A passagem de Lucas 6,43-49 é proclamada no sábado da 23ª semana do Tempo Comum, conforme o Leccionário Litúrgico da Igreja Católica. Neste sábado, a Palavra nos chama a refletir sobre a solidez de nossa vida espiritual e a coerência entre fé e prática, lembrando que ouvir a Palavra sem vivê-la é como construir sobre areia: fragilidade diante das tempestades da vida. Jesus nos apresenta duas imagens profundas: a árvore que se conhece pelos frutos e a construção que se mantém ou desmorona conforme o alicerce. O vento que sacode a árvore, a chuva que inunda a terra, o barro que cede sob os pés são imagens das tempestades internas e externas que todos enfrentamos. Como afirma o Salmo 1,3: “Ele é como árvore plantada junto a correntes de águas, que dá fruto no tempo certo, e cuja folha não murcha; tudo o que fizer prosperará.”
Quando Jesus fala da árvore boa que produz frutos bons e da árvore má que produz frutos ruins, ele nos convida a um exame profundo do coração. Lucas 6,45 afirma: “Do coração procedem as más intenções e as boas intenções; é disso que a boca fala.” Mateus 7,16-20 reforça: “Pelos frutos os conhecereis.” Isaías 5,1-7 denuncia o fracasso de uma vinha que deveria produzir frutos de justiça, mas que apenas produz clamor e sangue; Jeremias 17,7-8 contrapõe a confiança em Deus à esterilidade daqueles que se afastam da rocha divina. Provérbios 11,30 lembra que “o fruto do justo é árvore de vida, e quem ganha almas é sábio”, enquanto Salmo 92,13 descreve: “O justo florescerá como a palmeira, crescerá como o cedro do Líbano.” Lucas enfatiza que os frutos se manifestam concretamente: justiça, misericórdia e solidariedade são sinais de uma fé viva, não meras palavras.
Jesus elogia os pobres, denuncia os ricos e satisfeitos, e instrui seus discípulos a amar inimigos, abençoar os que os maldizem, fazer o bem sem esperar retribuição (Lc 6,20-36). A árvore boa transforma relações e denuncia injustiças; a fé encarnada desafia o individualismo, a fé como mercadoria e a teologia da prosperidade que promete sucesso em troca de dízimos. Líderes que vendem bênçãos financeiras podem parecer frutíferos, mas suas raízes apodrecem. A árvore ruim, por sua vez, produz frutos de aparências e envenena a vida alheia, seja pelo clericalismo opressor, seja por fé espetáculo que entretém sem formar, como alerta Amós 5,21-24: “Não quero a vossa festa, nem me agrada o vosso culto; traga-me justiça como água, e retidão como riacho perene.”
A parábola da casa construída sobre a rocha e sobre a areia convida à profundidade. Lucas 6,48 enfatiza que o homem que constrói sobre a rocha cavou fundo e pôs o alicerce sobre a pedra firme. O cavar simboliza esforço, discernimento e compromisso. No Oriente Médio, casas sobre areia eram vulneráveis às cheias; apenas o alicerce profundo resistia. A rocha é Cristo, a Palavra encarnada que sustenta a vida diante das tempestades (Mt 7,24-25; Mc 4,1-20; Is 28,16). A areia representa falsas seguranças: riqueza, prestígio, autoridade clerical, fé como investimento pessoal. Ouvir sem praticar gera fragmentação, angústia e hipocrisia (Tg 1,22-25). Kohlberg observa que a maturidade ética se mede na ação; ouvir sem agir mantém a moral em estado infantil.
A árvore que produz frutos bons e a casa firme sobre a rocha revelam a integração de fé, razão, emoção e ação. Comunidades que constroem sobre areia – luxo ritualístico, poder clerical, fé espetáculo – desmoronam diante de crises. A crítica de Jesus é direta à teologia do domínio e da prosperidade: fé que se transforma em mercadoria promete sucesso, mas não sustenta vidas. Kierkegaard lembra que a fé exige salto existencial; Hannah Arendt alerta que superficialidade conduz à banalidade do mal. Como Mateus 23,23-24 adverte, não se deve negligenciar justiça, misericórdia e fé.
A patrística reforça essa perspectiva: Santo Agostinho ensina que ouvir sem praticar é olhar o reflexo sem entrar na água; São João Crisóstomo destaca a importância da firmeza do fundamento; Orígenes afirma que o que não está enraizado na rocha divina será levado pela maré da vaidade; Gregório de Nissa reforça que a sabedoria divina constrói alicerces invisíveis, mas firmes. A tradição da Igreja confirma que fé autêntica se manifesta na coerência entre palavra, ação e comunidade. O Concílio Vaticano II denuncia a busca de riqueza e poder em detrimento da dignidade humana; Evangelii Gaudium enfatiza que a fé transforma o mundo e convoca à ação concreta; Fratelli Tutti alerta para sociedades construídas sobre egoísmo e exclusão.
A humanidade sempre buscou fundamentos sólidos. A pedra simboliza estabilidade e divindade em diversas culturas. Construir sobre a rocha é gesto existencial: buscar segurança última naquilo que transcende. Pseudorrochas – dinheiro, prestígio, autoridade clerical – conduzem à ruína; Cristo sustenta vidas e gera comunidade. Provérbios 24,3-4 nos lembra: “Com sabedoria se edifica a casa, e com discernimento ela se firma; com conhecimento, os cômodos se enchem de todas as riquezas preciosas e deleitosas.”
O clericalismo é diretamente desafiado: a rocha não é a autoridade humana, mas a Palavra encarnada que exige conversão, serviço e humildade. Verdadeira autoridade é do discípulo que escuta, pratica e constrói com os outros, não do líder que se impõe. A Igreja é casa construída sobre a rocha, não fortaleza sobre areia. A Palavra de Jesus é alicerce que sustenta a vida comunitária; coerência entre fé e prática garante a solidez. O Papa Francisco, já falecido, lembrava que a Igreja deve ser uma comunidade de discípulos missionários, não uma instituição que busca poder ou prestígio. Pergunta-se ao final:
Qual é a raiz da minha vida?
Sobre qual rocha tenho construído meu ser?
A resposta define não apenas o presente, mas também a resistência às tempestades futuras, reafirmando que a fidelidade à Palavra é a única base que não se abala.
A liturgia da Segunda-feira da 21ª semana do Tempo Comum nos coloca diante de um dos discursos mais incisivos de Jesus, registrado em Mateus 23,13-22, que se prolonga, de diversas formas, ao longo da semana, como uma pedagogia litúrgica que nos convida à conversão gradual e à reflexão profunda. O evangelho proclamado denuncia a hipocrisia religiosa, o formalismo e a manipulação da Lei, mostrando que o Reino não convive com a religião de fachada, mas com a verdade do coração. Marcos 12,38-40 e Lucas 11,37-52 descrevem de forma semelhante a atitude dos escribas e fariseus, enquanto Lucas 6,24-26 contrapõe os “ais” às bem-aventuranças. A repetição sinótica evidencia que a Palavra de Jesus é núcleo central de sua missão profética: Ele não denuncia circunstâncias isoladas, mas padrões que fecham o coração humano e a porta do Reino.
Jesus inicia com os “ais”, expressão que na tradição profética não é grito de raiva, mas lamentação dolorosa e anúncio de juízo. Isaías já usara o “ai” como denúncia da injustiça social: “Ai dos que ajuntam casa a casa, que anexam campo a campo, até não haver mais espaço” (Is 5,8). Amós clama contra o conforto que cega para a opressão: “Ai dos que vivem tranquilos em Sião e se sentem seguros em Samaria” (Am 6,1). Habacuque denuncia a exploração alheia: “Ai daquele que multiplica o que não é seu, acumulando riqueza à custa do sofrimento alheio” (Hb 2,6). Sofonias grita contra a cidade corrompida e opressora: “Ai da cidade rebelde e manchada, da cidade opressora!” (Sf 3,1). Esses “ais” se consolidam em Jesus como continuidade da tradição profética, denunciando injustiça, falsa religiosidade e manipulação da Lei, agora no contexto do Segundo Templo, em que escribas e fariseus detinham autoridade espiritual, mas muitas vezes desviavam o povo da liberdade e da justiça que a Lei buscava promover.
No Novo Testamento, os “ais” ganham contornos específicos. Lucas 6,24-26 contrapõe bem-aventuranças e avis: “Ai de vós, ricos, porque já tendes a vossa consolação... Ai de vós, quando todos vos elogiam...”. Marcos 12,38-40 denuncia escribas que exploram as viúvas, ostentam longas orações e buscam prestígio humano; Mateus 7,21-23 ecoa o mesmo espírito: não basta invocar o Senhor, é preciso fazer a vontade do Pai. Os paralelos sinóticos reforçam que a preocupação de Jesus é estrutural, denunciando padrões de religiosidade que endurecem corações, promovem exclusão e fecham portas ao Reino.
A exegese de Mateus 23,14-22 evidencia como juramento, ouro do templo e piedade aparente eram instrumentos de controle, valorizando o acessório acima do essencial. Psicologicamente, a hipocrisia esconde fragilidade, medo e necessidade de poder; sociologicamente, estruturas que se alimentam do medo reproduzem desigualdade; antropologicamente, ritos desconectados da vida tornam-se instrumentos de opressão; filosoficamente, ecoa Hannah Arendt sobre a banalidade do mal: estruturas aparentemente neutras produzem injustiça sistemática quando ética e compaixão são substituídas pelo formalismo.
A patrística aprofunda essa leitura: Santo Agostinho, em De Sermone Domini in Monte, vê nos “ais” pedagogia de Cristo que corrige corações com dor amorosa; Orígenes denuncia os que usam a Palavra como instrumento de poder; São João Crisóstomo ressalta que o grito de Jesus não é ódio, mas amor ferido. Tertuliano alerta que a justiça da fé é inseparável da coerência de vida; Gregório de Nissa denuncia a diferença entre aparência externa e vida interior autêntica. A tradição cristã mantém a coerência do ensinamento: a religião que escraviza é detestável, mas a fé vivida com verdade, coerência e misericórdia é caminho de salvação.
O Magistério contemporâneo reforça essa análise: Lumen Gentium lembra que a Igreja é ao mesmo tempo santa e sempre necessitada de purificação (LG 8). Evangelii Gaudium denuncia mundanidade espiritual e clericalismo que fecham o acesso ao Reino (EG 93-97, 102). Gaudium et Spes (63-66) aponta que estruturas sociais injustas sustentam alienação e impedem justiça e misericórdia. Francisco alerta contra a mercantilização da fé, ministérios que buscam likes e aprovação, e práticas que reproduzam hipocrisia farisaica.
Essas observações permitem um diálogo crítico com distorções teológicas contemporâneas: a teologia da prosperidade, ao prometer bênçãos em troca de dinheiro, reproduz a hipocrisia dos fariseus; a teologia do domínio instrumentaliza a fé para poder político ou social; o individualismo religioso transforma fé em mercadoria; o clericalismo privilegia ministros sobre a comunidade, fechando portas ao Reino. Cada distorção impede a vida plena em Deus e fecha portas à autenticidade do Evangelho.
Os “ais” também revelam a dimensão antropológica e espiritual: Deus quer autenticidade, misericórdia e serviço, não aparência ou formalismo. Cada discípulo é chamado a examinar o próprio coração, reconhecendo máscaras, preconceitos e interesses próprios. A fé plena integra coração, mente e ação, conduzindo à justiça, à compaixão e à comunhão. Jesus lamenta Jerusalém (Mt 23,37), mostrando que o “ai” é sempre acompanhado de misericórdia e convite à conversão, à coragem e à responsabilidade ética.
Desde Isaías até Apocalipse, os “ais” revelam que a denúncia divina permanece: formalismo, manipulação, opressão e hipocrisia continuam ameaças à vida plena. Mas a última palavra é esperança: “Eis que faço novas todas as coisas” (Ap 21,5). Cada “ai” de Jesus é denúncia e convite: a fé plena liberta, integra vida e coração, transforma comunidades, promove justiça, misericórdia e autenticidade, mantendo coerência entre tradição profética, patrística e Magistério. É uma pedagogia contínua que atravessa séculos, chamando-nos a viver uma fé que abre portas, acolhe e ama como Cristo nos ensinou.
A geração que pede sinais e o sinal que exige conversão
Os maus cristãos não têm fé, mas também não abjuram; escoram-se numa pretensa neutralidade, como se pudessem suspender indefinidamente o compromisso com a Verdade. Dizem: “Se Deus me desse um sinal, eu acreditaria…”. A voz que ecoa hoje nos púlpitos, nas redes e nos parlamentos travestidos de púlpitos, é semelhante à dos fariseus e escribas: “Mestre, queremos ver um sinal realizado por ti” (Mt 12,38). Mas não é a fé que fala — é a suspeita disfarçada, a religiosidade cínica que deseja manipular Deus com performances visíveis. É a lógica do tentador que sugere a Jesus lançar-se do pináculo do Templo para obrigar os anjos a um milagre (Mt 4,6). Mas o Deus da revelação não é o Deus da chantagem espiritual.
Jesus desmascara esse espírito: é uma geração má e adúltera. A palavra grega usada para "adúltera" (moichalís) possui um peso simbólico denso: não se trata apenas da infidelidade conjugal no sentido sexual, mas da quebra da aliança com Deus, como denunciaram os profetas. A aliança entre Deus e Israel é apresentada como um matrimônio (Os 2,16-20; Jr 2–3; Ez 16; Ez 23), e toda idolatria é descrita como adultério. É o culto da aparência, do poder e da autopreservação — religiosidade sem relação, culto sem compaixão, doutrina sem misericórdia.
O escândalo do Evangelho é este: o sinal já foi dado, mas os que se dizem conhecedores da Lei, peritos da tradição e defensores do templo, não o reconhecem. Eles não são apenas ignorantes — são obstinados. São os que, como o rei Acaz nos dias de Isaías (cf. Is 7,10-14), recusam-se a confiar no Deus vivo. Quando o profeta oferece ao rei a chance de pedir um sinal, Acaz responde com falsa piedade: “Não pedirei, não colocarei o Senhor à prova” (Is 7,12). Mas não é reverência — é medo de se comprometer com o Reino. Diante disso, Deus mesmo dá o sinal: “Eis que uma virgem conceberá e dará à luz um filho, e ele se chamará Emanuel” (Is 7,14). Esse sinal — o da Virgem que dá à luz — é retomado em Mateus no início do evangelho (Mt 1,23), unindo a promessa messiânica ao nascimento do Salvador. Agora, no capítulo 12, o mesmo evangelista nos mostra que aquele que é o sinal encarnado está diante dos olhos dos religiosos… e mesmo assim eles pedem mais.
Como não perceber a ironia profética?
O Emanuel está ali — o Deus-conosco — e ainda assim eles exigem um espetáculo. O sinal não é espetáculo para agradar aos sentidos, mas convite à conversão profunda. Este pedido por sinais não é novo nem exclusivo da geração de Jesus. Lucas registra uma passagem similar em que Jesus denuncia: “Esta geração é má; ela procura um sinal, mas nenhum sinal lhe será dado, a não ser o sinal de Jonas” (Lc 11,29). Marcos reforça a dureza do coração humano diante do milagre, que mesmo diante da evidência, permanece incrédulo (Mc 8,11-13). Esses ecos sinóticos revelam uma realidade humana perene: o medo do compromisso, a busca por segurança emocional, o desejo por controle da fé, que se manifesta em ansiedade e superficialidade. A fé genuína, por outro lado, exige risco, entrega e confiança no invisível. Mas essa resistência não é apenas teológica; é também psicológica. A fé implica vulnerabilidade — abrir mão do controle e do conforto ilusório. Muitos se agarram à dúvida como escudo para evitar o vazio e o risco do amor. O medo do fracasso, da rejeição, do sofrimento, bloqueia o salto para a confiança. É a “zona de conforto” da alma, que se recusa a entrar na profundidade do deserto interior, no silêncio do ventre onde Deus se faz presente.
Jesus recusa entregar-lhes um sinal conforme suas expectativas manipuladoras: “Nenhum sinal lhes será dado, a não ser o sinal do profeta Jonas” (Mt 12,39). E aqui se abre uma densidade simbólica que une a Escritura, a Tradição e a vida concreta. Jonas, lançado ao mar e engolido por um peixe (cf. Jn 2,1), é símbolo da descida aos infernos, da morte abraçada em solidariedade profética, da conversão pela dor e pela esperança. Sua permanência de três dias no ventre do monstro marinho ecoa agora como figura da permanência de Jesus no ventre da terra — não por fuga, como Jonas, mas por fidelidade. O túmulo se tornará útero; a morte, travessia; o escuro, anúncio de um novo dia. A ressurreição é o grande sinal que Jesus oferece, mas ela só será visível aos que creem com o coração — como Maria, que não pediu sinais, mas disse sim ao sinal.
Santo Agostinho interpreta que Jonas prefigura Cristo, pois “assim como Jonas esteve três dias e três noites no ventre do peixe, assim também Cristo esteve três dias e três noites no seio da terra. Um foi lançado para fora, o outro ressuscitou” (Sermão 97). Orígenes aprofunda: “O peixe que engole Jonas é a morte que engole Cristo; mas como Jonas não foi destruído, tampouco a morte pode reter o Senhor” (Homilia sobre Jonas). A alegoria une Antigo e Novo Testamento numa única história de amor e redenção.
A cidade de Nínive, capital do império opressor, simboliza o “inimigo” que se converte ao ouvir a Palavra. A ironia é que os estrangeiros ouvem e se arrependem, enquanto Israel persiste na dureza do coração. O profeta Efrém, no século IV, já dizia: “Nínive ouviu uma só pregação e se converteu; Israel escutou muitos profetas e permaneceu no orgulho” (Comentário sobre Jonas).
O símbolo da rainha do Sul (1Rs 10,1-10) aponta na mesma direção. Vem de longe, mulher, pagã — mas vem com desejo de sabedoria. Como Maria de Betânia, que escolhe “a melhor parte” aos pés de Jesus (Lc 10,42), ela representa os que ouvem e acolhem a Palavra. O Reino é escuta antes de ser milagre. E como ensina o Documento de Aparecida, a escuta verdadeira exige sair da zona de conforto: “Não se pode evangelizar permanecendo ao lado do poder, mas apenas caminhando com os que sofrem” (DAp, n. 363). Jesus é o novo Jonas, o verdadeiro profeta, o sinal que não vem do céu para deslumbrar, mas da terra para redimir. E é também maior que Salomão, pois sua sabedoria não enriquece palácios, mas acolhe os pobres e inquieta os sistemas religiosos. A rainha do Sul percorreu longas distâncias para ouvir a sabedoria humana de Salomão, mas ali estavam mestres da Lei que nem mesmo se moviam do lugar para acolher a Sabedoria encarnada, a Palavra feita carne.
A geração que pede sinais é a mesma que ignora o grito dos pobres, o clamor das vítimas, a presença silenciosa de Deus nos pequenos. É a geração de corações endurecidos que, mesmo vendo curas e escutando parábolas, não muda de caminho. São como Acaz, como os líderes de Jerusalém, como tantos hoje que exigem de Deus milagres enquanto sustentam estruturas de morte, opressão e indiferença.
Historicamente, os fariseus e escribas, ao colaborarem com o império romano e sustentarem privilégios religiosos e sociais, ilustram como sistemas humanos podem travar o progresso do Reino. Não é diferente hoje, quando poderes políticos e econômicos alimentam estruturas que mantêm a exclusão, a injustiça e a violência.
Quantos hoje pedem sinais, mas fecham os olhos à cruz que caminha em suas ruas?
A incredulidade de hoje não é ausência de evidência, mas excesso de ruído. A hipermodernidade, marcada pelo excesso de estímulos e pela cultura do espetáculo, nos impede de perceber o sinal silencioso que se esconde na rotina. Como lembra Bento XVI, “quem não reconhece a verdade no amor crucificado, não reconhecerá nenhum outro sinal” (Jesus de Nazaré, vol. 2). A fé não nasce de demonstrações — nasce da abertura ao Mistério. “Se não escutam Moisés nem os profetas, ainda que alguém ressuscite dos mortos, não acreditarão” (Lc 16,31).
A fé mercantilizada — teologia da prosperidade, da autoridade espiritual absolutista, da barganha com o sagrado — não compreende esse sinal. Como advertiu São João Paulo II: “Não é o milagre, mas a cruz, que é a prova do amor” (Redemptor Hominis, n. 9). E como disse Dom Hélder Câmara: “Os que têm medo da cruz não compreenderam nada do Evangelho.”
Hoje, muitas “igrejas” transformaram o milagre em espetáculo e a fé em mercadoria de consumo. Propagandas vendem curas, bênçãos e “unções” como produtos numa prateleira de supermercado espiritual. O altar vira palco e o púlpito, estúdio de marketing; as promessas de prosperidade financeira e saúde são ofertadas em troca de dízimos e submissão. A fé, que deveria ser caminho de conversão e entrega, reduz-se a uma relação de troca, um contrato emocional de ganhos rápidos, enganando corações sedentos e famintos por sentido. Essa espetacularização da fé gera dependência de performances, alimenta o clericalismo e mascara a pobreza real da vida, convertendo a graça em mercadoria e o Evangelho em show. É a religião vazia que denuncia Jesus em Mateus: “geração má e adúltera” que pede sinais, mas rejeita o sinal do amor crucificado. Vivemos hoje o paradoxo de uma geração que, sedenta por “sinais”, se contenta com a fé transformada em espetáculo. Como os fariseus que exigiam milagres visíveis, muitos se encantam com pregadores que acumulam milhões de seguidores e likes, transformando o Evangelho em espetáculo de curtidas e visualizações. Mas o Cristo que promovem não é o Cordeiro imolado, nem o Servo sofredor que abraça a cruz. É o bezerro de ouro da teologia da prosperidade, do domínio e da autoajuda vazia — um falso Messias fabricado para satisfazer o ego, inflar o orgulho e garantir o consumo religioso.
Este é o bezerro dourado do espetáculo midiático: um Cristo que não chama à conversão, mas confirma o ego e a idolatria do poder; um evangelho que não denuncia as estruturas de opressão, mas as legitima; uma fé que não se entrega, mas se exibe. A lógica do “milagre” vira mercadoria, e a cruz é substituída por aplausos e números de audiência. O Papa Francisco, em seu testemunho luminoso e profético, denunciou essa lógica em Evangelii Gaudium, quando falou da “idolatria do dinheiro” (n. 55), da “fé que esconde a verdade para favorecer os poderosos” (n. 218) e do clericalismo que “se fecha em castas e privilégios” (n. 104-109). É um sistema que evita a cruz e prefere o espetáculo, a mercadoria, o controle.
A fé não está nas grandes performances, mas nas pequenas fidelidades; não nos palácios eclesiásticos ou nas redes sociais, mas na sarça ardente do deserto (Ex 3), na manjedoura de Belém (Lc 2), na cruz de Jesus (Jo 19). A cruz é o sinal maior da presença divina: um amor que se entrega e se doa, um Reino que não se impõe pela força, mas cresce como fermento escondido na massa (Mt 13,33). O sinal de Jonas é o sinal do silêncio fecundo, do esvaziamento, da descida que gera vida. É o convite para que, como o profeta relutante, desçamos ao ventre da realidade, escutemos os gritos abafados do povo e anunciemos a justiça com ternura. É o grão de trigo que morre para dar fruto (Jo 12,24), o servo que não quebra a cana rachada nem apaga o pavio que fumega (Is 42,3).
Quem busca milagres para crer se torna escravo do que vê. Quem crê no sinal de Jonas é livre para amar mesmo na escuridão. E se hoje a fé parece enfraquecida, não é por falta de milagres, mas por excesso de distrações. É tempo de descer, como Jonas. De silenciar, como Cristo. De morrer, como o grão. Porque só no fundo da terra nasce o Reino. Ali, no invisível, Deus ainda faz novas todas as coisas (Ap 21,5).
O Papa Francisco nos recordou também, a partir da Fratelli Tutti, que a conversão pessoal e comunitária é inseparável da transformação social: “Ninguém se salva sozinho; a fraternidade e a amizade social são um caminho indispensável para a paz” (FT, n. 6). Assim, o chamado à conversão é também um chamado à justiça, à solidariedade e ao cuidado com o próximo. Que este sinal, o amor crucificado, seja para nós hoje o chamado urgente à conversão, à fidelidade que gera vida, e à esperança firme que resiste ao ruído e à superficialidade. Que não sejamos apenas espectadores do sinal, mas profetas e profetisas que desçam ao ventre da história para gerar vida, justiça e fraternidade.