quarta-feira, 15 de outubro de 2025

Um breve olhar sobre Lucas 11,47-54

O Evangelho de Lucas 11,47-54 é proclamado na quinta-feira da 28ª semana do Tempo Comum, em meio a um ciclo de leituras que revelam a tensão entre o desígnio amoroso de Deus e a recusa humana em acolhê-lo. Nesse mesmo dia, a liturgia propõe a carta aos Efésios (1,1-10), na qual Paulo anuncia o projeto divino de recapitular todas as coisas em Cristo. É belo e provocante perceber o contraste: enquanto o Apóstolo contempla a unidade de todas as criaturas no amor, Jesus denuncia o fechamento religioso que mata os profetas. A Igreja reza, portanto, entre dois mundos — o do plano de Deus, que reconcilia, e o do coração humano, que ainda resiste.

jesus pronuncia palavras cortantes: “Ai de vós, que construís os túmulos dos profetas, mas vossos pais os mataram! Assim sois testemunhas e aprovais as obras de vossos pais” (Lc 11,47-48). O termo “ai” não é maldição, mas lamento. É a dor de Deus diante da cegueira humana. O grego ouai exprime compaixão indignada, como um suspiro de quem ama e sofre com o endurecimento do outro. Jesus não fala como juiz, mas como amante ferido: lamenta o destino de um povo que se acostumou a calar as vozes que o chamavam à conversão.O contexto é tenso: os fariseus e doutores da Lei se consideravam guardiões da tradição, mas haviam transformado a Lei em muralha. Construíam túmulos para os profetas não por veneração verdadeira, mas para controlar sua memória. Ao sepultar os profetas, sepultavam a exigência de conversão que vinha com eles. É mais fácil homenagear o mártir do passado do que escutar o profeta do presente. Assim, a hipocrisia religiosa se perpetua sob o disfarce da piedade.

A ironia de Jesus é amarga: aqueles que honram os profetas mortos são os mesmos que perseguem os vivos. O profetismo é sempre incômodo, porque desinstala, desmascara e denuncia. Do Gênesis ao Apocalipse, o fio da história bíblica é o mesmo: Deus fala, e o homem resiste. Desde o sangue de Abel até o de Zacarias, a Escritura narra uma longa genealogia da violência contra a verdade. O Evangelho de Lucas retoma essa linha para mostrar que Jesus é o ponto culminante dessa história — o último e definitivo Profeta, o Verbo que encarna a Palavra que o mundo tenta silenciar.

Mas a sabedoria de Deus é paciente. “Eu lhes enviarei profetas e apóstolos”, diz o texto, “a uns matarão e perseguirão” (Lc 11,49). Essa Sabedoria, personificada no Antigo Testamento, é expressão do Espírito que sopra onde quer. Negar o profeta é apagar o Espírito. E apagar o Espírito é sufocar o sopro mesmo da vida. Onde o Espírito é livre, há profecia; onde o Espírito é controlado, há túmulos.

O “ai” de Jesus, portanto, é também um grito pneumatológico: é o Espírito que chora dentro dele, lamentando o endurecimento humano. A profecia nasce sempre do Espírito, não da vaidade. Ela é sopro, não discurso. É fogo que aquece e queima. Por isso os profetas nunca são neutros: eles trazem o oxigênio da verdade, e o mundo os asfixia.

Sabemos que o  profeta é o mediador entre o divino e o humano. Vive a tensão entre o céu e a terra, entre a transcendência e o chão da história. Em toda cultura, ele representa a voz da alteridade — o Outro que nos convoca a sair de nós mesmos. O fariseu, ao contrário, teme a alteridade: quer um Deus espelho, não um Deus outro. Quer um Deus que confirme suas certezas, não um Deus que o desinstale. Por isso, o fariseu não suporta o profeta. A profecia é a pedagogia da alteridade: nela aprendemos que o rosto do outro é a primeira página do Evangelho.

O texto denuncia uma religião que espiritualiza a injustiça. Aqueles que matam os profetas o fazem em nome da ordem, da tradição, da pureza doutrinal. São defensores da moral, mas traidores da vida. Transformam a fé em instrumento de poder e o sagrado em moeda. É o mesmo mecanismo que sustenta, hoje, as teologias da prosperidade e do domínio. A religião-mercado vende milagres como produtos e transforma Deus em patrocinador de sucesso. É a nova idolatria: dourada, triunfalista, espetacular. Uma espiritualidade líquida, na expressão de Zygmunt Bauman, em que o sagrado se consome e se descarta conforme o humor do mercado.

O profeta, no entanto, não se curva a essa lógica. Ele não vende conforto, oferece conversão. E por isso é sempre perseguido. Quando o púlpito vira palco, o altar se torna vitrine e o Evangelho se reduz a marketing, os profetas se tornam subversivos perigosos. Mas são eles que mantêm acesa a chama da autenticidade espiritual..Do ponto de vista psicológico, o fariseísmo é o mecanismo de defesa da alma religiosa. Freud chamaria de recalque da verdade; Jung, de sombra espiritual. O ser humano teme o profeta porque ele obriga a olhar para dentro. O profeta é o espelho que revela o que escondemos sob nossas certezas. Carl Rogers diria que a autenticidade é a base da maturidade. O fariseu, então, é o imaturo espiritual — aquele que vive de máscaras, com medo da transparência. A religião, quando se torna disfarce do ego, mata o Evangelho.

Nietzsche denunciava  a religião que reprime a vida, e Jesus denunciava  exatamente isso: a fé usada para dominar. Hannah Arendt alertou que o mal se banaliza quando o coração se acostuma à injustiça. E é disso que fala o Evangelho: a banalização do mal em nome do bem. Quando a fé se torna rotina, o Evangelho morre no hábito. A palavra “ai” é o choque necessário para despertar a consciência..A patrística reconheceu a atualidade desse perigo. Santo Agostinho advertia: “Ai daqueles que amam mais a honra dos homens do que a glória de Deus, pois constroem monumentos aos santos e matam a verdade que os santos pregaram.” João Crisóstomo denunciava que os ministros da Igreja podem tornar-se cúmplices da morte espiritual do povo quando buscam prestígio em vez de serviço. Orígenes acrescentava que o profeta vive já no tempo de Deus, e por isso é sempre estrangeiro entre os homens — a história tenta domesticá-lo, mas ele fala com acento do céu.

Essa denúncia se dirige também a nós, Igreja do século XXI. O clericalismo, que o Papa Francisco tantas vezes denunciou, é a forma moderna de trancar a porta do Reino. “Ai de vós, doutores da Lei, que tomastes a chave da ciência: vós mesmos não entrastes e impedistes os que queriam entrar!” (Lc 11,52). A imagem da chave é símbolo poderoso: representa o acesso ao mistério. Quando o ministro se coloca como dono da chave, transforma a mediação em barreira. O Evangelho não precisa de guardiões, mas de testemunhas.

A Gaudium et Spes recorda que o homem só se realiza no dom sincero de si. A Evangelii Gaudium denuncia o clericalismo como desfiguração da missão. E a Fratelli Tutti amplia o horizonte: a fé só é verdadeira quando gera fraternidade. O profeta, portanto, é o guardião da comunhão. Ele reconecta o humano ao divino, o pobre ao rico, o centro à periferia. É a ponte viva entre mundos que o medo separa.

A exegese nos mostra que, após essas palavras, “os escribas e fariseus começaram a pressioná-lo fortemente e a armar-lhe ciladas” (Lc 11,53). É o início da perseguição. A luz provoca a escuridão. O mesmo Espírito que o impulsiona à verdade desperta a ira dos que preferem as trevas. Assim também na história: quanto mais o Evangelho é fiel, mais ele incomoda os poderes deste mundo. O sangue dos profetas continua a clamar da terra (Ap 6,9).

Mas mesmo entre os escombros da religião morta, o Espírito sopra. O mesmo vento que ergueu Ezequiel diante do vale de ossos secos continua a percorrer a história. Há sempre um resto fiel, um pequeno grupo que, entre feridas e esperança, resiste ao império da morte e prepara o caminho da vida. A profecia é o suspiro de Deus que insiste.

Hoje, a perseguição aos profetas se dá por meios sutis. Não se apedreja mais, mas se cancela. O martírio acontece em pixels e algoritmos. As redes sociais se tornaram tribunais públicos onde a superficialidade julga a profundidade. O Evangelho da vida é abafado pelo ruído do espetáculo. Mas o profeta continua a falar, mesmo que sua voz pareça frágil. É no sussurro do vento, e não no trovão, que Deus se revela (1Rs 19,11-13).

Há, portanto, uma dimensão espiritual que atravessa o texto: a vitória silenciosa da vida. O Reino de Deus não triunfa pela força, mas pela fidelidade. A cruz é o túmulo e o berço da profecia. No corpo transpassado de Cristo, o sangue de todos os profetas encontra sentido. O profetismo não termina no Gólgota; ressuscita com o Ressuscitado.

O cristão autêntico, portanto, é aquele que assume o risco do profeta. Ser discípulo é viver na contramão da cultura da morte. É preferir a verdade à conveniência, a compaixão ao poder, o serviço ao prestígio. É enfrentar o sistema com o poder desarmado do amor. A fé autêntica é sempre subversiva, porque nasce da liberdade interior do Espírito.

Assim, o texto de Lucas não é apenas denúncia — é também promessa. Promessa de que o Espírito continua a suscitar profetas em cada geração. Talvez não usem batina, talvez não falem em templos, talvez cantem nas ruas ou escrevam nas redes; mas sua voz é a mesma: a da Sabedoria que clama nas praças, convidando à vida. Felizes os que são perseguidos por causa da justiça, porque deles é o Reino dos Céus.

E quando o último túmulo for aberto, quando o último profeta silenciado for reabilitado pela verdade, compreenderemos que o Reino de Deus não é o império dos poderosos, mas a comunhão dos que amam. Porque os túmulos dos profetas se tornarão berços da esperança. Toda vez que o amor renasce em meio à perseguição, o Reino da Vida rompe o silêncio da pedra e faz do sepulcro um altar de ressurreição



DNonato – Teólogo do Cotidiano

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