A parábola é simples e profundamente humana: um homem, surpreendido pela chegada de um amigo, vai à casa do vizinho à meia-noite para pedir três pães. É um gesto inconveniente, quase absurdo, mas a urgência o move. O vizinho, do lado de dentro, responde: “Não me incomodes; a porta já está fechada, e meus filhos e eu estamos deitados.” Contudo, Jesus afirma que, mesmo que não se levante por amizade, acabará cedendo “por causa da importunação”. E, em seguida, vem a promessa: “Pedi e vos será dado; buscai e achareis; batei, e vos será aberto.” O contraste final é de uma ternura desarmante: se até os pais humanos, frágeis e limitados, sabem dar boas coisas aos filhos, “quanto mais o Pai do céu dará o Espírito Santo àqueles que o pedirem”. Lucas, mais do que qualquer outro evangelista, transforma a oração num lugar teológico de encontro com o Espírito. Em Mateus, o paralelo termina dizendo que o Pai dará “coisas boas”; em Lucas, o dom é o Espírito Santo. É como se Jesus purificasse nossas intenções: não se trata de pedir coisas, mas de deixar que o Espírito seja o dom que nos transforma. A oração não é instrumento de poder, mas caminho de transformação. Deus não é fornecedor de milagres, é presença que amadurece.
O contexto torna o sentido mais claro. Logo antes, os discípulos pedem: “Senhor, ensina-nos a orar.” Jesus lhes ensina o “Pai-Nosso”, e, em seguida, conta esta parábola. A estrutura é pedagógica: primeiro, a forma da oração; depois, o espírito da oração. O “Pai-Nosso” revela quem é Deus e quem somos nós; a parábola revela como devemos perseverar. E não é um convite a uma piedade intimista, mas a uma fé madura, forjada no conflito e na espera. Os discípulos de Jesus enfrentarão prisões, perseguições e injustiças. A oração perseverante será o fôlego da fé, o modo de respirar quando o mundo tentar sufocá-los. O pedido à meia-noite simboliza o clamor humano nas horas sombrias, quando as forças se esgotam e Deus parece distante. É nessas madrugadas da existência que a fé se revela. O homem que pede encarna a alma orante que não desiste; o vizinho relutante, a aparente resistência divina. Os três pães representam o necessário — não o luxo, mas o essencial. Três é o número da plenitude mínima, da suficiência. E o fato de ele pedir não para si, mas para outro — “um amigo me chegou de viagem” — revela a alma intercessora da oração cristã: quem ora verdadeiramente, ora pelo mundo.
A oração é, portanto, compromisso com o bem do outro. Não se reza para fugir, mas para permanecer de pé. O dom prometido, o Espírito Santo, é o sopro que sustenta a comunhão e refaz o amor. Deus não concede qualquer coisa; concede o que nos torna mais humanos. “Bater”, no texto grego, exprime continuidade: “continuem pedindo, continuem buscando, continuem batendo.” A oração é movimento constante, perseverança existencial, estado de abertura. Santo Agostinho dizia que “Deus quer ser vencido pela oração, não porque resista, mas porque deseja despertar o desejo.” A oração muda o orante antes de mudar o mundo.
O contraste da parábola é pedagógico. O vizinho relutante representa o limite humano; Deus, ao contrário, é aquele que abre antes mesmo que batamos. Contudo, Jesus usa a figura do homem cansado para dizer: se até um homem dormindo pode atender, quanto mais o Deus que é Amor. O aparente silêncio de Deus não é indiferença, é pedagogia: Ele amadurece o desejo pela demora, fortalece a fé pela espera.
Essa lógica reaparece em Lucas 18,1-8, com a viúva insistente diante do juiz injusto, e em Mateus 15,21-28, com a mulher cananeia. Em ambos, a insistência é expressão de confiança. O silêncio divino é o ventre da esperança: onde não há resposta, nasce a fidelidade. Orar é suportar o silêncio com amor.
Psicologicamente, essa parábola ensina a lidar com a frustração. Vivemos numa cultura da pressa e do controle; queremos resultados instantâneos, respostas imediatas, orações de “entrega express”. Mas a fé não é aplicativo de entrega, é caminho de gestação. Orar é treinar o coração para esperar. É o exercício espiritual da paciência. Em tempos de ansiedade e burnout, a oração perseverante é revolução interior. O homem da parábola não se fecha, não se resigna; ele age. Ele vai, pede, insiste. Sua oração é ativa. É a imagem da espiritualidade que une contemplação e ação. Pedir, buscar e bater são três dimensões da existência orante: pensar, desejar e agir.
O pedido de pão no meio da noite remete à cultura da hospitalidade no mundo semita. Acolher o viajante era dever sagrado. Negar pão a um hóspede era desonra coletiva. A parábola, portanto, revela também a conversão social que o Reino exige: abrir a porta da compaixão em meio à indiferença. Na casa trancada está a imagem de um mundo egoísta; no homem que bate, a imagem da Igreja que insiste por justiça. Hoje, as portas fechadas têm outros nomes: templos que não acolhem os pobres, instituições religiosas que protegem estruturas eclesiásticas mas não pessoas, fiéis que confundem espiritualidade com consumo religioso. O chamado de Jesus é claro: abrir as portas.
Orar é, pois, ato político e profético. É a recusa de se conformar com o sistema da indiferença. Cada súplica é um protesto contra o fatalismo. Quando o mundo diz “não há saída”, o orante responde “há um Deus”. A oração insistente é resistência à desesperança. Ela impede que a alma se acomode. O discípulo que ora se torna subversivo da lógica dominante, porque acredita que o amor ainda é possível.
O “bater à porta” é gesto ontológico: o ser humano é aquele que reconhece sua carência e se abre ao Outro. Orar é o gesto do ser incompleto que busca plenitude. A oração destrói o narcisismo espiritual e nos faz seres relacionais. Kierkegaard dizia: “A oração não muda Deus, muda quem reza.” Nela, o desejo egoísta se purifica até se tornar comunhão.
A teologia lucana culmina num ponto de virada: o dom que o Pai dá não são “coisas boas”, mas o Espírito Santo. É um golpe na teologia da prosperidade, que transforma a fé em mercado. O Pai não é distribuidor de milagres, é Amor que dá o que mais precisamos, não o que mais queremos. O Evangelho liberta da idolatria dos milagres, do clericalismo que faz da oração um privilégio, da espiritualidade de palco que transforma a fé em show. Jesus fala de um homem qualquer — um leigo, um vizinho, um amigo —, não de um sacerdote. O Reino começa nas casas, nas cozinhas, nas madrugadas em que alguém ainda ousa bater.
O Vaticano II recorda que todos os batizados participam do sacerdócio comum de Cristo. A oração, portanto, não é monopólio, mas missão compartilhada. E a Gaudium et Spes lembra que as alegrias e dores do mundo são também as da Igreja. Orar é solidarizar-se. A Evangelii Gaudium insiste que a oração missionária abre o coração. O discípulo que ora não foge da realidade; mergulha nela com compaixão. Quem recebe o Espírito se torna pão partilhado.
Orígenes via nesse homem noturno a alma que busca o Pão da Vida até ser alimentada. João Crisóstomo ensinava que “Deus tarda para acender o desejo do dom”. Gregório Magno dizia: “Se paramos de rezar, o Espírito se apaga em nós.” Para os Padres, orar era manter o fogo aceso — um fogo que se alimenta de paciência.
Sabemos que Lucas escrevia para comunidades cansadas, decepcionadas com o atraso da volta do Senhor. O convite à perseverança era resistência espiritual. O homem que bate à meia-noite é imagem da Igreja que, na escuridão do Império, continua batendo — e, no nosso tempo, continua batendo nas portas da injustiça, das guerras, da desigualdade e da indiferença. A oração é o modo de não desistir do Reino.
Por isso, essa parábola é profundamente profética. Em um tempo em que muitos se acomodam à frieza do mundo e à superficialidade da fé, Jesus nos pede para continuar batendo. Mesmo quando as portas da Igreja se fecham por medo ou elitismo, a fé popular continua insistindo — nas novenas, nas romarias, nas velas acesas nas janelas das periferias. É ali que o Espírito mora: no povo que insiste.
A oração insistente é, portanto, o contrário da resignação. É resistência, é amor que não desiste. Como dizia São Romero da América, “na semana injusta, a oração é a força dos que não têm força.” É essa fé que mantém o mundo respirando. Orar é manter o fogo da esperança aceso nas noites longas da história. Não é fugir, é resistir amando.
Lucas 11,5-13 nos recorda que a fé não é pressa, é perseverança. Orar é insistir na bondade de Deus quando tudo parece contrário. É continuar batendo porque sabemos que, do outro lado, há um Pai — não um tirano, mas um Amor. É aprender a desejar o que Deus quer dar, e não o que nosso ego exige receber. É descobrir que o maior dom não é a resposta, mas o Espírito que nos ensina a esperar.
Que esse Evangelho, repetido ano após ano, encontre em nós um coração que não se cansa de pedir, buscar e bater. Que a insistência se torne forma de amor, e o amor, forma de oração. Que, quando a noite do mundo parecer longa, sejamos nós os amigos que continuam batendo até que a porta da esperança se abra e o pão da vida seja partilhado entre todos.
DNonato – Teólogo do Cotidiano
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