No 21º Domingo do Tempo Comum do Ano C, a liturgia é a seguinte: Isaías 66,18-21, salmo 116(117),1.2 (R. Mc 16,15); Hebreus 12,5-7.11-13 e Lucas 13,22-30 também proclamado e na quarta-feira da 30ª do Tempo Comum do ano impar
No Evangelho Lucas nos apresenta uma mensagem exigente e desafiadora no caminho com Jesus rumo a Jerusalém que vai muito além de um deslocamento geográfico; é entrar no coração do mistério da entrega, da cruz e da revelação plena do Pai. Jerusalém se torna o ponto de convergência do discipulado, o lugar onde o amor de Deus se manifesta em sua exigência, e cada decisão do discípulo revela a autenticidade de sua fé. Caminhar com Ele significa atravessar um desfiladeiro estreito, que, embora desafiante, conduz à vida verdadeira, à libertação e à participação no Reino prometido desde a criação, quando Deus chamou a humanidade à comunhão, à responsabilidade e ao serviço mútuo (Gn 1,28-30; 2,18).
O evangelho de hoje se articula intimamente com as demais leituras no mosaico liturgico do dia com Isaías 66,18-21, o Salmo 116(117) e Hebreus 12,5-7.11-13. Isaías anuncia a universalidade do plano divino, chamando todos os povos à adoração, ecoando a promessa feita a Abraão de ser bênção para todas as nações (Gn 12,3). O salmo enfatiza a alegria da missão e a fidelidade exigida pelo Reino, enquanto Hebreus nos lembra que a fé demanda disciplina, perseverança e coragem diante das adversidades, como Jesus mesmo demonstra na oração do Getsêmani (Lc 22,42-44). A exortação: “Esforçai-vos por entrar pela porta estreita” (Lc 13,24) se torna, assim, um convite a uma vida radicalmente comprometida com Deus, exigindo desapego, fidelidade e coragem para enfrentar as dificuldades do caminho.
A pergunta humana: “Senhor, são poucos os que se salvam?” (Lc 13,23) revela a tentação de reduzir a salvação a estatísticas, privilégios ou pertenças externas. Jesus desloca o foco: não importa o número, mas a qualidade da resposta a Deus. Mateus reforça esta advertência em 7,13-14, destacando a porta estreita que conduz à vida, e em 25,10-12, sublinha a necessidade de discernimento para entrar no Reino. Marcos (10,17-31) evidencia que o apego a bens materiais e poder impede a entrada na vida plena, enquanto João (10,7.9) apresenta Jesus como a porta viva. O juízo final em Mateus 25,31-46 vincula a salvação à prática da justiça, misericórdia e amor ao próximo, revelando que o seguimento autêntico é um compromisso integral que transforma atitudes e relacionamentos.
O Antigo Testamento oferece múltiplos paralelos que reforçam esse chamado ao caminho estreito. Deuteronômio 30,15-20 nos convida a escolher a vida através da fidelidade a Deus; Provérbios 4,18-19 contrapõe o caminho do justo e do perverso; Salmo 1 mostra que o justo floresce, enquanto o ímpio perece. Jonas e a conversão de Nínive (Jn 3,10-4,11) nos lembram que Deus chama todos, inclusive os “outsiders”. Ester (Est 4,12-17) e Daniel (Dn 6,1-28) exemplificam coragem e fidelidade diante de sistemas opressores. Moisés confronta Faraó sobre justiça e libertação (Ex 5,1-9), e Elias desafia reis e falsos profetas (1Rs 18,20-40). Cada narrativa evidencia que Deus exige autenticidade, fidelidade e coragem, não apenas formalismo ou conformidade. Miquéias 6,6-8 e Oséias 6,6 reiteram que Deus busca compromisso real, amor e prática da justiça.
Historicamente, as primeiras comunidades cristãs enfrentavam perseguição e a tentação de acomodar-se ao poder do Império Romano. Hoje, portas largas aparecem na forma de ideologias políticas que instrumentalizam símbolos cristãos, cultos mercantilizados, clericalismo e estruturas de poder que prometem segurança, mas conduzem à alienação. A antropologia bíblica nos ensina que fomos feitos para a relação e a alteridade (Gn 2,18; Sir 6,14-17), mas o pecado nos fecha em nós mesmos. A sociologia evidencia que sistemas econômicos, meritocracias e exclusões estruturais reproduzem portas largas, enquanto a psicologia mostra que o apego a posses, status, líderes autorreferenciais e narcisismo digital impede a entrega ao mistério de Deus. Assim, o caminho estreito não é apenas espiritual, mas ético, social e relacional, exigindo discernimento, coragem e responsabilidade.
A crítica de Jesus à religiosidade superficial é direta e incisiva: “Comemos e bebemos diante de ti, e tu ensinaste em nossas praças” (Lc 13,26). Mateus 7,21 já advertira: “Nem todo aquele que me diz: Senhor, Senhor” entrará no Reino. Isaías denunciava sacrifícios sem justiça (Is 1,11-17); Amós, festas vazias (Am 5,21-24); Jeremias, a profanação do templo (Jr 7,4-11). Liturgias sem justiça, templos cheios sem amor, religiosidade instrumentalizada: estas são as portas largas que Jesus denuncia. Ele nos mostra que a fé autêntica exige transformação do coração, ação ética, compromisso com os irmãos e coerência entre palavra e prática (Ez 36,26).
As linhas teológicas deformadas reproduzem a lógica das portas largas: a teologia da prosperidade reduz Deus a fórmula de sucesso (Jr 17,5-8); a teologia do domínio instrumentaliza a fé para legitimar poder e ódio; o individualismo restringe a fé à experiência privada; a fé-mercadoria transforma templos em palcos e pastores em celebridades. O clericalismo, denunciado pelo Papa Francisco, transforma o ministério em casta, fechando portas em vez de abri-las. Como ele dizia: “Uma Igreja que não serve, não serve para nada”. A porta estreita, portanto, não é um conceito abstrato, mas um chamado concreto à transformação, serviço e entrega. A tradição patrística reforça este ensino. Santo Agostinho alertava que muitos que parecem estar dentro estão fora, e vice-versa. São João Crisóstomo denunciava clérigos que buscavam luxo em vez de serviço. Gregório Magno enfatizava que o verdadeiro pastor deve cheirar a ovelha, não o incenso do poder. João Damasceno e Basílio de Cesareia destacavam humildade, desapego e serviço justo. Santo Irineu de Lyon lembrava que a fé autêntica se mede pelo amor ao próximo. Clemente de Alexandria, Orígenes e Tertuliano completam essa tradição, mostrando que o caminho estreito é coragem, autenticidade e fidelidade ao Evangelho.
A história confirma a advertência das Escrituras e da patrística: desde o império romano até regimes modernos, o sagrado foi instrumentalizado. Hoje, a extrema-direita usa símbolos cristãos para exclusão e ódio. A porta larga do poder seduz, mas a porta estreita da cruz conduz à vida verdadeira, ética, relacional e espiritual. No final, Jesus entrega o grande paradoxo: “Há últimos que serão primeiros, e primeiros que serão últimos” (Lc 13,30). É a lógica do Magnificat: Deus derruba os poderosos e eleva os humildes (Lc 1,52). Abel, Moisés, os profetas e a cruz mostram que o Reino é oprimido, mas triunfa na entrega, na justiça e no amor. A porta estreita é estreita apenas para quem carrega bagagens de poder, riqueza e vaidade; para os pobres, os pequenos e os que confiam, ela é ampla, porque neles já habita o Reino.
A porta estreita se conecta a outros textos: Deuteronômio 30,15-20, Provérbios 4,18-19, Salmo 1 e Mateus 25,31-46. O evangelho não é apenas conhecimento, mas prática e entrega. Cada leitura litúrgica nos lembra que a vida plena só se encontra na fidelidade a Deus e no amor aos irmãos. A provocação profética é clara: não basta frequentar a praça, o templo ou repetir fórmulas. A porta estreita é conversão do coração, entrega sem reservas, desapego que liberta. É disciplina de amor (Heb 12,5-7.11-13). É anúncio missionário, como proclama o salmo: todos os povos são chamados. É justiça, como gritam os profetas. É comunhão, como pede o Evangelho. É humildade, como insistem os Padres. É serviço, como exortava o Papa Francisco: simplicidade, renúncia e entrega.
É preciso destacar todos os homens e mulheres das nossas comunidades que priorizam justiça social, solidariedade e cuidado com o próximo; movimentos que resistem à manipulação religiosa; testemunhos de fé que preferem o anonimato do serviço à visibilidade e prestígio. A porta estreita exige coragem, discernimento, autenticidade e amor incondicional, atravessando séculos e realidades humanas, desde Jerusalém do primeiro século até nossas cidades e igrejas hoje.
DNonato - Teólogo Cotidiano
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