quinta-feira, 9 de outubro de 2025

Um breve olhar sobre Lucas 11, 15-26

Era um dia de calor no povoado, daqueles em que o sol parece insistir em lembrar a todos do peso da vida e da luta diária. A praça estava cheia de curiosos, vendedores e crianças que corriam entre os transeuntes. No meio da multidão, um homem mudo era levado por amigos, com expressão de sofrimento, os lábios imóveis, os olhos pedindo socorro. Entre os espectadores, sussurros se espalhavam: havia rumores de que algo extraordinário estava prestes a acontecer.  Jesus chegou silencioso, observando. Com um gesto quase imperceptível, falou uma palavra, e de repente o homem pôde voltar a se comunicar. A multidão se admirou, alguns riram de alívio, outros ficaram boquiabertos. Mas nem todos ficaram felizes. Alguns dos líderes religiosos começaram a murmurar entre si: “Ele expulsa os demônios pelo príncipe deles, Belzebu. Isso não pode ser obra de Deus.” O medo do poder invisível que não se pode controlar é sempre mais forte que a admiração.
Jesus ouviu, e não se assustou com a acusação. Explicou com clareza, usando exemplos que qualquer um poderia entender. Um reino dividido não se sustenta, disse ele, e ninguém luta contra si mesmo sem se destruir. E então falou do dedo de Deus, um toque invisível e poderoso que liberta, que mostra que o Reino de Deus não depende de aparências ou de força visível. Aquele gesto não era mero milagre; era sinal de algo maior acontecendo ali, no coração do homem, na história do povo, no mundo.
Para ilustrar, contou a história de um homem forte, que guardava sua casa e protegia seus bens. Mas surgiu alguém mais forte, entrou, desarmou-o e repartiu os despojos. A multidão começou a compreender que a batalha espiritual, que parecia distante, estava diante deles: não se tratava apenas de expulsar demônios, mas de transformar o interior, de cuidar da própria casa.
Jesus então alertou sobre a fragilidade de quem se ilude com libertação superficial: o espírito que sai pode voltar, encontrar a casa varrida e adornada, mas vazia de presença. E quando isso acontece, traz consigo outros espíritos piores, e o último estado será pior que o primeiro. Era como se dissesse: não basta tirar o que é ruim, é preciso ocupar o espaço com amor, vigilância e verdade.
Os curiosos trocavam olhares, alguns franzindo a testa, outros inquietos. Era uma lição que não se podia simplificar em palavras bonitas ou fórmulas mágicas. Não bastava repetir rituais, erguer símbolos ou acumular conhecimentos; era necessário habitar a própria vida com cuidado, preencher o interior com atenção, presença e prática de bem.
Alguns líderes continuavam resistindo, incapazes de perceber que o toque divino não entra para dominar, mas para convidar. Outros observavam e percebiam que a verdadeira força não estava em gritos, punições ou títulos, mas na presença viva, silenciosa e constante do Espírito que transforma e liberta.
Ao final, o homem mudo caminhava ao lado de seus amigos, falando palavras simples, mas cheias de vida. A multidão começou a dispersar, cada um levando consigo um eco daquilo que havia testemunhado. O alerta permanecia: uma casa varrida e adornada não é sinônimo de segurança, e a verdadeira libertação exige presença, vigilância e amor. E, acima de tudo, exige reconhecer que o mais forte já venceu, e sua força continua disponível para todos que aceitarem habitá-la.
A praça ficou mais silenciosa, com o sol descendo e sombras alongando-se nas ruas de terra. O toque invisível ainda pairava no ar, como uma promessa, um convite a não se contentar com aparências e a não temer a luta interna. No fim, cada um levava consigo a pergunta que permanecia: minha casa está apenas varrida ou realmente habitada?

Há textos que ecoam na liturgia como espelhos do nosso tempo, refletindo não apenas a história, mas também a alma humana. Lucas 11,15-26 é um desses espelhos cortantes. Proclamado nas sextas-feiras da 27ª semana do Tempo Comum e em celebrações que enfatizam a presença do Reino e a luta espiritual, ele surge logo após o ensino sobre a oração, lembrando que não basta pedir; é necessário discernir, habitar, vigiar. Jesus acabara de expulsar um demônio que tornava mudo um homem, libertando-o da opressão do mal que o silenciava. A reação dos fariseus, acusando-o de agir por Belzebu, revela medo, incredulidade e a dificuldade de reconhecer a presença do Reino fora das estruturas humanas de controle e tradição. Lucas, consciente dessa tensão, constrói uma narrativa densa, onde cada palavra é símbolo e cada gesto, metáfora da vida espiritual e comunitária.
Jesus responde com três argumentos que articulam lógica e mistério: ninguém expulsa demônios contra si mesmo — um reino dividido não se sustenta; se ele expulsa demônios pelo dedo de Deus, isso é sinal do Reino presente; e, finalmente, ele apresenta a parábola do homem forte e do invasor mais forte. O gesto do “dedo de Deus” (Lc 11,20) não é mero ato de poder. É gesto criador, presença do Espírito que toca, transforma e liberta. A tradição patrística, como observa Santo Agostinho (De Trinitate II,9,14), vê nesse gesto a ação do Espírito Santo que renova a criação, reconcilia o humano e o divino e inaugura a possibilidade de verdadeira liberdade. Cristo não atua com violência humana, mas com a força da presença, tocando a história e a alma, revelando que o Reino de Deus não é conquista temporal, mas realidade espiritual e moral.

O homem liberto recupera a fala, símbolo da libertação interior, da recuperação do poder de narrar-se e existir plenamente. Psicologicamente, a mudez era expressão de repressão, medo, trauma e silêncio. Libertar é restaurar a dignidade, devolver à pessoa a capacidade de relação, de expressão e de ação moral. Sociologicamente, o episódio sugere que comunidades, quando reformam apenas estruturas externas — instituições, leis, aparências de ordem — permanecem vulneráveis ao retorno do mal. A casa “varrida e adornada” é imagem poderosa: limpa por fora, mas desabitada por dentro, pronta a acolher forças mais danosas se o Espírito não estiver presente. Jung poderia chamar isso de sombra coletiva: impulsos não integrados se manifestam sob novas formas, muitas vezes mais intensas.

A narrativa continua, mostrando o perigo do retorno: o espírito que sai vagueia por lugares áridos, e ao retornar encontra a casa vazia. Aqui, Lucas oferece alerta contínuo: a libertação inicial, sem transformação interior, é insuficiente. Mateus 12,43-45 reforça o mesmo ensinamento, mostrando que o último estado pode ser pior que o primeiro. Em termos antropológicos, a “casa vazia” simboliza sociedades ou comunidades que reformam instituições e rituais sem transformar corações; em termos espirituais, representa vidas sem profundidade, cristãos que buscam aparência e não essência, rituais e não presença do Espírito.

A teologia da prosperidade, quando aplicada à leitura desse texto, revela-se superficial: promete expulsar demônios visíveis com rituais mecânicos, sem exigir conversão, humildade ou vigilância. A fé-mercadoria reduz o Evangelho a contrato: ora-se e espera-se retorno imediato. A teologia do domínio confunde Reino com poder humano e político, ignorando que a vitória do Reino é sobre o mal, não sobre pessoas ou estruturas. Lucas ensina que a liberdade é conquistada pelo amor presente e pela vigilância, não pelo cálculo ou pelo recurso mecânico. Clericalismo e centralização espiritual são igualmente criticáveis: a narrativa mostra que cada pessoa deve participar ativamente da própria conversão e da libertação da comunidade, sem terceirizar para líderes ou especialistas. Lumen Gentium 31-32 recorda que todos os fiéis são chamados à santificação e à luta contra o mal, não apenas os ministros.

O simbolismo da narrativa é profundo. A “casa” representa o ser interior e a história pessoal; o “homem forte” é Satanás e as forças do mal; os “sete espíritos piores” indicam plenitude de opressão e destruição; “varrer e adornar” simboliza a reforma superficial, estética, externa, sem habitação do Espírito. O número sete ecoa tradição bíblica de plenitude (Gn 2,2; Ap 1,4) e, invertido, reflete a perfeição maligna, a totalidade do mal quando não confrontado. O “mais forte” é Cristo, cuja força não destrói, mas liberta, invade, subtrai armas e divide despojos, ecoando Colossenses 2,15: “Despojando os principados e potestades, triunfou publicamente sobre eles na cruz.”

No plano psicológico, o espírito impuro simboliza vícios, traumas, impulsos reprimidos; na filosofia existencial, ele encarna a tensão da liberdade humana diante da contingência; na sociologia, representa ideologias ou sistemas opressivos que retornam quando não há transformação ética; na antropologia, a narrativa ilustra a vulnerabilidade humana diante de poderes espirituais e sociais; na história, sociedades e comunidades que só limpam a aparência repetem padrões destrutivos. Efésios 6,10-18 reforça que a batalha é espiritual e exige armadura interior, disciplina moral, vigilância e presença do Espírito.

Os Sinóticos apresentam ecos ricos: Marcos 3,22-27 mostra a acusação por expulsão de demônios, a lógica do homem forte, a vitória do mais forte; Mateus 12,22-30 enfatiza a autoridade de Cristo sobre Satanás; Lucas aprofunda simbolismos e consequências. Paulo retoma a ideia em 2 Timóteo 2,26, alertando sobre os que escapam das armadilhas do diabo, e em Colossenses 2,15, mostrando a vitória definitiva de Cristo.

A patrística reforça a mensagem: Crisóstomo comenta que a casa “varrida e adornada” sem habitação do Espírito expõe o homem ao retorno do mal; Gregório Magno e Tertuliano refletem sobre a liberdade dos anjos e a corrupção do mal como consequência do uso egoísta da liberdade. Agostinho lembra que Deus ordena todas as criaturas ao bem; o mal surge da ausência do bem, do uso indevido da liberdade. Assim, o Evangelho não apenas apresenta exorcismo, mas revela a condição humana diante do bem e do mal.

A dimensão litúrgica e eclesial é clara: o texto é proclamado nas celebrações que enfatizam oração, discernimento e vigilância espiritual, mostrando que a libertação de Cristo se realiza em todos os níveis da existência. Francisco, em Evangelii Gaudium 102, alerta para a tentação de transformar a Igreja em vitrine de moralidade ou empresa de serviços: a verdadeira Igreja é habitação do Espírito, não aparência. Em Fratelli Tutti 215, ele enfatiza encontros que transformam e relações que libertam, evitando casas vazias e comunidades adornadas, mas desabitadas.

A leitura teológica deve equilibrar dimensões: o mal não se reduz a estruturas sociais, mas opera nas profundezas do humano; o Reino não é apenas espiritual, mas se manifesta na ética, na ação transformadora e no amor que habita a comunidade. A presença do Espírito transforma a casa, torna habitável o corpo, reconcilia a história, permite vigilância constante e engaja cada um na luta espiritual. A narrativa conclui com uma nota poética e contemplativa: o dedo de Deus não acusa, mas desperta; o Espírito não invade para dominar, mas para coabitar; a verdadeira fé transforma a casa em lar, o corpo em templo e a história em Reino. O mais forte venceu, e sua presença continua: cada casa, cada coração, cada comunidade, quando habitada pelo Amor, torna-se sinal visível do Reino, testemunho da libertação, exemplo de vigilância e entrega contínua.

O Evangelho de Lucas 11,15-26 é, assim, convite profético e existencial: a libertação exige profundidade, a conversão não se terceiriza, o mal retorna quando a presença é negligenciada, e a vitória do Reino se realiza na habitação do Espírito. O chamado é contínuo: não apenas varrer e adornar, mas habitar, amar, vigiar, transformar, viver.

DNonato – Teólogo do Cotidiano


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