidelidade. A cruz é o túmulo e o berço da profecia. No corpo transpassado de Cristo, o sangue de todos os profetas encontra sentido. O profetismo não termina no Gólgota; ressuscita com o Ressuscitado.

O cristão autêntico, portanto, é aquele que assume o risco do profeta. Ser discípulo é viver na contramão da cultura da morte. É preferir a verdade à conveniência, a compaixão ao poder, o serviço ao prestígio. É enfrentar o sistema com o poder desarmado do amor. A fé autêntica é sempre subversiva, porque nasce da liberdade interior do Espírito.

Assim, o texto de Lucas não é apenas denúncia — é também promessa. Promessa de que o Espírito continua a suscitar profetas em cada geração. Talvez não usem batina, talvez não falem em templos, talvez cantem nas ruas ou escrevam nas redes; mas sua voz é a mesma: a da Sabedoria que clama nas praças, convidando à vida. Felizes os que são perseguidos por causa da justiça, porque deles é o Reino dos Céus.

E quando o último túmulo for aberto, quando o último profeta silenciado for reabilitado pela verdade, compreenderemos que o Reino de Deus não é o império dos poderosos, mas a comunhão dos que amam. Porque os túmulos dos profetas se tornarão berços da esperança. Toda vez que o amor renasce em meio à perseguição, o Reino da Vida rompe o silêncio da pedra e faz do sepulcro um altar de ressurreição



DNonato – Teólogo do Cotidiano

Um breve olhar sobre Lucas 11,42-46

O Evangelho proclamado nesta quarta-feira da 28ª semana do Tempo Comum nos situa novamente à mesa de um fariseu — espaço que, à primeira vista, poderia parecer apenas um jantar, mas que, sob o olhar atento de Jesus, transforma-se em cenário de revelação, confronto e discernimento. Na sociedade judaica do primeiro século, a refeição era ato social, ritual religioso e também espaço pedagógico. Ser convidado para comer com alguém não era mero gesto de cortesia; era sinal de reconhecimento público e ocasião para demonstrar sabedoria e piedade. Jesus, porém, subverte essa expectativa: não vem para elogiar quem se mostra piedoso, mas para denunciar as contradições do coração religioso e revelar que a verdadeira observância da Lei deve sempre estar permeada pela justiça, pela misericórdia e pelo amor de Deus.

Desde Lucas 11,37, acompanhamos que Jesus foi convidado à refeição e não se limitou às formalidades. Cada gesto do anfitrião e cada cuidado com as aparências se tornam ocasião de revelação. A mesa, lugar de comunhão, transforma-se em cátedra profética. Os “ais” de Jesus não são maldições, mas lamentações — gritos que brotam da compaixão e da indignação diante da hipocrisia. Essa tradição de denúncia nasce dos profetas: Jeremias, Isaías e Amós já haviam clamado contra o culto vazio e a religiosidade sem justiça. Isaías advertia: “Este povo me honra com os lábios, mas o seu coração está longe de mim” (Is 29,13), e Amós gritava: “Quero a justiça correndo como um rio e a retidão como um riacho perene” (Am 5,24). Jesus, portanto, não rompe a tradição profética — Ele a cumpre, mostrando que a fé verdadeira não é aparência nem rito, mas transformação profunda do coração e da vida.

 “Ai de vós, fariseus, porque pagais o dízimo da hortelã, da arruda e de todas as outras ervas, mas deixais de lado a justiça e o amor de Deus. Vós deveríeis praticar isso, sem deixar de lado aquilo.”

O dízimo, que deveria ser sinal de gratidão e partilha, tornou-se instrumento de ostentação. A observância mecânica, sem amor nem compaixão, gera falsa religiosidade. Mateus, em seu paralelo (23,23), reforça que o essencial da Lei é a justiça, a misericórdia e a fidelidade — sem as quais todo ritual se torna vazio. Paulo, por sua vez, recorda que “a fé sem obras é morta” (Tg 2,26), e que o amor é o vínculo da perfeição (Cl 3,14).
Hoje, essa lógica reaparece em contextos onde o sucesso da Igreja é medido por números, arrecadações e prestígio de líderes. A teologia da prosperidade, a fé-mercadoria e o culto à riqueza repetem a lógica farisaica sob nova roupagem. A espiritualidade se converte em produto de consumo, e o Evangelho é distorcido para legitimar poder e status. No entanto, a fé autêntica não é transação, mas comunhão; não é moeda, mas serviço. Deus não se reconhece em quem exibe piedade, mas em quem pratica justiça, reparte o pão e defende os pobres.

Neste ponto, o Evangelho lança sobre nós uma pergunta incômoda e necessária:
Quantas pessoas entram na Igreja por causa da nossa atitude? E quantas saem?
Essas não são questões estatísticas, mas espirituais. Elas medem a coerência entre fé e vida, entre o que professamos e o que praticamos. Muitas vezes imaginamos que nossa fé é assunto íntimo, reservado a ritos e orações. No entanto, cada gesto, cada palavra e até o silêncio testemunham algo de Deus. Somos, queiramos ou não, sinais vivos do Evangelho.

Quando nossas atitudes são marcadas pelo amor, paciência, perdão e cuidado, as portas da fé se abrem: alguém vê compaixão em nossos olhos e se aproxima de Deus. Mas quando agimos com indiferença, orgulho ou hipocrisia, afastamos corações que buscavam acolhida. A incoerência é escândalo espiritual; o amor coerente é pregação silenciosa. Por isso, a verdadeira evangelização começa na conversão interior: o que o outro encontra em mim — julgamento ou misericórdia, peso ou leveza, muro ou ponte?

“Ai de vós, fariseus, porque gostais dos primeiros assentos nas sinagogas e das saudações nas praças públicas.”

A denúncia agora é contra o culto à visibilidade. O fariseu que busca os primeiros lugares simboliza o ego religioso que precisa de aplausos. O Papa Francisco tem advertido que o clericalismo é uma das formas mais sutis de mundanidade espiritual: ele transforma o serviço em carreira e o altar em palco. Psicologicamente, o fariseu manifesta a necessidade de aprovação e o medo da invisibilidade; sociologicamente, ele encarna a manipulação da fé para legitimar poder e excluir os pobres; antropologicamente, é a repetição de um padrão milenar em que o sagrado é usado como escudo de status. Em nossos tempos, essa tentação se manifesta também nas redes sociais, na busca por seguidores e curtidas “em nome de Deus”, mas com o coração distante do Evangelho do serviço.

 “Ai de vós, porque sois como túmulos que não se veem, sobre os quais os homens andam sem saber.”

Na tradição judaica, o túmulo invisível tornava impuro quem passava por cima dele sem perceber. Jesus usa essa imagem para revelar a religião que mata sob aparência de santidade. A fé sem compaixão é sepulcro branco: bela por fora, morta por dentro. Ezequiel viu o vale de ossos secos (Ez 37) e profetizou sobre a necessidade do Espírito para reviver o que estava morto. Assim também, sem o Espírito, toda estrutura religiosa se torna ossário.
Santo Agostinho ensinava que a Lei foi dada para conduzir à graça; São João Crisóstomo denunciava os que oprimem os pobres; São Gregório Magno alertava para o perigo do poder clerical. A Igreja só é viva quando o amor é sua alma. Quando o rito é usado para ocultar a injustiça, o altar se torna túmulo; mas quando a liturgia reflete misericórdia, o túmulo se abre e a vida ressuscita.

 “Mestre, falando assim, insultas-nos também a nós!”

A reação do doutor da Lei revela a resistência típica à palavra profética. Em todas as épocas, a voz da verdade é percebida como ofensa pelos que se acomodam à hipocrisia. Jeremias, Ezequiel, João Batista e até o próprio Cristo foram perseguidos por denunciar as estruturas de opressão. Psicologicamente, o doutor da Lei representa o ego ferido, incapaz de acolher a correção; espiritualmente, simboliza a rigidez de quem confunde a letra da Lei com a vontade de Deus.
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“Ai de vós também, mestres da Lei, porque carregais os homens com fardos insuportáveis, e vós mesmos não os tocais nem com um dedo.”

A denúncia é clara: a Lei sem compaixão oprime; a autoridade sem serviço domina. Quantas vezes a religião se torna peso, em vez de caminho? Quantas vezes a moral é usada como arma, e não como cuidado? Jesus revela que o verdadeiro mestre é aquele que caminha junto, que alivia o peso, que toca com ternura o fardo alheio. A teologia do domínio e as estruturas autorreferenciais traem o Evangelho. O verdadeiro ministério, ensinam os Padres da Igreja, é o que conduz à liberdade e ao amor.

Assim, o Evangelho nos recorda: a salvação não está na observância exterior, mas na conversão interior. Amor e justiça são inseparáveis — o amor sem justiça é conivência; a justiça sem amor é vingança. A fé exige engajamento social, denúncia profética e compromisso com a dignidade humana. Cada fariseu e cada doutor da Lei habitam em nós: o orgulho, o medo da crítica, o desejo de controle. A conversão começa no espelho da consciência, quando deixamos o Espírito moldar o coração.

A mesa do fariseu torna-se, assim, escola de misericórdia. O “ai de vós” de Jesus é também convite: “Vinde a mim, todos vós que estais cansados...” (Mt 11,28). Ele não quer destruir, mas libertar; não deseja acusar, mas curar. Quando a fé se dobra diante do amor, o sepulcro se abre e a vida ressuscita.

Mais discípulos, menos juízes.
Mais serviço, menos vaidade.
Mais compaixão, menos aparência.
A fé autêntica não é espetáculo, mercadoria ou instrumento de poder. É justiça, misericórdia e humildade. Amar é cumprir a Lei. Servir é fazer justiça. A misericórdia é o caminho seguro do Reino. Que cada cristão, na comunidade, na Igreja e no cotidiano, se pergunte: até que ponto sou fariseu? Até que ponto minhas práticas revelam amor verdadeiro?
Que o Espírito nos transforme; que a Lei seja guia; que o amor seja critério. E que aprendamos, com o Mestre de Nazaré, a viver o Evangelho não como imposição, mas como vida — vida que acolhe, cura, perdoa e liberta.

DNonato – Teólogo do Cotidiano

terça-feira, 14 de outubro de 2025

Um breve olhar sobre Lucas 11, 37-41

O fariseu ajeita o assento, observa cada gesto, mede o olhar do hóspede. O perfume do pão recém-assado se mistura ao silêncio constrangido. Jesus chega, senta-se, e não lava as mãos. O escândalo está servido antes da refeição começar. Não se trata de descuido, mas de provocação. O gesto é símbolo e denúncia: Deus está cansado de mãos limpas que não tocam feridas, de ritos impecáveis que ignoram a dor humana. O Evangelho proclamado nesta terça-feira da 28ª semana do Tempo Comum (Lucas 11,37–41) é daqueles que expõem o nervo da religião, rasgando o verniz da aparência para revelar o que pulsa no coração.
Jesus, convidado a uma refeição na casa de um fariseu, surpreende o anfitrião ao sentar-se à mesa sem realizar as abluções rituais prescritas pela tradição dos anciãos. O espanto do fariseu é o espelho do escândalo religioso: Jesus rompe com o formalismo que confunde pureza com aparência. A liturgia da Igreja proclama esse texto também nas memórias de santos e santas que, como Ele, denunciaram a hipocrisia das práticas religiosas desumanas, revelando que Deus não se deixa aprisionar por rituais vazios, mas habita o interior que ama, partilha e serve.
O contexto de Lucas é teologicamente denso. O evangelista, que escreve a comunidades marcadas por tensões entre judeus e cristãos de origem pagã, apresenta Jesus como aquele que revela o coração de Deus e desmascara o coração endurecido da religião institucionalizada. A refeição — lugar de comunhão e fraternidade — transforma-se em espaço de confronto. O gesto de Jesus, aparentemente banal, torna-se sinal profético. Ao não lavar as mãos, Ele mostra que a impureza não vem de fora, mas do interior, da corrupção do coração (cf. Mc 7,15). O fariseu, defensor da pureza ritual, revela sua própria impureza interior: julga, condena, escandaliza-se, enquanto ignora a fome e a miséria ao redor.
“Vós, fariseus, limpais o copo e o prato por fora, mas o vosso interior está cheio de roubo e maldade” (Lc 11,39). É com essa sentença que Jesus rompe o silêncio cortante do jantar. O que Ele diz não é apenas uma crítica moral; é uma denúncia teológica. Deus não habita nas mãos limpas, mas no coração livre. A purificação ritual, separada da ética e da compaixão, é idolatria. Essa mesma denúncia ecoa em Mateus 23,25–26: “Ai de vós, escribas e fariseus hipócritas! Vós limpais o exterior do copo e do prato, mas o interior está cheio de ganância e intemperança.” E Marcos 7,1–23 reforça o mesmo ensinamento, quando Jesus cita Isaías: “Este povo me honra com os lábios, mas seu coração está longe de mim” (Is 29,13).
Esses paralelos sinóticos revelam uma coerência profética que remonta à raiz hebraica da fé. Os profetas sempre denunciaram o culto desvinculado da justiça. Amós gritou: “Eu odeio, desprezo as vossas festas; não suporto as vossas assembleias solenes. Corra o direito como as águas, e a justiça como um rio perene” (Am 5,21.24). Isaías clamou: “Lavai-vos, purificai-vos, cessai de fazer o mal, aprendei a fazer o bem; buscai o direito, socorrei o oprimido” (Is 1,16–17). Miquéias resumiu o essencial: “Praticar a justiça, amar a misericórdia e caminhar humildemente com teu Deus” (Mq 6,8). O mesmo Deus que libertou Israel do Egito não exigiu mãos lavadas, mas pés em caminho. A pureza do Êxodo é o movimento, não o ritual; é o sair do Egito da indiferença para o deserto da confiança. Jesus, herdeiro dessa tradição profética, retoma o fio rompido entre fé e vida.
O símbolo do copo e do prato é uma metáfora antropológica. O copo é o interior humano, a consciência, o coração — lugar das motivações, desejos e afetos. Limpar apenas o exterior é mascarar o ego, é criar uma persona religiosa que busca aprovação social e status espiritual. A psicologia profunda, especialmente em Jung, chamaria isso de “sombra não integrada”: a parte de nós que negamos e projetamos nos outros. Os fariseus de ontem e de hoje são aqueles que projetam sua própria impureza nos outros, construindo uma moral de fachada para esconder sua vaidade espiritual.
Na dimensão sociológica, o texto revela uma crítica à religião como instrumento de poder. O legalismo religioso funciona como mecanismo de controle: define quem é puro e quem é impuro, quem pertence e quem é excluído. Jesus desestabiliza essa lógica, porque Sua mesa é inclusiva — Ele come com publicanos e pecadores, acolhe mulheres e estrangeiros, toca os impuros. Sua transgressão ritual é libertação social. Por isso, a denúncia de Jesus é perigosa: desmascara o sistema religioso que legitima desigualdades sob o manto da pureza.
Teologicamente, o gesto de Jesus revela o verdadeiro culto: a misericórdia. Ele conclui: “Dai antes esmola do que possuís, e tudo ficará puro para vós” (Lc 11,41). A esmola, aqui, não é apenas caridade ocasional; é símbolo de partilha existencial. É a tradução da conversão interior em prática concreta. Santo Agostinho comentava que “dar esmola é purificar o coração, porque quem partilha o que tem liberta-se do que o possui.” São João Crisóstomo, em sua homilia sobre os pobres, dizia: “Não lavar as mãos não torna impuro, mas negar o pão a quem tem fome é o maior dos pecados.”
Quem dá, purifica. Quem reparte, reza com as mãos. Quem toca as feridas do mundo, comunga com o próprio Cristo. Porque o altar verdadeiro não é o de mármore — é o coração que sangra e ama. Dar esmola é mais do que um ato: é uma mística. É o gesto que devolve ao humano a dignidade divina. É tornar-se ponte entre a abundância e a carência, entre o pão e a esperança.
Essa lógica é frontalmente oposta à teologia da prosperidade que invade nossos templos e telas. Enquanto Jesus fala de desprendimento, os pregadores do lucro falam de acúmulo. Enquanto o Evangelho convida à partilha, eles transformam a fé em investimento e Deus em acionista. Essa deformação não é cristianismo, é idolatria financeira travestida de piedade. Como denunciou o Papa Francisco na Evangelii Gaudium, “a adoração do antigo bezerro de ouro encontrou uma nova e cruel versão na idolatria do dinheiro e na ditadura de uma economia sem rosto e sem um objetivo verdadeiramente humano.”
A teologia do domínio, que prega poder e conquista, é outro rosto do mesmo farisaísmo moderno. Ela sacraliza o autoritarismo e chama de bênção o que é opressão. Jesus, ao contrário, revela que o Reino de Deus não se impõe, se propõe; não domina, serve; não conquista, acolhe. “Entre vós não será assim: quem quiser ser o maior, seja o servo de todos” (Mc 10,43–44). O clericalismo, denunciado tantas vezes pelo Papa Francisco, é filho dessa mesma lógica: reduz o ministério a privilégio e o altar a trono. Esquece que o Cristo que preside é o que lava os pés, não o que exige reverência. Hoje, quando templos disputam fiéis como empresas disputam clientes e padres e pastores competem por visibilidade digital, o gesto de Jesus sentado à mesa sem lavar as mãos soa como provocação divina: menos palco, mais pão.
A filosofia moral ajuda-nos a entender a profundidade do gesto de Jesus. Ele não rejeita os ritos em si, mas a absolutização deles. O rito é linguagem simbólica do invisível, mas quando o símbolo se torna fim em si mesmo, degenera em fetiche. Kierkegaard dizia que a fé sem interioridade é estética, não ética; é performance, não compromisso. O problema não é o rito, mas a inversão de valores que o transforma em máscara para o vazio espiritual.
Jesus  vem reordenar o sagrado. Ele desloca o eixo da pureza do corpo para o coração, do templo para a casa, da lei para o amor. Essa mudança é civilizacional. A religião, que até então demarcava fronteiras, passa a ser caminho de comunhão. A fé torna-se experiência existencial, não sistema normativo. A purificação, antes ritual, torna-se ética: viver de modo puro é viver com compaixão.
É aqui que o paralelo com o gesto de Pilatos se torna ainda mais revelador. Quando Pilatos, diante do clamor do povo, lava as mãos (Mt 27,24), ele simboliza a covardia política e espiritual de quem se exime da responsabilidade pelo sofrimento do inocente. As mãos lavadas de Pilatos contrastam com as mãos não lavadas de Jesus. Um lava as mãos para fugir da justiça; o outro não as lava para revelar a injustiça. Um busca se manter puro aos olhos do poder; o outro se contamina pelo amor aos esquecidos. Pilatos lava para preservar o império; Jesus deixa de lavar para inaugurar o Reino. As mãos lavadas de Pilatos são símbolo da omissão que mata; as mãos não lavadas de Jesus são sinal da compaixão que salva. Entre os dois gestos se decide o destino da humanidade: a religião do medo ou a fé do amor.
No horizonte da Gaudium et Spes, a fé autêntica deve iluminar as estruturas humanas, sociais e econômicas, libertando-as da idolatria do lucro e da indiferença. Quando Jesus fala de dar esmola, está proclamando uma nova economia da graça: o amor como medida da pureza. “Tudo vos será puro” não é promessa mágica, mas consequência ética: quem reparte o pão purifica o coração. Também a Fratelli Tutti recorda que “a vida é a arte do encontro, mesmo com aqueles de quem discordamos”. O fariseu fecha-se no ritual; Jesus abre-se ao encontro. O fariseu busca distinguir-se; Jesus busca aproximar-se. O fariseu quer ser visto; Jesus quer ver. O fariseu lava as mãos; Jesus toca as feridas. Por isso, a Boa Nova é subversiva: ela não purifica pela água externa, mas pelo fogo do amor que consome o egoísmo.
Lucas escreve esse episódio quando a comunidade cristã já começa a sofrer as tentações do poder e do legalismo interno. É uma advertência para nós: não basta proclamar Jesus com os lábios se o coração está corrompido pela vaidade e pelo prestígio. A Igreja corre o risco de ser farisaica quando se preocupa mais com paramentos do que com pessoas, mais com rubricas do que com o pão dos pobres, mais com o decoro litúrgico do que com a justiça social.
Esse trecho  do evangelho nos convida à coerência interior. Lavar o exterior e ignorar o interior é viver uma cisão da alma. A espiritualidade autêntica é integração, não aparência. Jesus chama a essa integração: “Limpai primeiro o interior do copo, para que também o exterior fique limpo” (Mt 23,26). A pureza começa onde o ego morre e o amor renasce.
O gesto de Jesus, portanto, é um chamado à conversão profunda. Não uma conversão moralista, mas libertadora. Uma fé que não se mede por normas, mas por gestos de amor. Uma Igreja que não se define por leis, mas por compaixão. Uma espiritualidade que não teme sujar as mãos para lavar as feridas do mundo.
Diante dessa Palavra, somos interpelados: quantas vezes limpamos o copo por fora com nossas aparências religiosas enquanto o interior está cheio de indiferença, consumismo e vaidade espiritual? Quantas vezes usamos a fé para nos exibir em vez de servir? Quantas vezes confundimos ortodoxia com arrogância e pureza com isolamento? Jesus desmonta essas máscaras com uma frase simples: “Dai esmola do que possuís.”
Dar esmola é dar-se. É libertar-se da idolatria do eu. É romper com a lógica da acumulação e da aparência. É fazer da fé um movimento de saída, não de exibição. Essa é a pureza que Deus reconhece: o amor que se torna pão, o perdão que se torna gesto, a fé que se torna carne.
Essa é a Boa Nova: a pureza não está nas mãos lavadas, mas no coração que partilha. A santidade não é brilho exterior, é transparência interior. A fé não é etiqueta religiosa, é encontro que transforma. Que nossas comunidades redescubram o essencial: não há culto verdadeiro sem justiça, nem liturgia sem partilha, nem pureza sem misericórdia.
Que o Cristo, que ousou sentar-se à mesa sem lavar as mãos, desperte em nós uma Igreja que não tema sujar-se para servir, que prefira as mãos calejadas às mãos limpas e que descubra, na lama do mundo, o brilho da graça. Porque o Reino começa quando o copo do coração transborda amor.



DNonato – Teólogo do Cotidiano

domingo, 12 de outubro de 2025

Um breve olhar sobre Lucas 11,29–32

O Evangelho proclamado na segunda-feira da vigésima oitava semana do Tempo Comum — e novamente na quarta-feira da segunda semana da Quaresma — nos apresenta um dos textos mais densos e provocadores da tradição lucana: “Assim como Jonas foi um sinal para os habitantes de Nínive, assim será também o Filho do Homem para esta geração” (Lc 11,30). O Tempo Comum, frequentemente visto como tempo “ordinário” ou “sem grandes festas”, é, na verdade, o espaço onde o extraordinário se revela no ordinário. É o tempo em que os sinais do Reino se manifestam discretamente no cotidiano, onde a graça age silenciosa e o convite à conversão se faz contínuo. Nesta liturgia, proclamada tanto no Tempo Comum quanto na Quaresma, o Evangelho ressoa como advertência e promessa: a geração que busca sinais espetaculares é incapaz de perceber o maior de todos, aquele que se encarna no meio dela.

O texto situa-se em um contexto de confronto. Jesus é cercado por multidões que o observam: algumas maravilhadas, outras desconfiadas, muitas esperando um milagre como prova de autenticidade. O pedido por um sinal não é neutro: nasce de um coração que deseja dominar o mistério, que exige de Deus uma resposta sob suas condições. Lucas, com sua sensibilidade teológica e pastoral, mostra que Jesus recusa esse tipo de fé. O sinal não é espetáculo, mas revelação. Ele não se impõe à força da evidência, mas se oferece à liberdade da fé. Assim como os ninivitas acolheram a palavra de Jonas e se converteram, o Filho do Homem oferece um sinal que exige escuta, arrependimento e decisão. O Evangelho de Lucas visa formar discípulos capazes de discernir os sinais de Deus no tempo presente, não em prodígios, mas no encontro vivo com Cristo.

O sinal de Jonas é riquíssimo em significado. Jonas é o profeta relutante, aquele que foge da missão e, no fundo, espelha o coração humano que resiste à graça. Sua história é símbolo da tensão entre liberdade e obediência, entre egoísmo e conversão. Quando Deus o chama a pregar em Nínive, cidade símbolo da violência e da arrogância imperial, Jonas tenta escapar, preferindo o silêncio à missão. A tempestade que o engole e o peixe que o abriga tornam-se imagem do abismo interior do ser humano e, ao mesmo tempo, do ventre misericordioso de Deus. Em grego, o peixe é Ichthys, símbolo cristológico: cada letra representa Jesus Cristo, Filho de Deus, Salvador. O peixe acolhe Jonas, como Cristo acolhe a humanidade, e o mergulho de Jonas na água remete ao batismo — morte para o pecado e renascimento para a vida em Deus.

A virada de chave de Jonas ocorre no ponto de maior crise: no ventre do peixe e também na experiência com a planta que Deus fez crescer sobre Nínive para lhe dar sombra — uma cucubalus ou ricino (mamona) — Jonas se conforta, mas quando a planta seca, ele percebe sua própria dependência e vulnerabilidade. A morte da planta simboliza a impermanência das comodidades e do ego, revelando que a misericórdia de Deus não se mede por conforto externo, mas pela abertura interior à missão. Psicologicamente, é o enfrentamento da própria arrogância e resistência; espiritualmente, é a aceitação do chamado e da fragilidade humana como espaço de transformação.

No comentário detalhado de Lucas 11,29-32, o texto apresenta uma pedagogia divina estruturada versículo a versículo. Em Lc 11,29, Jesus denuncia a demanda das multidões por sinais espetaculares, revelando psicologicamente o medo da vulnerabilidade e sociologicamente a cegueira das estruturas humanas diante da justiça e da compaixão. Lc 11,30 articula a tipologia entre Jonas e Cristo: a geração que rejeita o sinal prefere controle e espetáculo à conversão sincera; a pedagogia divina sugere que o verdadeiro milagre é interior, ético e existencial, não visível. Lc 11,31 introduz a rainha do Sul, símbolo da abertura à sabedoria universal e do reconhecimento do dom divino mesmo fora das fronteiras religiosas, convidando à humildade e à escuta crítica diante do formalismo e do clericalismo. Lc 11,32 conclui com a exortação à introspecção e responsabilidade social: a conversão sincera dos ninivitas denuncia a cegueira e a resistência dos que possuem a Lei e a promessa, chamando à ação ética e à misericórdia ativa.

Os símbolos presentes no discurso de Jesus — o peixe, Nínive, Jonas, a rainha do Sul e a planta que lhe dava sombra — carregam múltiplas camadas de significado: Nínive é o mundo fechado à justiça e à compaixão; Jonas é o humano relutante diante do chamado; o peixe (Ichthys) é o útero de Deus, espaço de proteção, introspecção e recomeço, evocando o batismo; a planta de mamona simboliza a fragilidade, a transitoriedade e a necessidade de desapego para abraçar o chamado; a rainha do Sul é a abertura à sabedoria universal, crítica à arrogância e ao exclusivismo religioso. Psicologia, filosofia e sociologia iluminam esses símbolos: o desejo de sinais espetaculares reflete medo da vulnerabilidade e busca de controle; a abertura ao dom divino exige humildade e escuta; a conversão genuína produz transformação ética e social.

Sociologicamente, Lucas denuncia a cegueira das estruturas religiosas e políticas que se recusam a mudar. A geração que pede sinais é a mesma que ignora a justiça, oprime os pobres e mantém a fé aprisionada em ritos vazios. A fé transformada em espetáculo, o cristianismo de palcos e holofotes, a teologia da prosperidade que promete bênçãos em troca de ofertas, e o clericalismo que sacraliza poder e status — todos esses fenômenos são ecos contemporâneos da geração que exige sinais, mas recusa o Evangelho. O Papa Francisco, já falecido, lembrava em seus escritos e discursos que a Igreja não deve se fechar em Nínives de muros simbólicos, mas deve abrir-se às periferias existenciais (Evangelii Gaudium, nn. 102–104). A conversão individual, quando se traduz em compromisso social, torna-se sinal vivo do Cristo que transforma. As lágrimas de arrependimento não são apenas emoção pessoal; são catalisadoras de justiça (Gaudium et Spes, nn. 63–66) e de fraternidade (Fratelli Tutti, n. 222).

A patística reforça a dimensão existencial desse sinal. São João Crisóstomo, Orígenes e Agostinho destacam a força purificadora das lágrimas e do arrependimento; Tertuliano comenta que o coração contrito é mais eficaz que sacrifícios materiais. Psicologia e antropologia bíblica convergem ao mostrar que cinza, jejum e choro são expressões universais da conversão e da humildade diante de Deus. Os sinais de Deus não estão nos holofotes, mas no cotidiano: o cuidado do próximo, o serviço humilde, a resistência à injustiça, a compaixão silenciosa. Como Davi, Pedro ou a pecadora de Lucas 7, a experiência do perdão transforma vidas e molda corações.

Filosoficamente, o sinal de Jonas confronta o drama da liberdade humana: Deus convida, mas não obriga; a conversão é um salto de fé, um exercício existencial de confiança e entrega. Kierkegaard lembraria que a fé é salto no absurdo: não há evidência objetiva do amor divino, mas há sinais vivos — perdão, restauração, encontro, compaixão. Assim, o sinal de Cristo é ético, existencial e social: chama à responsabilidade, à solidariedade, à transformação concreta do mundo.

No Tempo Comum, tanto na Segunda-feira da 28ª semana quanto na Quarta-feira da Segunda Semana da Quaresma, Deus nos ensina a ver o sinal de Jonas em cada gesto simples de amor. É no comum que o Reino se constrói: na mãe que ora pelo filho distante, no enfermeiro que consola o moribundo, no trabalhador que resiste à exploração, no padre que celebra com humildade e serve com compaixão. É no silêncio da fidelidade cotidiana que o Filho do Homem se revela, discretamente, porém com eficácia transformadora. O sinal de Jonas continua ecoando na história: ele nos chama a descer aos próprios abismos, reconhecer medos e limitações, aceitar o ventre do peixe como espaço de recomeço, e emergir renovados, prontos para transformar o mundo por gestos de amor, não por milagres espetaculares. Que o sinal de Jonas, transfigurado no Filho do Homem, desperte em nós a coragem da conversão, a alegria do perdão e a serenidade da fé que percebe Deus no ordinário da vida. Que não esperemos sinais do céu quando o Céu já habita entre nós. Que, no silêncio do Tempo Comum, reconheçamos o milagre escondido: o da misericórdia que renova, o da presença que permanece, o do amor que salva.



🕊️ DNonato – Teólogo do Cotidiano