quarta-feira, 10 de setembro de 2025

Um breve olhar sobre Lucas 6,27-38

O texto de Lucas 6,27-38  nos faz  um dos convites mais radicais e desafiadores do Evangelho: amar os inimigos, fazer o bem aos que nos odeiam, abençoar aqueles que nos amaldiçoam e rezar pelos que nos difamam. Trata-se de um ensinamento que não pode ser reduzido a uma moral frágil ou a um ideal inalcançável, mas de uma proposta transformadora de vida que subverte a lógica da vingança e da retaliação tão presentes na história humana. É nesse horizonte que a liturgia da Igreja retoma este texto em momentos distintos, como no 7º Domingo do Tempo Comum do ano C e também na quinta-feira da 23ª semana do Tempo Comum nos anos ímpares, recordando-nos de que a misericórdia não é um adorno, mas o próprio centro do agir cristão.

Ao propor o amor aos inimigos, Jesus não pede algo fora da realidade, mas revela a face mais profunda de Deus. “Sede misericordiosos, como vosso Pai é misericordioso” (Lc 6,36) é o eixo que sustenta todo o trecho. O apelo não é apenas para não revidar, mas para agir com generosidade além da medida, oferecendo a outra face (Lc 6,29), cedendo até aquilo que seria justo reter. Essa lógica desconcerta porque rompe com o ciclo da violência e coloca a dignidade humana acima da lei da retribuição. Aqui ressoam as palavras do Levítico: “Não te vingarás, nem guardarás rancor contra os filhos do teu povo. Amarás o teu próximo como a ti mesmo. Eu sou o Senhor” (Lv 19,18). Jesus, porém, expande esse horizonte ao incluir até o inimigo nesse amor, algo que vai além da tradição antiga e abre uma nova etapa na história da salvação. Esse chamado encontra eco em outras passagens. O Livro dos Provérbios já afirmava: “Se o teu inimigo tiver fome, dá-lhe de comer; se tiver sede, dá-lhe de beber, porque assim amontoarás brasas sobre a sua cabeça” (Pr 25,21-22). Paulo retoma esse ensinamento em Romanos 12,20, para mostrar que o amor desarma o ódio e revela o poder transformador do bem. O Salmo 103 nos lembra que “o Senhor é compassivo e misericordioso, lento para a cólera e cheio de bondade”, e é nessa mesma bondade que Jesus convida seus discípulos a se espelhar. Já o profeta Oséias apresenta a voz de Deus que prefere a misericórdia ao sacrifício (Os 6,6), antecipando a centralidade do perdão e da compaixão que culmina no Evangelho.

Nos sinóticos, o mesmo ensinamento reaparece. Mateus, no Sermão da Montanha, afirma: “Amai os vossos inimigos e rezai pelos que vos perseguem, para que vos torneis filhos do vosso Pai do céu, que faz nascer o sol sobre maus e bons e faz cair a chuva sobre justos e injustos” (Mt 5,44-45). Marcos também acentua a dimensão da medida com que julgamos e somos julgados: “Com a medida com que medirdes sereis medidos, e ainda vos será acrescentado” (Mc 4,24). E o próprio Lucas retomará em Atos dos Apóstolos esse espírito de comunhão, quando descreve as primeiras comunidades que partilhavam tudo e não deixavam ninguém em necessidade (At 2,44-45). O Evangelho inteiro é costurado por essa lógica do dom que supera a lógica da troca e da retribuição.

A exegese desse trecho mostra que o contexto em que Lucas escreve é marcado pela perseguição e pelo conflito. A comunidade lucana, vivendo tensões no meio do Império Romano e sob hostilidades internas e externas, precisava ouvir que o caminho da vingança não seria a solução. O “amai os vossos inimigos” não é uma frase para embelezar discursos, mas um princípio que garantia a sobrevivência da comunidade cristã sem perder sua identidade. A hermenêutica desse texto revela que, ao longo da história, a tentação de se curvar ao poder e de responder ao ódio com ódio sempre rondou a Igreja. A insistência de Jesus nesse mandamento nos recorda que o caminho da cruz e da entrega é a única via coerente com o Evangelho.

Esse mandamento radical de Jesus toca profundamente também a psicologia humana. O ressentimento aprisiona, o ódio corrói a alma e a vingança prolonga indefinidamente o sofrimento. Perdoar não significa esquecer ou relativizar o mal, mas deixar de ser escravo dele. O perdão liberta quem perdoa, mesmo quando o outro não se converte. A psicologia moderna mostra como pessoas que cultivam o rancor sofrem mais com ansiedade, depressão e doenças físicas, enquanto a prática do perdão está associada a maior saúde mental e bem-estar. É um gesto que cura interiormente, mas que também pode transformar relações sociais.

Vivemos rm uma  sociedades baseadas na lei da retaliação que  perpetuam ciclos de violência e exclusão. A cultura da vingança gera guerras intermináveis, linchamentos sociais e polarizações destrutivas. Já práticas de reconciliação e justiça restaurativa têm o poder de reconstituir o tecido social. Experiências em países marcados por ditaduras e genocídios, como as comissões da verdade, mostram que só é possível reconstruir comunidades se a verdade vier à tona e se houver disposição de restaurar laços rompidos pela violência. Jesus, ao pedir que se ame o inimigo, aponta para uma sociedade reconciliada, fundada não na lógica da exclusão, mas no reconhecimento da dignidade humana.

A filosofia também encontra ressonância aqui. Os estóicos já falavam sobre a importância de não se deixar dominar pelas paixões destrutivas. Mais tarde, Emmanuel Levinas mostrará que a ética nasce do rosto do outro, que nos convoca à responsabilidade. Jesus, porém, vai além: não se trata apenas de respeitar o outro ou de reconhecer a alteridade, mas de amá-lo, inclusive quando esse outro se torna hostil. É um salto qualitativo que subverte qualquer ética natural e nos coloca na dimensão do dom absoluto.

Toda cultura lida com mecanismos de violência e as sociedades tendem a projetar suas tensões sobre um inimigo comum. O Evangelho rompe com esse mecanismo ao revelar que Deus não quer sacrifícios humanos, mas misericórdia. Ao propor o amor aos inimigos, Jesus desarma a lógica sacrificial que fundamenta tantas culturas e propõe um caminho de reconciliação universal.

Esse texto também é denúncia contra teologias que distorcem a mensagem de Cristo. A teologia da prosperidade, que mede a bênção de Deus pelo acúmulo de bens, contradiz frontalmente a lógica de dar sem esperar nada em troca (Lc 6,35). A teologia do domínio, que busca legitimar a imposição de poder religioso e político, cai por terra diante da ordem de amar os inimigos e não de destruí-los. A fé individualista, que se fecha em experiências privadas de bem-estar, é desafiada pelo chamado a um amor social, que rompe barreiras de hostilidade. A fé como mercadoria, sustentada por pregadores digitais que vendem promessas em troca de curtidas e dízimos, não resiste diante da radicalidade de um Cristo que pede não lucro, mas entrega total. O clericalismo, por sua vez, que distancia o clero do povo e transforma a Igreja em uma casta de privilégios, é desmascarado quando Jesus coloca todos sob a mesma medida da misericórdia divina.

Documentos da Igreja reforçam essa leitura. O Concílio Vaticano II, na Gaudium et Spes, afirma que “o homem não pode encontrar-se plenamente a não ser pelo dom sincero de si mesmo” (GS 24), em sintonia com a lógica do dar e não esperar em troca. Também em GS 66, o Concílio denuncia as estruturas de exploração econômica que negam a dignidade humana, mostrando que a misericórdia precisa se traduzir em justiça social. A Evangelii Gaudium recorda que “a misericórdia é a maior de todas as virtudes” (EG 37) e denuncia as formas de idolatria do dinheiro que corroem a vida cristã. A Fratelli Tutti retoma a urgência do amor universal, pedindo que deixemos de lado fronteiras que separam e alimentam inimigos, para reconhecer em todos a dignidade de irmãos e irmãs (FT 193). Bento XVI, em Deus Caritas Est, também insiste que a caridade cristã não é filantropia, mas participação no amor mesmo de Deus, que não exclui ninguém.

Santo Agostinho dizia que “amar os inimigos é não ter inimigos”, pois quando o amor é verdadeiro, até quem nos persegue é visto como alguém a ser resgatado para a comunhão. São João Crisóstomo pregava que “nada nos torna tão semelhantes a Deus quanto estar prontos para amar até os inimigos”. Orígenes via nesse mandamento a confirmação de que a lei do amor supera a letra fria da lei antiga. São Basílio recordava que quem conserva o ódio não pode se aproximar do altar de Deus, pois a comunhão verdadeira exige reconciliação.

As implicações desse texto são profundamente atuais. Em tempos de polarizações políticas, discursos de ódio e manipulações religiosas, a palavra de Jesus soa como profecia. Amar os inimigos não significa conivência com injustiças, mas agir profeticamente contra a lógica de destruição, sem perder a humanidade. A misericórdia não é passividade, mas resistência ativa que rompe o ciclo da violência. É preciso denunciar a exploração, resistir à desigualdade, enfrentar os poderes que oprimem, mas sem cair na armadilha de reproduzir o mesmo ódio que nos fere. Aqui a fé cristã se torna fermento de uma nova sociedade.

O amor radical que Jesus propõe é, ao mesmo tempo, espiritual e político, pessoal e coletivo. Ele toca o íntimo do coração humano e repercute na organização social. Se cada um de nós vive esse chamado, não julgando nem condenando, mas perdoando e oferecendo com generosidade, experimentaremos uma transformação interior que reflete no mundo. O amor ao inimigo não é apenas uma atitude devocional, mas um caminho de libertação histórica. E como recorda o próprio Jesus: “Dai, e vos será dado: uma boa medida, calcada, sacudida, transbordante será colocada no vosso colo” (Lc 6,38). É essa abundância de amor, que vem de Deus, que sustenta a esperança e constrói um futuro de fraternidade.



DNonato - Teólogo do Cotidiano 

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