quinta-feira, 2 de outubro de 2025

Um breve olhar sobre Mateus 18,1.5-10 - Memória do Anjo da Guarda

 
A memória litúrgica dos santos anjos da guarda, celebrada em 2 de outubro no calendário latino, não é apenas uma ocasião devocional ou um ritual simbólico; ela nos convida a uma experiência profunda de contemplação e reconhecimento da presença invisível que sustenta cada vida humana desde o nascimento. Este dia litúrgico nos lembra que a história da humanidade não se desenrola no vazio, mas sob a vigilância amorosa e constante de mensageiros divinos que acompanham e orientam cada trajetória. A devoção aos anjos da guarda, embora simples em aparência, carrega uma densidade teológica, antropológica e ética que nos conecta à pedagogia de Deus revelada no Evangelho. Em Mateus 18,1.5-10, Jesus utiliza uma imagem direta e poderosa para ensinar sobre a grandeza no Reino:  “Naquela hora, os discípulos se aproximaram de Jesus, perguntando: Quem é o maior no Reino dos Céus? E Jesus chamou uma criança, colocou-a no meio deles e disse: Em verdade vos digo que, se não vos converterdes e não vos tornardes como crianças, de modo algum entrareis no Reino dos Céus. Quem receber uma destas crianças em meu nome, recebe-me a mim. Cuidado para não desprezardes um destes pequenos, pois digo-vos que os seus anjos no céu veem continuamente a face de meu Pai que está nos céus."
A escolha da criança por Jesus como paradigma do discípulo autêntico é extremamente significativa. No judaísmo antigo, a infância simboliza pureza, receptividade e abertura à ação de Deus, qualidades que não se restringem à idade biológica, mas descrevem uma postura interior: humildade radical, confiança absoluta e disponibilidade para acolher a graça divina. Lucas 9,47-48 reitera: “Quem recebe esta criança em meu nome, a mim recebe; e quem me recebe, não me recebe a mim, mas aquele que me enviou.” Em Marcos 10,13-16, vemos a mesma pedagogia: as crianças, pequenas e vulneráveis, aproximam-se de Jesus, e Ele as toma como modelo de abertura ao Reino, criticando a resistência humana que tenta impor barreiras, mesmo entre os discípulos. A repetição deste ensinamento nos Sinóticos evidencia que a grandeza no Reino não é medida por poder, prestígio ou riqueza, mas pela capacidade de acolher o outro, de despojar-se do ego e de viver a vulnerabilidade como oportunidade de encontro com Deus.
A psicologia moderna descreve a infância como período de construção da confiança básica: o ser humano aprende a confiar quando recebe cuidado, atenção e proteção. Esta confiança inicial é fundamental para a capacidade de criar vínculos, enfrentar desafios e abrir-se à transcendência. O gesto de Jesus de colocar a criança no centro do grupo dos discípulos não é apenas simbólico: é pedagógico e psicológico, demonstrando que a receptividade ao Reino exige confiança e abertura, mesmo diante de líderes, estruturas e sistemas humanos que muitas vezes rejeitam ou marginalizam os indefesos.

A exegese de Mateus 18,1.5-10 revela também a dimensão ética e social do texto. Jesus denuncia a lógica que ignora os pequenos, confrontando estruturas de poder, clericalismo e desigualdades. A atenção aos vulneráveis não é opcional; é exigência do Reino. Teologias da prosperidade, do domínio, do individualismo e da fé transformada em mercadoria distorcem a compreensão do Evangelho. Elas promovem espiritualidade como instrumento de status, lucro ou fama, enquanto o Evangelho exige atenção aos indefesos, amor concreto e humildade radical. O estudo sociológico das comunidades humanas confirma que sociedades que negligenciam os vulneráveis entram em ciclos de violência, injustiça e exclusão, evidenciando que a pedagogia de Jesus é também um chamado social e político.

Historicamente, a crença nos anjos da guarda remonta ao judaísmo antigo, quando os mal’akhim — mensageiros divinos — desempenhavam funções protetoras, pedagógicas e orientadoras. Esses seres intermediários manifestavam a presença de Deus em situações decisivas, conduzindo e instruindo cada ser humano. A patrística cristã aprofunda esta compreensão. Santo Basílio enfatiza que os anjos acompanham cada ação humana, mesmo as mais humildes, evidenciando a atenção de Deus em cada detalhe da vida. Gregório de Nissa descreve os anjos como mediadores da providência divina, revelando que a ação de Deus se realiza não apenas diretamente, mas também por inteligências puras que colaboram com a história humana. São João Crisóstomo exorta os fiéis a reconhecerem que cada pessoa é amparada e protegida por esses mensageiros celestes. Santo Agostinho, em De Civitate Dei, reforça que os anjos preservam o homem da ruína e o conduzem à vida eterna. Santo Tomás de Aquino, na Summa Theologiae, observa que os anjos respeitam a liberdade humana enquanto a orientam, fornecendo um modelo para a ação pastoral e comunitária, evidenciando que a proteção divina não anula a liberdade, mas a sustenta.

A experiência hagiográfica confirma esta realidade. Santa Teresinha do Menino Jesus relatava sentir a presença de seu anjo da guarda em cada pequeno ato cotidiano de amor, tornando concreto o cuidado divino. Santo Francisco de Assis, ainda jovem, foi guiado por um anjo em decisões decisivas de sua vocação, mostrando que a orientação celestial acompanha a escolha de caminhos espirituais e sociais. Santa Catarina de Sena recebeu alertas angelicais que a orientaram em decisões complexas, demonstrando que a ação dos anjos é pedagógica e prática. No Antigo Testamento, Tobias é acompanhado pelo anjo Rafael em sua jornada, instruindo-o e protegendo-o, evidenciando que a ação angelical não é abstrata, mas concreta e pedagógica. Daniel sobrevive à cova dos leões por intervenção angelical; Davi, quando jovem, recebe discernimento e proteção, mostrando que a vigilância divina acompanha a vulnerabilidade, o crescimento e o potencial humano. Cada relato confirma que a presença angelical não é apenas uma ideia espiritual, mas uma realidade prática que sustenta a vida, protege e educa.

O simbolismo da criança é multifacetado e interdisciplinar. Psicologicamente, representa a confiança básica, a receptividade ao cuidado e à experiência do amor. Sociologicamente, indica a responsabilidade das comunidades humanas de proteger os indefesos, crianças, idosos, marginalizados e vulneráveis. Antropologicamente, reforça a interdependência humana e a solidariedade intergeracional. Filosoficamente, Hans Jonas propõe a ética da responsabilidade, que converge com a exortação de Jesus: cuidar de quem não pode cuidar de si mesmo é obrigação moral e espiritual. Biblicamente, o cuidado pelos indefesos é reiterado: Provérbios 31,8-9 convoca a falar pelos que não têm voz; Isaías 1,17 exige justiça para órfãos e viúvas; Tiago 1,27 define a religião pura como cuidado pelos vulneráveis. O acompanhamento angelical mostra que nenhum gesto de bondade é insignificante e que a economia da graça reconhece e registra cada ação de amor.

Os evangelhos sinóticos reforçam a

pedagogia de Jesus. Mateus 18 enfatiza a criança como modelo central; Lucas 18,15-17 evidencia a necessidade de receber o Reino como criança; Marcos 10,13-16 denuncia a resistência dos discípulos em aceitar os pequenos. A repetição desta narrativa revela a centralidade da humildade, da abertura e da vulnerabilidade na compreensão do Reino. Esta pedagogia é ecoada no Antigo Testamento, em figuras como Samuel, Davi e Tobias, mostrando a continuidade do princípio de que Deus se revela na atenção ao pequeno, ao indefeso, ao vulnerável.

O texto de Mateus tem também dimensão profética: denuncia toda lógica que despreza os pequenos e confronta estruturas de poder, clericalismo e desigualdades. O clericalismo, que separa líderes e fiéis, obscurece a atenção aos pequenos; a fé como mercadoria transforma o Evangelho em instrumento de lucro ou status; o individualismo substitui o cuidado pelo outro pelo culto ao eu; a teologia da prosperidade promove riqueza, fama e dominação como sinais de aprovação divina. Ao contrário, o Evangelho exige serviço humilde, atenção concreta e rejeição de toda lógica de poder e dominação. Cada criança, cada marginalizado, cada pequeno é sinal do Reino, e a vigilância angelical lembra que Deus vê tudo, mesmo quando a comunidade humana falha.

Documentos do Magistério reforçam esta perspectiva. O Catecismo da Igreja Católica (nn. 336-337) afirma que cada pessoa é acompanhada por um anjo desde o nascimento; Gaudium et Spes (nn. 63-66) convoca atenção concreta aos vulneráveis como expressão da justiça de Deus; Evangelii Gaudium e Fratelli Tutti (n. 215) enfatizam solidariedade, proteção aos pequenos e denúncia de estruturas de dominação, reforçando a pedagogia de Jesus. A patrística também testemunha esta atenção: Basílio, Gregório de Nissa, Crisóstomo, Agostinho e Tomás de Aquino mostram que os anjos participam da vida humana de forma contínua, orientando, protegendo e respeitando a liberdade, configurando um modelo ético e espiritual que inspira ação pastoral e comunitária.


A memória dos santos anjos da guarda, portanto, nos convida a uma conversão profunda. Não se trata apenas de celebração litúrgica, mas de vivência ética, espiritual e social. Somos chamados a colocar os pequenos no centro, a proteger os indefesos, a rejeitar toda lógica de poder e dominação, a viver a fé como serviço concreto. O olhar angelical nos lembra que cada ato de bondade, mesmo o mais humilde, é registrado na história do Reino e tem valor eterno. A criança colocada no meio dos discípulos não é apenas um símbolo: é convite à humildade radical, à abertura, à atenção e ao cuidado, que se manifestam na vida cotidiana.

Em um mundo marcado por desigualdade, exploração e indiferença, a memória litúrgica dos anjos da guarda nos desafia a revisar nossa própria vida: onde estamos negligenciando os pequenos? Onde o clericalismo, a ambição ou a fé mercantilizada obscurecem nossa atenção aos vulneráveis? Onde deixamos de viver a pedagogia de Jesus, que coloca o menor no centro, exorta à humildade e lembra que a verdadeira grandeza se encontra no serviço e no amor concreto? O Evangelho nos convoca a ações práticas: defender crianças, idosos, marginalizados; denunciar estruturas de dominação; construir comunidades solidárias; e viver uma fé encarnada, que transforma e protege.

Ao contemplarmos esta cena, reconhecemos a interdependência humana e a presença constante do divino. Cada gesto de cuidado, cada palavra de proteção, cada atenção ao vulnerável é um ato sagrado, registrado na economia do Reino. Os santos, os Padres da Igreja, os anjos e as Escrituras nos ensinam que a verdadeira santidade se manifesta no cuidado pelos pequenos, na rejeição de toda exploração e na construção de comunidades justas. A memória dos santos anjos da guarda é, portanto, pedagógica, ética, profética e transformadora: nos lembra que Deus vê cada detalhe, sustenta os vulneráveis, protege a liberdade humana e recompensa todo ato de amor. A criança no meio dos discípulos, e o olhar atento dos anjos, nos convocam a viver uma fé que protege, transforma e sustenta a humanidade, reconhecendo que nenhuma vida é pequena diante de Deus e que todo ato de bondade é sagrado e registrado no Reino dos Céus.



DNonato - Teólogo do Cotidiano 

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