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sábado, 13 de setembro de 2025

Um olhar sobre João 3,13-17 - Festa da Exaltação da Santa Cruz

A festa da Exaltação da Santa Cruz, celebrada em 14 de setembro, é um mergulho no mistério paradoxal da fé cristã: aquilo que aos olhos do mundo parecia derrota, humilhação e fim, torna-se sinal de vitória, amor e vida plena, tem a seguinte liturgia: a   1ª leitura Números 21,4b-9;Salmo 77(78),1-2.34-35.36-37.38 (R. cf. 7c); a 2⁰ leitura Filipenses  2,6-11 e Evangelho  de  João 3,13-17 que iremos aprofundar

A primeira leitura (Nm 21,4b-9) recorda a serpente de bronze erguida por Moisés no deserto, pela qual o povo, ao olhar, era curado do veneno da serpente. É um anúncio simbólico: quem contempla com fé o Crucificado encontra salvação e cura para as feridas mais profundas da existência.O hino de Filipenses (2,6-11) mostra a dinâmica da cruz: Cristo, sendo Deus, não se apegou a sua condição divina, mas esvaziou-se, assumindo nossa humanidade até a morte de cruz. Essa humilhação, porém, não é fracasso, mas caminho para a exaltação, pois é no amor radical e na entrega total que Deus manifesta sua glória.

A liturgia deste dia, portanto, não celebra o sofrimento em si, mas a transformação da cruz em fonte de esperança. Olhar para a Cruz é olhar para o amor extremo de Deus, que se faz frágil por nós e nos abre um horizonte de vida e ressurreição.



A Festa da Exaltação da Santa Cruz, tem uma origem que remonta ao século IV, ligada à dedicação da Basílica do Santo Sepulcro, em Jerusalém, construída por ordem do imperador Constantino, após a descoberta da cruz por sua mãe, Helena. Não se trata de um culto à cruz como objeto material, mas da memória viva e celebrativa do mistério pascal: a cruz é exaltada porque nela Cristo não apenas sofreu, mas venceu o pecado e a morte, transformando o que era sinal de humilhação em fonte de vida nova. A liturgia deste dia proclama o Evangelho de João 3,13-17, passagem que coloca em palavras a síntese do amor de Deus: “Deus amou tanto o mundo que deu o seu Filho unigênito, para que todo o que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna” (Jo 3,16). Aqui, a cruz é interpretada não como derrota, mas como o ápice da revelação do amor, o momento em que Deus assume o abismo da dor humana e o transforma em caminho de salvação.

A liturgia usa este texto também no 4º Domingo da Quaresma, chamado Laetare, justamente como alento no meio do caminho penitencial, recordando que o centro da fé cristã não é a dor, mas a esperança que brota da entrega de Cristo. João apresenta a cena do diálogo com Nicodemos, um mestre da Lei que procura Jesus de noite, movido pelo desejo sincero de compreender, mas ao mesmo tempo cheio de receios. A noite em João é mais que uma referência temporal: é símbolo de incerteza, de ambiguidade, de busca entre sombras (Jo 3,2). Ali, Jesus evoca a serpente erguida por Moisés no deserto (Nm 21,4-9), quando o povo, mordido pelas serpentes, recebia a vida ao olhar para o sinal levantado. O paralelo é direto: “assim como Moisés levantou a serpente no deserto, assim também o Filho do Homem deve ser levantado, para que todo o que nele crê tenha vida eterna” (Jo 3,14-15).

A cruz, portanto, é a nova serpente: sinal paradoxal, escândalo para uns, loucura para outros (1Cor 1,18), mas força de Deus para os que creem. Na carta aos Gálatas, Paulo insiste: “Quanto a mim, longe esteja gloriar-me, a não ser na cruz de nosso Senhor Jesus Cristo” (Gl 6,14). E aos Filipenses ele escreve: “Humilhou-se a si mesmo, tornando-se obediente até a morte, e morte de cruz. Por isso Deus o exaltou sobremaneira” (Fl 2,8-9). A exaltação da cruz já está inscrita no próprio movimento pascal: humilhação e glória se entrelaçam no mesmo mistério.

Nos sinóticos, a cena da crucifixão é relatada com intensidade. Marcos e Mateus sublinham o clamor de Jesus: “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?” (Mc 15,34; Mt 27,46), ecoando o Salmo 22, que começa em tom de lamento, mas termina em confiança. Lucas nos dá outra chave, mostrando o crucificado que perdoa: “Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem” (Lc 23,34) e que se entrega confiante: “Pai, em tuas mãos entrego o meu espírito” (Lc 23,46). João, por sua vez, mostra Jesus como quem reina do alto da cruz, entregando sua mãe ao discípulo amado (Jo 19,26-27) e consumando a missão: “Tudo está consumado” (Jo 19,30). A cruz é o centro da revelação: nela se encontra a justiça do Servo sofredor de Isaías 53, que levou sobre si as nossas dores e foi traspassado por causa de nossas iniquidades.

Na antropologia, toda cultura humana lida com símbolos de dor e superação. A cruz, no Império Romano, era o símbolo máximo da humilhação pública, reservado aos escravos e subversivos. Que um crucificado seja proclamado Filho de Deus é uma inversão radical da lógica social. Por isso Paulo escreve aos Coríntios: “Pregamos Cristo crucificado, escândalo para os judeus e loucura para os pagãos, mas para os que são chamados, força e sabedoria de Deus” (1Cor 1,23-24). A sociologia da religião mostra que símbolos assim podem ser instrumentalizados: quantas vezes a cruz foi usada para legitimar conquistas coloniais, cruzadas, discursos nacionalistas e até práticas de exclusão? Mas o Cristo da cruz é aquele que se identifica com os pobres e pequenos (Mt 25,31-46), que se fez servo (Mc 10,45), que não tinha onde reclinar a cabeça (Lc 9,58).

Na filosofia, Hegel dizia que a cruz revela a reconciliação dos contrários: a morte gera vida, a finitude abre para o infinito. Nietzsche, por sua vez, via na cruz um símbolo de negação da vida. Mas a teologia cristã responde que, longe de negar a vida, a cruz é a afirmação plena de que nenhuma dor é inútil quando se torna oferta de amor. O próprio Jesus declarou: “Se o grão de trigo não cair na terra e não morrer, ficará só; mas se morrer, produzirá muito fruto” (Jo 12,24). Para os Padres da Igreja, a cruz é árvore da vida. Santo Irineu já dizia: “A glória de Deus é o homem vivo, e a vida do homem é a visão de Deus”. São João Crisóstomo pregava: “A cruz é mais luminosa que o sol”. Santo Agostinho comentava: “A paixão de Cristo é suficiente para ser modelo de toda a vida” (In Ioannem, tr. 84).

O texto joanino nos convoca a romper com a visão mercantilizada da fé. A teologia da prosperidade reduz a cruz a um amuleto contra sofrimento, quando na verdade ela denuncia sistemas que geram dor. A teologia do domínio transforma a cruz em bandeira política, quando deveria ser memória da entrega gratuita. O individualismo a reduz a símbolo decorativo no peito, sem compromisso comunitário. A fé-mercadoria vende crucifixos caros, mas silencia diante dos crucificados de hoje: pobres, negros, indígenas, mulheres violentadas, jovens sem futuro, trabalhadores descartados. Mas a Escritura é clara: “Se alguém disser: ‘Eu amo a Deus’, mas odeia o seu irmão, é mentiroso” (1Jo 4,20). O clericalismo também trai a cruz: quando o clero se coloca acima do povo, esquece que o Cristo da cruz lavou os pés dos discípulos (Jo 13,14-15) e se fez servo.

O Papa Francisco denuncia isso na  Evangelii Gaudium, ao afirmar que a Igreja deve ser “casa paterna onde há lugar para todos” (EG 47), e em Fratelli Tutti, quando chama à fraternidade que rompe exclusões: “Ou nos salvamos todos, ou ninguém se salva” (FT 137). O Concílio Vaticano II, em Gaudium et Spes (63–66), recorda que o ser humano só se realiza no dom de si.

A psicologia nos mostra que a cruz toca também nossa dimensão interior. Carregar a cruz, no sentido evangélico, não é buscar sofrimento, mas aprender a lidar com nossas sombras, limites e perdas. É o convite à resiliência, à capacidade de transformar a dor em sentido, o luto em memória fecunda, a perda em solidariedade. O próprio Jesus, ao falar da cruz, convida a seguir com liberdade e entrega: “Quem quiser vir após mim, renuncie a si mesmo, tome a sua cruz cada dia e siga-me” (Lc 9,23).

A ciência histórica recorda que a festa surgiu não como devoção intimista, mas como celebração pública da vitória do cristianismo sobre a perseguição. Mas, em tempos de cristandade, o risco foi usar a cruz como símbolo de poder político. Hoje, em tempos de neoliberalismo, a cruz pode ser reduzida a símbolo de mercado religioso. Daí a necessidade de recuperar seu sentido original: não objeto de ostentação, mas sinal do amor de Deus que se esvazia e se dá.

A antropologia nos lembra que povos indígenas e africanos, ao se encontrarem com a cruz, reinterpretaram-na em chave de resistência: a cruz erguida em quilombos e aldeias não era símbolo de colonizador, mas sinal de esperança e força espiritual. A cruz, assim, pode ser ressignificada como símbolo de libertação, como eco da palavra de Jesus: “Vinde a mim, todos os que estais cansados e sobrecarregados, e eu vos aliviarei” (Mt 11,28).

Por tudo isso, a Festa da Exaltação da Santa Cruz é chamada a ser um ato de memória e profecia. Memória, porque nos recorda a raiz da fé, o amor incondicional de Deus que entrega o Filho. Profecia, porque denuncia todos os sistemas que ainda crucificam e conclama a Igreja a estar junto dos crucificados. Como dizia São Romero da América: “Se me matarem, ressuscitarei no povo”. A cruz é exatamente isso: morte e ressurreição, derrota e vitória, fragilidade e potência do amor.

Celebrar este dia é fazer a pergunta que Nicodemos fez no silêncio da noite: “Como pode ser isso?” (Jo 3,9). E ouvir de Cristo que só o Espírito pode gerar a vida nova. É perguntar-nos se estamos dispostos a deixar que a cruz não seja apenas adorno, mas critério de vida, modo de amar, compromisso com os últimos. É deixar-se iluminar pela palavra de Paulo: “A linguagem da cruz é loucura para os que se perdem, mas para nós que somos salvos é força de Deus” (1Cor 1,18). A cruz exaltada é o espelho em que a Igreja deve se olhar, não para se enfeitar, mas para se converter


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DNonato – Teólogo do Cotidiano


terça-feira, 2 de setembro de 2025

Um breve olhar sobre Lucas 4,38-44

 
O Evangelho de Lucas 4, 38-44  da quarta-feira da 22ª semana do Tempo Comum  nos conduz  a uma cena profundamente humana e ao mesmo tempo carregada de sentido teológico: Jesus sai da sinagoga de Cafarnaum e entra na casa de Simão, onde cura a sogra deste, que estava com febre. Em seguida, ao entardecer, todos os que tinham doentes os trazem até Ele, e Jesus os cura, impondo as mãos sobre cada um. Espíritos imundos saem de muitas pessoas, gritando que Ele é o Filho de Deus, mas Jesus os repreende e não permite que falem. Ao amanhecer, retira-se para um lugar deserto, mas as multidões O procuram e tentam retê-lo. Ele, porém, anuncia que deve pregar também a outras cidades a Boa-Nova do Reino, porque para isso foi enviado. Essa passagem também está presente em outras variantes nos sinóticos (cf. Mc 1,29-39; Mt 8,14-17), revela tanto a dimensão terapêutica e libertadora do ministério de Jesus quanto a tensão entre a busca humana por milagres imediatos e o verdadeiro sentido de sua missão.

O texto se enraíza no contexto do capítulo quarto de Lucas, onde Jesus inaugura sua missão pública após ser batizado no Jordão, cheio do Espírito Santo, e resistir às tentações no deserto. Sua ida a Nazaré, onde proclama a Palavra de Isaías e se identifica como o Ungido que veio libertar os pobres, os cativos e os oprimidos (cf. Lc 4,18-19), já nos prepara para compreender que os milagres não são espetáculos, mas sinais da irrupção do Reino de Deus. O pretexto imediato da narrativa é a febre da sogra de Pedro, mas o contexto é mais profundo: a febre simboliza as forças que paralisam a vida, e a mão de Jesus, que se estende para levantar, é gesto de restauração integral. O verbo usado para “levantar” ecoa o da ressurreição (cf. Lc 24,6; At 3,7), indicando que todo ato de cura em Jesus é antecipação da vitória sobre a morte.

Na tradição sinótica, Marcos oferece uma versão quase idêntica (Mc 1,29-39), enquanto Mateus, ao narrar a cura da sogra de Pedro, destaca o cumprimento da profecia de Isaías: “Ele tomou as nossas enfermidades e carregou as nossas doenças” (Mt 8,17; cf. Is 53,4). Isso nos ajuda a compreender que não se trata apenas de atos isolados de compaixão, mas da realização das promessas messiânicas. Jesus não é um curandeiro popular nem um mágico, mas Aquele que assume sobre si as dores do povo, revelando um Deus que não permanece distante, mas que toca, que levanta, que restitui dignidade. Essa lógica está em sintonia com outros relatos de cura: o paralítico descido pelo telhado (Lc 5,17-26), a mulher com hemorragia (Lc 8,43-48), o cego de Jericó (Lc 18,35-43) e tantos outros, onde a cura física se entrelaça com a fé, o perdão e a reintegração na comunidade.

A tradição bíblica mais antiga já apontava para esse Deus que cura e liberta. O Salmo 103 recorda: “É Ele quem perdoa todas as tuas culpas e cura todas as tuas enfermidades” (Sl 103,3). O Salmo 147 proclama que o Senhor “cura os corações feridos e enfaixa suas feridas” (Sl 147,3). O profeta Jeremias clama: “Cura-me, Senhor, e serei curado; salva-me, e serei salvo” (Jr 17,14). Em 2 Reis 5, vemos o episódio de Naamã, o sírio leproso que é purificado ao mergulhar no Jordão, sinal de que a salvação de Deus se estende além das fronteiras de Israel. Essas passagens iluminam a missão de Jesus: Ele é a encarnação da promessa de um Deus que não abandona seu povo, mas intervém na história para restaurar a vida.

A  reflexão  do texto pode nos iluminar esse aspecto. Muitos dos que buscam a religião o fazem movidos pela dor, pela fragilidade, pelo medo da morte ou pela necessidade de proteção. Há algo legítimo nesse impulso: o ser humano é vulnerável e busca apoio no transcendente. Contudo, o risco é permanecer em uma relação utilitarista com Deus, reduzindo-o a um distribuidor de favores. A sogra de Pedro, uma vez curada, levanta-se e põe-se a servir. Eis o sinal da maturidade da fé: quem é tocado por Cristo não se fecha em si mesmo, mas passa a viver para os outros. A psicologia profunda mostra que a cura não é completa se não leva à superação do narcisismo, e a espiritualidade bíblica confirma que o verdadeiro encontro com Deus desemboca no amor-serviço. O mesmo se vê no episódio dos dez leprosos (Lc 17,11-19), em que apenas um retorna para agradecer, mostrando que a cura mais profunda é a gratidão e a fé.

 Vale  recorda que as multidões acorrem a Jesus não apenas como indivíduos isolados, mas como comunidades marcadas por desigualdades, pobreza e exclusão. Na Palestina do século I, a doença não era apenas uma condição física, mas também social e religiosa: o enfermo era impuro, marginalizado, afastado da vida comunitária (cf. Lv 13–14). Ao curar, Jesus reintegra, devolve o lugar na comunidade, rompe com os mecanismos de exclusão. Isso toca diretamente a crítica às teologias da prosperidade e do domínio, que hoje transformam a fé em mercadoria, prometendo saúde, riqueza e sucesso a quem paga dízimos ou oferta. Essas teologias invertem o Evangelho, colocando Deus como servo do lucro humano e usando a religião como instrumento de poder. O Evangelho de hoje denuncia esse desvio: Jesus não veio fundar um mercado de milagres, mas inaugurar um Reino de amor gratuito. Como recorda Paulo, “Não é para o próprio interesse que cada um deve olhar, mas para o interesse dos outros” (Fl 2,4). E ainda: “O amor não busca os próprios interesses” (1Cor 13,5).

O texto é  uma provocação. O ser humano busca constantemente o sentido da vida e teme o absurdo da morte. Muitos procuram a religião para aplacar essa angústia, como já indicava Pascal ao falar do “Deus das consolações” em contraste com o “Deus de Abraão, de Isaac e de Jacó” (cf. Ex 3,6). Kierkegaard lembrava que a fé não é fuga da angústia, mas atravessamento da angústia na confiança em Deus. Jesus, ao retirar-se para um lugar deserto, mostra que não se deixa aprisionar pelas expectativas das massas, mas permanece fiel ao chamado do Pai. A fé madura não é o preenchimento de um vazio com ilusões, mas a coragem de seguir Jesus no caminho da cruz, onde a vida encontra sua plenitude (cf. Lc 9,23-24). Esse caminho já havia sido prefigurado no Servo Sofredor de Isaías (Is 53), que não busca glória, mas entrega-se em amor.

 Santo Agostinho, ao comentar os milagres de Cristo, dizia que eles são sinais visíveis de uma realidade invisível: “As curas do corpo são sinais da cura da alma”. São João Crisóstomo, por sua vez, advertia que não se deve seguir Cristo apenas pelos milagres, mas pelo ensino e pela vida nova que Ele oferece. O milagre, isolado, pode seduzir; mas só a Palavra gera discípulos. O mesmo vemos em João, onde os sinais apontam para uma realidade maior: “Estes sinais foram escritos para que creiais que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus, e para que, crendo, tenhais a vida em seu nome” (Jo 20,31). A tradição da Igreja sempre insistiu que os sacramentos são sinais eficazes da graça, não porque ofereçam saúde física ou prosperidade material, mas porque comunicam a vida nova de Cristo. São Irineu dizia: “A glória de Deus é o ser humano vivo, e a vida do homem é a visão de Deus”.

Os documentos da Igreja também reforçam essa compreensão. O Concílio Vaticano II, na Gaudium et Spes, recorda que a Igreja não pode se afastar das alegrias e esperanças, tristezas e angústias da humanidade (GS 1), mas sua missão não se reduz a resolver problemas imediatos: ela é chamada a anunciar o Reino, que ilumina e transforma a realidade. A Evangelii Gaudium de Francisco denuncia a tentação de uma fé mercantilizada, onde o Evangelho é reduzido a “um conjunto de ideias para consumo” (EG 93), e chama a uma Igreja em saída, que não se deixa prender pelos interesses de alguns, mas vai ao encontro dos pobres e marginalizados. A Fratelli Tutti insiste que a verdadeira fraternidade se constrói no serviço e no amor concreto (FT 115), o mesmo serviço que a sogra de Pedro realiza após ser curada. Recorda ainda que a caridade não se esgota em gestos de compaixão individual, mas deve gerar transformações sociais (cf. FT 186).

É mportante compreender que a religião sempre foi espaço de busca de sentido e de mediação com o sagrado. Nas culturas antigas, a doença era vista como castigo divino, e a cura como restauração da ordem cósmica. Jesus subverte esse esquema: não culpa o doente, não reforça estigmas, não cobra pagamento, não exige oferendas. Ele cura porque ama, e sua autoridade vem do Espírito Santo, não das instituições de poder (cf. Lc 4,14). Essa atitude confronta também o clericalismo, que transforma o ministério ordenado em privilégio e poder. O gesto de Jesus de impor as mãos e curar não é monopólio de uma casta, mas sinal do Reino que se expande por meio do Espírito. Uma Igreja clericalizada, que controla a graça como se fosse propriedade sua, trai a lógica do Evangelho. Paulo já advertia: “Tudo é vosso, mas vós sois de Cristo, e Cristo é de Deus” (1Cor 3,22-23).

A cena final é profundamente profética: as multidões querem reter Jesus, mas Ele afirma: “Eu devo anunciar também a outras cidades a Boa-Nova do Reino, porque para isso fui enviado”. Aqui está a essência de sua missão. Ele não se deixa aprisionar pelas demandas imediatas nem se contenta em ser curandeiro local. Seu horizonte é o Reino universal, que não se limita a Cafarnaum, mas se abre a todos os povos. Isso ecoa a profecia de Isaías: “É pouco que sejas meu servo apenas para restaurar as tribos de Jacó... Eu te farei luz das nações, para que minha salvação chegue até os confins da terra” (Is 49,6). Essa universalidade é também uma correção para uma Igreja que, muitas vezes, busca seu conforto institucional em vez de sair ao encontro das periferias. O verdadeiro discipulado não é apego a milagres, mas seguimento do Mestre que caminha sempre adiante. Como diz Paulo: “Ai de mim se eu não anunciar o Evangelho!” (1Cor 9,16).

Em síntese, a passagem de Lucas 4,38-44 nos convida a uma fé adulta. Muitos procuram a religião por medo ou interesse; Jesus nos chama a uma relação de amor, onde curados por Ele nos tornamos servidores uns dos outros. Ele não é o mágico que cumpre nossos desejos, mas o Senhor que nos envia a amar e a anunciar o Reino. Essa fé contrasta com as caricaturas promovidas pela teologia da prosperidade, pela fé-mercadoria, pelo clericalismo e pelo individualismo espiritualista. A Palavra hoje nos chama a deixar que Ele nos levante de nossas febres — sejam físicas, sociais, espirituais ou existenciais — e nos insira no dinamismo do serviço. Como a sogra de Pedro, como os tantos curados e libertos, somos chamados a transformar o dom recebido em doação. E como o próprio Cristo, devemos permanecer fiéis ao chamado maior: anunciar o Reino em toda parte, até que todos reconheçam a presença de Deus que cura, liberta e salva.



DNonato - Teólogo do Cotidiano 

terça-feira, 29 de julho de 2025

Um breve olhar sobre Mateus 13,44-46


"O Reino dos Céus é como um tesouro escondido no campo. Um homem o encontra e o mantém escondido. Cheio de alegria, ele vai, vende todos os seus bense compra aquele campo. (Mt 13,44)

O Evangelho desta quarta-feira  da 17ª semana do Tempo Comum do ano impar ,  também é  proclamado   no dia de Santa Rosa  de Lima, Padroeira da América Latina e de forma mais ampla no 17º Domingo do Tempo Comum do ano A onde se ler Mateus 13, 44-52 nos  apresenta duas parábolas curtas e luminosas: o tesouro escondido no campo e a pérola preciosa (Mt 13,44-46). Ambas giram em torno da lógica da descoberta e da decisão radical. Não se trata de uma troca por valor equivalente, mas da disposição em abandonar tudo por aquilo que se revelou infinitamente superior. Aqui, Jesus nos propõe não uma religião de práticas rituais ou garantias institucionais, mas uma vivência radical de sentido: o Reino de Deus como a realidade última que relativiza todas as outras. 

A lógica do Reino é oposta à do mercado. No mundo, valoriza-se o que pode ser contado, acumulado, exposto. No Reino, o valor é invisível, escondido como o fermento na massa (Mt 13,33), o grão na terra (Mc 4,26-29), o tesouro sob o campo. Por isso, só vê quem se dispõe a procurar com humildade. Como diz o livro dos Provérbios, «se buscares a sabedoria como prata e a procurares como tesouros escondidos, então compreenderás o temor do Senhor» (Pr 2,4-5). O Reino não se impõe, se revela; não se compra, se acolhe. Jesus, o Cristo, é esse tesouro e essa pérola. Em sua humanidade concreta, nascido da mulher e entre os pobres (Gl 4,4; Mt 1,18-25), Deus se fez próximo. Cristo é a Sabedoria eterna encarnada (cf. Sb 7,26), «em quem estão escondidos todos os tesouros da sabedoria e do conhecimento» (Cl 2,3). Encontrá-lo é deixar-se desinstalar: vender o campo da segurança, das posses, da religião como sistema de controle, e aderir com liberdade ao Reino como processo de conversão. Ele é o Caminho, a Verdade e a Vida (Jo 14,6), e quem a Ele se entrega encontra tudo. Como diz o salmista: «Senhor, Vós sois a parte da minha herança» (Sl 15,5).

Mas esse encontro não é individualista, místico ou emocionalista. O campo onde o tesouro está escondido é o campo da Escritura, da comunidade, da história. Como diz Orígenes, «o campo é a Escritura, e o tesouro é Cristo». Quem o encontra, vende tudo – mas não como perda, e sim como liberdade. Não se trata de um moralismo que exige renúncias para merecer bênçãos, mas de uma liberdade interior que relativiza tudo à luz do Reino. Por isso, a proposta de Jesus é clara e livre: «Se queres ser perfeito…» (Mt 19,21). A perfeição não é mandamento, é caminho para quem quer mais. Não é imposição, é convite. E isso revela a pedagogia do Reino: tudo se oferece, nada se impõe..  Em contraste, as teologias da prosperidade e do domínio pervertem essa lógica. Fazem do Evangelho um balcão de negócios, um palco de promessas terrenas, um teatro de autopromoção. Anunciam um Cristo sem cruz, um Reino sem conversão, uma fé sem seguimento. Vendem “pérolas falsas” a alto preço: cultos-show, espiritualidade de likes, bênçãos tarifadas. Mas o verdadeiro Cristo – pobre, servo, crucificado e ressuscitado – é tesouro que não se compra, só se acolhe. Como disse Pedro a Simão, o mágico: «Pereça contigo o teu dinheiro, pois pensaste adquirir com dinheiro o dom de Deus» (At 8,20).

O Reino não é apenas um evento íntimo, é também realidade histórica e social. Encontrar o tesouro é descobrir-se parte de um povo que caminha. A parábola do campo, no contexto do Evangelho de Mateus, não é alheia ao chão das bem-aventuranças (Mt 5,1-12), onde os pobres, os mansos, os que têm fome e sede de justiça são os herdeiros do Reino. O campo é também o mundo (Mt 13,38), onde o Reino cresce entre joio e trigo, onde a presença do tesouro não elimina a luta, mas ilumina o caminho. Por isso, quem encontra o Reino, encontra também uma vocação comunitária: ser fermento, sal e luz (Mt 5,13-16). O discípulo torna-se então anunciador e partícipe da nova lógica de Deus.

Essa lógica desconcerta o clericalismo, pois descentraliza o poder e convida todos à participação. Desafia o individualismo, pois mostra que a salvação é sempre em comunhão. Rompe com a fé como mercadoria, pois revela que Deus não se vende nem se compra: é dom. E provoca os que, iludidos por um “cristianismo triunfalista”, buscam missões longe sem perceber que o campo a ser comprado é o da própria realidade local, com suas feridas, injustiças e clamores.

O Reino é como a Sabedoria que o autor do livro da Sabedoria preferiu aos cetros e tronos: «Tudo o julguei nada em comparação com ela» (Sb 7,8). Assim também Paulo, o apóstolo, afirmou: «Considero tudo como perda diante da sublimidade do conhecimento de Cristo Jesus, meu Senhor» (Fl 3,8). A parábola da pérola nos recorda que o verdadeiro valor da vida está naquilo que não pode ser perdido nem comprado. Quem encontra Cristo reencontra tudo, até o que parecia perdido.

O Concílio Vaticano II, na Gaudium et Spes, insiste que o ser humano só se realiza verdadeiramente quando se dá por inteiro (GS 24). É o que se vê na parábola: o homem dá tudo e, ao dar tudo, encontra a plenitude. Aquele que encontra o Reino se torna também sinal escatológico do mundo novo, como anunciado no Apocalipse: «Vi um novo céu e uma nova terra…» (Ap 21,1). Mas o novo só nasce da renúncia amorosa, não da acumulação piedosa. É preciso dar-se, como o Filho do Homem que «não veio para ser servido, mas para servir» (Mc 10,45).

Oremos

Senhor Jesus, Tesouro escondido no campo do mundo e Pérola preciosa entre os pobres, dá-nos olhos para reconhecer-Te, coragem para vender tudo e coração para seguir-Te. Que sejamos teus comerciantes loucos, que trocam o mundo pelo Reino e que vivem da esperança daquele dia em que tudo será tudo em todos (cf. 1Cor 15,28).

DNonato – Teólogo do Cotidiano

quarta-feira, 23 de julho de 2025

Um breve olhar sobre Mateus 13,10-17

Na quinta-feira da 16ª semana do Tempo Comum do ano impar  a liturgia nos  convida a visitar  o texto  de Mateus 13,10-17  que  narra a explicação  da parábola  da semeadura  uma  das mensagens  dos encontros  de  cursilhos  da Cristandade. 

Entre as verdades que a autoridade das Escrituras destinou à nossa instrução (cf. 2Tm 3,16-17), há aquelas que se apresentam com tal limpidez que até mesmo os olhos menos treinados podem captar sua luz sem esforço. E há aquelas que se ocultam sob véus de silêncio e símbolos, exigindo de nós o ardor dos que escavam, dos que cavam fundo, dos que não se contentam com a superfície (cf. Pr 2,3-5). A Palavra de Deus, como o maná do deserto, é alimento diário — mas só sacia a quem sai da tenda de manhã cedo para recolhê-lo (cf. Ex 16,4-21). É como a terra fértil: há frutos que se colhem prontos; outros, precisam ser esmagados, cozidos, amassados até se tornarem pão (cf. Is 28,28). Jesus falava por parábolas. Os discípulos perguntam por quê. A resposta parece, à primeira vista, excludente: “Porque a vós foi dado conhecer os mistérios do Reino dos Céus, mas a eles não” (Mt 13,11). Mas essa afirmação precisa ser lida com o ouvido do coração (cf. Sl 95,7-8) e os olhos da fé (cf. Hb 11,1). Jesus não restringe o acesso; denuncia os bloqueios. Não ergue muros — apenas nomeia os que se recusam a passar pelas portas (cf. Jo 10,9). A pedagogia das parábolas é a pedagogia do desejo: só compreende quem deseja compreender (cf. Sl 42,2). Só escuta quem se dispõe a ser afetado. Por isso Jesus recorda Isaías: “Este povo endureceu o coração” (cf. Is 6,9-10). Eles têm olhos, mas não veem; ouvidos, mas não escutam — como já advertira Jeremias (Jr 5,21). E, como em Amós, a fome não é de pão, mas de escutar a Palavra do Senhor (Am 8,11). Mas não basta ter fome — é preciso sair ao encontro do alimento, como a mulher do Cântico dos Cânticos que, na noite escura, sai à procura do Amado (cf. Ct 3,1-2).

Desde o início da aliança, o verbo fundamental da fé bíblica não foi “ver”, mas “ouvir”: Shema Israel — “Escuta, Israel!” (Dt 6,4). Escutar é amar com todo o coração, com toda a alma, com todas as forças (cf. Dt 6,5). Escutar é aliança. É fidelidade. É entrega. É deixar-se modelar pelo oleiro divino (cf. Jr 18,6). Escutar é gesto de adoração e de resistência. Deus ouviu o clamor do povo no Egito (cf. Ex 3,7). A escuta, quando verdadeira, é libertadora: desinstala, desmascara, descoloniza. Escutar é abrir-se ao Êxodo. É romper com os faraós de ontem e de hoje. É peregrinar pela Palavra. Escutar é desobedecer à indiferença (cf. Lc 10,31-32). É permitir que Deus continue semeando esperança em nós — mesmo em silêncio (cf. Hb 6,19).

A parábola não é fábula, nem historinha de moral. Ela é fenda. Fresta. Corte no fluxo da vida automática. Ela interrompe a lógica da repetição. Vem como fermento em massa endurecida (cf. Mt 13,33), como fogo sobre o gelo da indiferença (cf. Lc 12,49), como semente que insiste mesmo em solos duros (cf. Mt 13,4-7). A parábola não se decifra com métodos ou técnicas de persuasão. Ela exige uma escuta que ultrapassa o intelecto (cf. 1Cor 2,14), um coração disposto a perder o controle, a ser desinstalado. Ela desconcerta, desloca, desconstrói — porque é viva, ativa e penetrante como espada afiada (cf. Hb 4,12).

As parábolas não são invenção de Jesus, mas herança profética. Natã contou uma parábola a Davi para fazê-lo enxergar sua própria injustiça (cf. 2Sm 12,1-7). Isaías narrou a parábola da vinha estéril (cf. Is 5,1-7), para denunciar a esterilidade de Israel. Ezequiel falou em parábolas para alertar sobre o juízo (Ez 17; 24,3). Jesus herda essa tradição, mas a radicaliza: suas parábolas não apenas ilustram — elas revelam e escondem ao mesmo tempo (cf. Mt 13,35; Sl 78,2). São enigmáticas porque visam não apenas ensinar, mas converter. Não são decorebas, mas convite ao mergulho.

Aqueles que se acham sábios demais para ouvir (cf. Rm 1,22), religiosos demais para reaprender (cf. Jo 3,10), limpos demais para tocar a lama dos símbolos, esses não compreendem. A Palavra é para todos (cf. Is 55,1), mas nem todos são para a Palavra (cf. Jo 6,60.66). Por isso, mesmo vendo, não veem; mesmo escutando, não escutam. Não se trata de exclusão arbitrária, mas de consequência espiritual-existencial (cf. Pr 1,24-28). Como um campo onde a semente é lançada com generosidade, mas só germina onde o solo se abre para acolher (cf. Mt 13,23). Jesus, nesse trecho, não descreve apenas um método de ensino. Está fazendo um diagnóstico espiritual e sociológico. Vivemos tempos semelhantes. A escuta se tornou arte rara. A saturação de palavras, discursos e notificações nos tornou surdos (cf. Ec 5,1). Há muito barulho, mas pouco silêncio fértil. Muito ensino, pouca sabedoria (cf. Eclo 21,15). Templos cheios, ouvidos vazios. Bíblias nas mãos, mas a Palavra não pulsa no coração (cf. Jr 8,9). Muitos têm acesso ao texto — mas poucos permitem que o texto os leia, os cure, os converta.

E aqui se escancara uma das feridas da fé contemporânea: a substituição da escuta pela performance. A fé, sequestrada pelo mercado, virou espetáculo (cf. Mt 6,1-5). Hoje, muitas parábolas são substituídas por frases de efeito. Pregadores digitais, treinados mais em marketing do que em mística, vendem uma espiritualidade de algoritmo: rápida, viral, sem raiz (cf. Mt 13,5-6). Mas o Reino não se viraliza — ele germina. No silêncio. Na escuta. Na espera (cf. Sl 40,2). 

A teologia da prosperidade — que transforma Deus em caixa eletrônico — não suporta parábolas, pois quer fórmulas, resultados, garantias (cf. Lc 4,12). A teologia do domínio — que confunde Reino com poder político, religioso ou moral — também as rejeita, porque as parábolas nivelam, desestabilizam, revelam a luz que expõe todas as sombras (cf. Mt 5,45). Os que usam a religião para manter estruturas de poder — como os fariseus aliados a Herodes (cf. Mc 3,6) — rejeitam a pedagogia do Reino, pois ela escapa ao controle. A fé como mercadoria não tolera parábolas: elas não cabem em embalagens de likes nem slogans de campanha. O clericalismo também as repele, pois onde tudo se decide por decreto e autoridade vertical, não há espaço para o mistério, o enigma, a escuta partilhada (cf. At 15,12.28). E, no entanto, o Reino continua sendo semeado. Mesmo onde há dureza. Mesmo onde há superficialidade. Mesmo onde há espinhos (cf. Mt 13,7). Porque a Palavra é abundante. Como nos recordava o saudoso Papa Francisco, cujo legado pastoral e profético permanece vivo e inspirador na Igreja: “Evangelizar é tornar o Reino de Deus presente no mundo” (Evangelii Gaudium, n. 176). E tornar o Reino presente é, antes de tudo, escutar. Como insiste o Concílio Vaticano II: “A Sagrada Escritura deve ser como que a alma da teologia e o alimento da alma” (Dei Verbum, n. 24). Porque “não só de pão vive o ser humano, mas de toda Palavra que sai da boca de Deus” (Dt 8,3; cf. Mt 4,4).

Escutar é também construir comunidade: é partilhar o pão, o tempo, os dons e os afetos (cf. At 2,42-47). Como diz Fratelli Tutti, escutar é o segredo da proximidade real (n. 48). E como diz Laudato Si’, não haverá nova espiritualidade sem nova escuta: da Palavra, do outro e da Criação (n. 117-118). Escutar o Reino é escutar também o grito da terra, da água, dos animais, dos povos crucificados pela ganância.

Jesus conclui com uma bem-aventurança: “Felizes os vossos olhos, porque veem; e os vossos ouvidos, porque escutam” (Mt 13,16). Não se trata de privilégio, mas de abertura. A felicidade está na disposição de escutar. De acolher. De se deixar afetar. De permitir que a Palavra faça ninho, mesmo quando vem disfarçada de silêncio (cf. Sl 131,2).

Hoje, nesta liturgia da Palavra, somos chamados à escuta que gera fruto. Que cada leitura proclamada seja como semente: que caia no silêncio fértil do nosso coração. Que escutar a Palavra, como Igreja, nos desinstale, nos converta e nos envie. Porque só escuta de verdade quem se levanta para servir (cf. Is 6,8). E onde há serviço, aí germina o Reino.

Onde o Reino germina?

No escuro. No escondido. No coração que não se cansa de amar (cf. 1Jo 4,16).

Felizes os que escutam. Porque neles o Reino germina.

DNonato – Teólogo do Cotidiano


domingo, 20 de julho de 2025

Amizade: do lado esquerdo do peito

Há companhias que apenas ocupam espaço, presenças que não aquecem, cuidados que escondem controle. E há amizades que, mesmo à distância, nos alcançam como sol em dia nublado. O tempo, com suas partidas e encontros, nos ensina que estar junto é mais do que simplesmente compartilhar o mesmo lugar. Amizade é quando a alma reconhece no outro um lugar possível de refúgio, de riso e de verdade. É quando o “nós” se torna tão denso que dissolve os muros do “eu”. Onde não há mais cálculo, mas comunhão. Onde amar não depende do merecimento, mas da mútua pertença. Na amizade verdadeira, não há competição de dores, não há silêncio como punição, nem há acúmulo de mágoas escondidas sob sorrisos mecânicos. A amizade é uma forma de amor que não exige retorno nem contrato: ela é livre como o vento e firme como raiz.

O Papa Francisco, em Fratelli Tutti (n. 215), afirma:  “Na vida há momentos em que sentimos que as palavras não bastam. Precisamos de gestos, de presenças, de abraços que nos sustentem. Os encontros são essenciais. Mas também os desencontros nos moldam. O importante é não deixar que os desencontros se tornem muros intransponíveis.”

Quantas amizades se perderam por falta de escuta, por mágoas não ditas ou por escolhas que criaram distâncias... E mais recentemente, quantas se destruíram por motivações religiosas e políticas, que deveriam ser caminhos de construção e não de separação? Como Jacó e Esaú, que se reencontraram com lágrimas depois de tanto afastamento (Gn 33), também nós somos chamados a transformar nossos desertos afetivos em abraços possíveis.

“Você, meu amigo de fé, meu irmão camarada” — cantou Roberto Carlos na canção Amigo (1977), composta por ele e Erasmo Carlos. E Milton Nascimento eternizou a amizade como algo para se guardar “do lado esquerdo do peito”, em sua Canção da América (1980), escrita com Fernando Brant. Já Amizade é Tudo (Thiaguinho e Rodriguinho, 2014) nos lembra que, mesmo quando tudo desaba, “quem é de verdade sabe quem é de mentira”. Em tempos de solidão coletiva, em que vínculos se desfazem como stories de 24 horas e afetos viram curtidas descartáveis, urge redescobrir a amizade como sacramento cotidiano.

A Bíblia está repleta de amizades que marcaram destinos. Davi e Jônatas fizeram uma aliança selada com lágrimas e fidelidade (1Sm 18–20). Davi também encontrou em Natã não um bajulador, mas um amigo profético que teve coragem de confrontá-lo com a verdade (2Sm 12). Paulo teve em Timóteo um verdadeiro “filho na fé” (1Tm 1,2), alguém com quem partilhou não apenas a missão, mas também as aflições da caminhada. Jesus chamou os discípulos de amigos, não servos (Jo 15,15), pois amizade é partilha do coração. E como diz a sabedoria do Eclesiástico: “Um amigo fiel é um refúgio seguro; quem o encontra, encontrou um tesouro. Um amigo fiel não tem preço, e seu valor é incalculável” (Eclo 6,14-16).

No mundo greco-romano, a amizade era considerada uma das formas mais nobres de afeição. Aristóteles dizia que “sem amizade, ninguém escolheria viver, mesmo que tivesse todos os outros bens” (Ética a Nicômaco, VIII). Já o Islã valoriza profundamente a irmandade e o companheirismo sincero (ukhuwah), como reflexo da solidariedade desejada por Alá. No candomblé, a amizade é vivida em forma de comunidade e ancestralidade partilhada — cada filho de santo é irmão. Nas culturas indígenas da América do Norte, o amigo é chamado de “irmão de espírito”; na tradição maia, da América Central, ser amigo é ter “coração compartilhado”; e no Brasil profundo, entre os povos originários, amizade é mais que palavra: é plantar e colher junto, dançar e chorar junto, é ser parte viva do mutirão da existência, onde ninguém se salva sozinho.

Agora, convidemos os amigos e amigas para um mosaico musical de afetos. Cada título de canção abaixo é uma forma de dizer que a amizade resiste, persiste e renasce:

Canções em português:

Amigo é pra essas coisas (1970 – Aldir Blanc & Silvio da Silva Jr.),

Você é meu amigo de fé, meu irmão camarada (1977 – Roberto Carlos),

Amizade Sincera (1991 – Renato Teixeira & Sérgio Reis),

Amizade é tudo (2014 – Thiaguinho & Rodriguinho),

Velha infância (2002 – Tribalistas),

Trem Bala (2016 – Ana Vilela),

Meus bons amigos (1999 – Lulu Santos),

A amizade é mesmo assim (2006 – Eliana),

O que é, o que é? (1982 – Gonzaguinha),

Pra ser feliz (2009 – Daniel),

Amigo estou aqui (1995 – Toy Story),

Meu amigo Jesus (2012 – Adriana Arydes),

Amizade (2001 – Padre Zezinho),

De amigo pra amigo (2013 – Anjos de Resgate),

Canção da América (1980 – Milton Nascimento),

Amigos para sempre (1992 – José Carreras & Sarah Brightman).

Clássicos internacionais:

You’ve Got a Friend (1971 – Carole King)

With a Little Help from My Friends (1967 – The Beatles)

Stand By Me (1961 – Ben E. King)

Count On Me (2010 – Bruno Mars)

That’s What Friends Are For (1985 – Dionne Warwick & Friends)

I’ll Be There for You (1995 – The Rembrandts)

I Will Be Here (1989 – Steven Curtis Chapman)

The Wind Beneath My Wings (1989 – Bette Midler)

True Colors (1986 – Cyndi Lauper)

Bridge Over Troubled Water (1970 – Simon & Garfunkel)

Forever Friends (1998 – Sandi Patty)

Lean On Me (1972 – Bill Withers)

Esses títulos, por si só, já formam mensagens que merecem ser lidas como pequenos evangelhos da convivência. Por exemplo:

🧡 Amigo é pra essas coisas. Você é meu amigo de fé, meu irmão camarada. Amizade sincera é tudo. Na velha infância ou no trem bala da vida, com meus bons amigos, a amizade é mesmo assim. O que é, o que é? Pra ser feliz. Amigo, estou aqui, meu amigo Jesus. De amigo pra amigo, seguimos juntos. Amigos para sempre, guardados do lado esquerdo do peito.

🌍 Mensagem com títulos internacionais (tradução entre parênteses):

You’ve Got a Friend (Você tem um amigo), and With a Little Help from My Friends (com uma ajudinha dos meus amigos), we Stand By Me (estamos ao seu lado) and Count On Me (conte comigo). That’s What Friends Are For (é pra isso que servem os amigos) — because I’ll Be There for You (estarei lá por você). Even when life shakes, I Will Be Here (estarei aqui), like The Wind Beneath Your Wings (o vento sob suas asas), showing your True Colors (suas verdadeiras cores). We walk together, always building Bridge Over Troubled Water (ponte sobre águas turbulentas), because we are Forever Friends (amigos para sempre). And in the silence of the journey, I whisper: Lean On Me (apoie-se em mim).

Porque no final, toda verdadeira amizade é também uma pequena bênção que Deus nos confiou. Que saibamos cuidar, perdoar, recomeçar. Que não nos falte coragem de dizer: “Me perdoa”, “Senti sua falta”, “Conta comigo”.

Oração da amizade 

Senhor, amigo fiel dos pequenos e quebrantados,ensina-nos a cultivar a amizade como se cultiva uma planta rara: com paciência, com verdade, com amor gratuito.

Dá-nos coragem para reconstruir pontes, dá-nos sabedoria para silenciar quando o ego quiser ferir, e humildade para reconhecer os amigos como sinais da Tua presença.

Que nunca nos falte ombro, riso e escuta.

Que nossas amizades, Senhor, sejam sinais vivos desse Salmo antigo que canta:  “Oh! Como é bom e agradável viverem unidos os irmãos!” (Sl 133,1)

E que em cada reencontro, ecoe em nós o Teu Evangelho: “Já não vos chamo servos… mas amigos” (Jo 15,15).

Amém.



DNonato - Teólogo do Cotidiano 

Leia também: Amar de Amizade 


sábado, 19 de julho de 2025

Um outro olhar sobre Lucas 10, 38-42 - 16º Domingo do Tempo Comum

O Senhor, porém, lhe respondeu: "Marta, Marta! Tu te preocupas e andas agitada por muitas coisas. (Lc 10, 41)

Já fizemos a reflexão  do 16º Domingo do Tempo Comum neste blog em   2022 em nosso canal do YouTube 2024,  2022, 2021 e 2020 . A  liturgia de hoje nos convida à hospitalidade, ecoando nas palavras das Escrituras. A primeira leitura, de Gênesis 18,1-10, nos apresenta Abraão e sua generosa acolhida aos três visitantes misteriosos, que se revelam a própria presença divina. O Salmo de resposta 14(15), com seu refrão “Quem habitará, Senhor, no vosso santuário?”, nos convida à reflexão sobre a pureza de coração necessária para a verdadeira comunhão com Deus. Em Colossenses 1,24-28, a segunda leitura, Paulo nos revela o mistério de Cristo em nós, a esperança da glória. E o Evangelho segundo Lucas 10,38-42 proclamado no 16º Domingo do Tempo  Comum do ano "C" e  na  terça-feira  da 27ª semana  do tempo comum do ano par,  nos situa na casa de Marta e Maria, em Betânia, onde a tensão entre a ação e a escuta se manifesta de forma marcante. Em todas essas passagens, percorre-se o fio invisível da escuta, do acolhimento e da revelação do mistério de Deus no ordinário da vida. Não se trata apenas de hospitalidade doméstica ou de práticas religiosas, mas da abertura existencial à presença divina que se revela quando nos dispomos a sair de nós mesmos e criar espaço para o outro – inclusive para o Outro com maiúscula, que é o próprio Deus que se faz hóspede em nossa história.

O Evangelho de Lucas situa Jesus na casa de Marta e Maria, em Betânia, um território de amizade e confiança. Essa casa não é um lugar qualquer; ela se configura como um espaço de refúgio e intimidade, já referida em João 11 e 12 como a morada de Lázaro, amigo do Senhor. Betânia representava um ponto de apoio no caminho de Jesus rumo a Jerusalém, onde sua Páscoa se consumaria. Ali, Jesus não é apenas mestre ou profeta; é um amigo que visita, compartilha da vida e entra no espaço feminino de duas irmãs com quem mantém uma relação próxima e verdadeira. E justamente neste ambiente de intimidade, surge um conflito que, à primeira vista, parece meramente doméstico, mas que transcende para tocar em uma tensão espiritual, social e até política, revelando nuances profundas da condição humana: Marta corre para garantir a hospitalidade prática, enquanto Maria se coloca aos pés do Mestre para escutá-lo.

É crucial recordar que o encontro de Jesus com Marta e Maria acontece imediatamente após a parábola do Bom Samaritano, compondo uma sequência narrativa intencional que Lucas constrói com maestria teológica e pedagógica. O samaritano, estrangeiro e marginalizado, torna-se exemplo de amor concreto, de ação compassiva, mostrando que o verdadeiro culto a Deus passa pelo cuidado com o próximo ferido na estrada da vida (Lc 10,25-37). Mas o Evangelho não termina aí: a ação precisa ser sustentada por uma escuta profunda, como a de Maria, que se senta aos pés de Jesus. Esse encadeamento evangélico recorda Deuteronômio 6,4-5 — o “Shema Israel”: “Escuta, Israel! O Senhor nosso Deus é o único Senhor. Amarás o Senhor teu Deus de todo o teu coração, de toda a tua alma e com todas as tuas forças.” O amor ao próximo nasce da escuta do Deus único. A hospitalidade, nesse horizonte, não é mera gentileza cultural, mas uma das obrigações centrais da Torá, repetidamente enfatizada em textos como Levítico 19,33-34: “Se um estrangeiro habitar convosco, no vosso país, não o oprimireis. O estrangeiro será para vós como o natural dentre vós; tu o amarás como a ti mesmo, pois fostes estrangeiros na terra do Egito.” A tradição judaica entendia o acolhimento como expressão da santidade (Lv 19,2), um gesto que atualiza a memória da libertação e expressa a fidelidade à Aliança. Não por acaso, Abraão corre ao encontro dos três visitantes em Mambré (Gn 18,1-10), Maria de Betânia oferece sua escuta, e o samaritano para para cuidar do caído. Esse mesmo princípio aparece na ordem de Jesus em Marcos 12,29-31, ao unir o mandamento do amor a Deus com o amor ao próximo. Não há serviço verdadeiro sem contemplação, nem contemplação autêntica que não se traduza em serviço. Isaías 50,4 já anunciava essa espiritualidade integral ao declarar: “Cada manhã ele desperta o meu ouvido para que eu escute como um discípulo.” E é essa escuta que antecede o envio. Como Elias no Horeb (1Rs 19,11-13), que reencontra a voz de Deus não no terremoto ou no fogo, mas no “sopro suave”, também nós somos chamados a reencontrar no silêncio orante e na escuta humilde a fonte da ação profética. Marta e Maria, o Samaritano e Abraão, Maria de Nazaré e Paulo: todos se movem por esse dinamismo do encontro, onde escutar e servir não se opõem, mas se iluminam mutuamente, revelando que a hospitalidade verdadeira começa na escuta do coração. E o gesto de Maria não é irrelevante, mas profundamente revolucionário para sua época. Na cultura judaica do século I, as mulheres não podiam sentar-se aos pés de um rabino para aprender. Essa era uma prerrogativa exclusiva dos homens, dos discípulos formais. Maria rompe corajosamente com essa barreira cultural, e Jesus, em um ato de profunda subversão às normas sociais vigentes, legitima sua escolha. A expressão “sentar-se aos pés” é técnica, indicando a posição de um discípulo ávido por aprender, como vemos em Atos 22,3, onde Paulo afirma ter sido instruído “aos pés de Gamaliel”. Maria, portanto, assume, diante de todos e de si mesma, a postura de quem quer aprender, de quem deseja não apenas servir a Jesus com tarefas práticas, mas compreender a Palavra em sua essência. Essa postura, contraintuitiva para a época, causa desconforto à irmã Marta, que ainda está presa a um modelo de espiritualidade baseado no fazer incessante, no ativismo que, ironicamente, muitas vezes nos afasta da escuta silenciosa e atenta ao mistério.

Jesus, no entanto, não desvaloriza Marta nem exalta Maria como se houvesse um antagonismo entre elas. Sua intervenção é um convite à introspecção, um apontamento para a desordem interior de Marta: “Anda inquieta e agitada com muitas coisas” (v. 41). O problema não reside no serviço em si, que é nobre e necessário, mas no serviço que se transforma em angústia, em cobrança, em comparação, em uma tentativa, muitas vezes inconsciente, de impor ao outro a própria forma de viver a fé. Não por acaso, muitos líderes religiosos hoje agem como uma “Marta desfigurada”: exigem dos outros adesão ao seu próprio ritmo frenético, confundem discipulado com desempenho e medem a espiritualidade pela quantidade de atividades desenvolvidas, e não pela qualidade do encontro transformador com o Senhor. Aqui ressoa com força a crítica profética do Papa Francisco, que nos recorda em Evangelii Gaudium, n. 14: “A Igreja não cresce por proselitismo, mas por atração”. E essa atração só ocorre quando deixamos de lado o ativismo vazio e cultivamos uma escuta autêntica, contemplativa e comprometida, capaz de gerar vida e sentido.

A crítica de Jesus não é apenas dirigida a Marta, mas a uma lógica, uma mentalidade, que persiste vigorosamente em nossos dias: o delírio da produtividade espiritual, da fé transformada em tarefa, da missão esvaziada de seu sentido mais profundo e convertida em um empreendimento, muitas vezes motivado por interesses próprios. A teologia da prosperidade, que distorce a mensagem evangélica ao prometer bênçãos materiais em troca de sacrifícios pessoais e ofertas financeiras, instrumentalizando a fé para fins de ganho; a teologia do domínio, que usa o Evangelho para legitimar poder político e autoritário, subjugando consciências em vez de libertá-las; a fé-mercadoria, onde o templo se converte em um mercado de bens e serviços religiosos e o sacramento em uma performance vazia de significado, todas essas distorções nascem da incapacidade de parar, escutar, discernir e deixar que a Palavra de Deus nos interpele em nossa interioridade. Como Marta, muitos hoje querem obrigar os outros a viver a fé segundo seus próprios moldes, confundem o zelo pela casa de Deus com imposição de regras rígidas, e o cuidado com o outro se torna uma cobrança moral asfixiante ou um controle institucional que mina a liberdade do Espírito. Esse clericalismo, que incha o ego e esvazia a alma, é uma das maiores chagas da Igreja contemporânea, sufocando a profecia e a alegria do Evangelho.

Marta é, então, a imagem pungente da espiritualidade agitada que corre o risco de perder o centro, de desviar-se da fonte da verdadeira vida. Maria, por sua vez, representa a escuta radical, o discipulado contracultural, a abertura à Palavra que desinstala, que desafia as convenções e os paradigmas estabelecidos. Mas é crucial entender que ambas são necessárias para uma fé plena e autêntica. A tradição cristã nunca as separou, mas, ao contrário, as integrou em uma tensão criativa. São Gregório Magno, em sua Homilia 33 sobre os Evangelhos, afirmou com sabedoria que “Marta e Maria representam as duas dimensões da vida cristã: a ação e a contemplação. Ambas são necessárias, mas a contemplação é superior, pois é ela que alimenta a ação e lhe dá sentido”. O problema de Marta não reside em seu serviço, que é uma expressão de amor e cuidado, mas em sua tentativa de silenciar a escuta do outro, de sufocar a necessidade de parar e se nutrir da Palavra. Essa dinâmica pode ser analisada sob a ótica da psicologia, onde o ativismo incessante muitas vezes encobre ansiedades e a necessidade de controle, enquanto a capacidade de escuta e contemplação está ligada à inteligência emocional e à paz interior. Sociologicamente, o conflito reflete a tensão entre o pragmatismo e o misticismo, entre a organização social e a busca individual por significado.

Se voltarmos ao Gênesis, na primeira leitura, vemos Abraão acolhendo três visitantes misteriosos com uma hospitalidade generosa e incondicional. Ele não sabia, mas estava diante do próprio Deus, que se manifestava sob a forma humana (Gn 18,1-10). É na escuta atenta, no acolhimento sem reservas, que a promessa divina se revela: "No próximo ano, tua esposa Sara terá um filho". O que parecia apenas um gesto de hospitalidade transforma-se em um encontro com o sagrado, em uma ruptura com a lógica da esterilidade e da impossibilidade. Em Lucas, Maria, como Sara, ouve a promessa da Palavra. A escuta gera vida. A escuta é fecunda. A escuta abre espaço para o novo, para o inusitado, para a graça que irrompe na história.

Infelizmente, muitos hoje preferem gritar do que escutar. Preferem uma fé ruidosa, cheia de eventos, luzes, programações intensas, mas vazia de interioridade, de silêncio, de Palavra que ecoa na alma. As missas, por vezes, se transformam em shows, o altar em palco, e os pregadores em artistas da performance religiosa, buscando aplausos e reconhecimento, em vez de conduzirem à humildade do encontro com o transcendente. E os que ainda buscam silêncio e contemplação são frequentemente tidos como frios, pouco fervorosos ou desengajados. O grito de Marta ecoa nessas práticas: "Senhor, não te importas que minha irmã me deixe sozinha no serviço?" (v. 40). E Jesus, com sua sabedoria divina, responde a todos nós, desafiando nossas prioridades e apegos: “Maria escolheu a melhor parte, e esta não lhe será tirada” (v. 42).

A “melhor parte” não é o ócio ou a inatividade irresponsável. É a escuta que precede a ação. É o discipulado antes da missão. É o saber antes do fazer. É a sabedoria antes do ativismo desmedido. Sem essa base sólida, o agir cristão se torna um ativismo secular com um rótulo religioso, vazio de propósito e de graça. E isso vale para todas as estruturas da Igreja, desde a paróquia mais humilde até as mais altas instâncias: quando a pastoral se torna uma máquina burocrática, a liturgia um espetáculo sem profundidade, a caridade um mero assistencialismo sem empatia, a missão um marketing empresarial e a evangelização um algoritmo frio, perdemos o essencial. A espiritualidade cristã só é autêntica e verdadeiramente libertadora quando integra Marta e Maria em uma tensão criativa, com a escuta como fonte inesgotável de vida e o serviço como sua consequência natural e generosa. Como ressalta a patrística, a união dessas duas dimensões é a chave para a santidade.

Lucas, ao narrar esse episódio logo após a parábola do Bom Samaritano (Lc 10,25-37), nos convida a um equilíbrio dinâmico entre ação e contemplação. O samaritano agiu com misericórdia e eficácia, mas agiu porque viu a necessidade, e viu porque teve compaixão. E a compaixão, em sua essência, nasce de um coração que escuta: escuta o clamor dos caídos, escuta a Palavra de Deus, escuta a voz do Espírito Santo que move à ação. Do mesmo modo, em Marcos 3,31-35, Jesus redefine a família espiritual, afirmando: “Quem faz a vontade de Deus, esse é meu irmão, minha irmã e minha mãe.” A vontade de Deus, no entanto, só pode ser feita quando é escutada e compreendida em profundidade. Em Mateus 17,5, na Transfiguração, o Pai declara de forma inequívoca: “Este é o meu Filho amado. Escutai-o!” A escuta é, portanto, sempre a primeira e mais fundamental resposta da fé.

Na Carta aos Colossenses, Paulo fala de seu sofrimento como expressão do mistério de Cristo, “Cristo em vós, a esperança da glória” (Cl 1,27). Esse Cristo que sofre e salva é também o que visita nossas casas, nossas feridas mais profundas, nossos silêncios. Precisamos reaprender a receber o Senhor não como um produto litúrgico ou uma peça de um ritual vazio, mas como hóspede sagrado. Como presença viva, e não como ideologia a ser imposta. Como Palavra que interpela e transforma, e não como um slogan religioso vazio. Como rosto dos pobres e marginalizados, e não como símbolo de poder e opulência. A filosofia existencial nos lembra que a verdadeira presença se dá na relação autêntica, não na objetificação.

Neste mundo fragmentado e ruidoso, onde tantos líderes religiosos se tornam administradores de empresas e caçadores de curtidas em redes sociais, confundindo a espiritualidade com a autopromoção, precisamos redescobrir a escuta como ato revolucionário. Escutar a Palavra de Deus que nos nutre. Escutar os clamores dos pobres e oprimidos que nos desafiam. Escutar o silêncio do nosso próprio coração, onde Deus habita. Escutar a voz do Espírito Santo que ainda hoje sussurra em nossas casas, em nossas caminhadas, em nossos desertos. A antropologia cultural nos mostra como o ritmo acelerado da vida moderna, impulsionado pela tecnologia, dificulta essa escuta profunda. Marta e Maria nos ensinam que é possível, sim, servir e escutar, agir e contemplar, viver a fé de forma integrada, coerente e libertadora, abraçando a tensão criativa entre o fazer e o ser, entre a ação e a contemplação.

Qual das duas dimensões, a ação ou a escuta, você sente que precisa cultivar mais em sua vida hoje?



DNonato - Teólogo do Cotidiano 



quarta-feira, 16 de julho de 2025

Um breve olhar sobre Mateus 11,28-30


"²⁸Vinde a mim todos vós que estais cansados e fatigados sob o peso dos vossos fardos, e eu vos darei descanso. ²⁹Tomai sobre vós o meu jugo e aprendei de mim, porque sou manso e humilde de coração, e vós encontrareis descanso.  ³⁰ Pois o meu jugo é suave e o meu fardo é leve."

Essa é a palavra proclamada na liturgia da Quarta-feira da 2ª Semana do Advento (Ano Par) e da Quinta-feira da 15ª Semana do Tempo Comum (Ano Ímpar). Mas sua força ultrapassa o ciclo litúrgico. Ela continua viva nos becos onde a esperança respira por aparelhos. É uma palavra que não conhece calendário, pois ressoa sempre que houver cansaço acumulado, opressão normalizada e fome de sentido. Seja no ventre do Advento que espera, seja no coração do Tempo Comum que caminha, este grito de Jesus é refúgio para os esgotados e desafio aos opressores.

Há uma ternura revolucionária neste convite. Não se trata de um consolo sentimental, mas de uma convocação libertadora. Jesus não fala aos poderosos ou bem-sucedidos. Ele se dirige aos exaustos da alma, aos esmagados pelo peso da religião sem misericórdia, pelos impérios que cobram sem perdoar, pelas exigências sociais que matam em silêncio. Fala aos que, como no tempo do Êxodo, ainda hoje gemem sob fardos impostos por Faraós modernos. Como ouvimos em Êxodo 3,7-8: “Vi a aflição do meu povo... ouvi o seu clamor... e desci para libertá-lo”.

Nesse mesmo espírito, o convite de Jesus é dirigido também aos que vivem sob a lógica do desempenho, da meritocracia espiritual, do medo disfarçado de doutrina. Fala aos que são esmagados por religiões que vendem Deus como prêmio e tratam a fé como moeda de troca. “Vinde a mim” — Ele diz — e não a um sistema, nem a uma elite espiritual, nem a um mercado da fé. Jesus é o repouso em pessoa. O evangelho de Mateus coloca esse apelo logo após Jesus lamentar a rejeição das cidades (Mt 11,20-24) e louvar o Pai por se revelar aos pequenos (v.25). Aqui já se delineia o conflito entre os que dominam a fé e os que a acolhem com humildade. Como os salmistas que, em meio à opressão, clamavam: “Bendito seja o Senhor, dia após dia: Ele carrega por nós o nosso fardo” (Sl 68,20). Ou ainda: “Entrega o teu fardo ao Senhor e Ele te sustentará” (Sl 55,23). O Deus de Jesus é esse que carrega conosco. Não aquele que impõe pesos para medir fidelidades. “Tomai sobre vós o meu jugo e aprendei de mim...” (Mt 11,29)

O jugo (zygos, em grego) simboliza tanto o vínculo com um mestre quanto a carga compartilhada com outro. O jugo de Jesus é nova aliança, nova leitura da Lei, novo modo de estar com Deus e com os outros. Ele mesmo nos alerta contra os que “atam fardos pesados e os colocam nos ombros dos outros, mas não querem movê-los com um dedo” (Mt 23,4). Ao contrário, Jesus compartilha o peso. Ele mesmo entra na carga. Ele mesmo se abaixa.

Essa imagem evoca a profecia de Isaías 53,4: “Em verdade, Ele tomou sobre si as nossas dores e carregou as nossas enfermidades”. O Cristo que chama os cansados é o Servo que se faz ferido pelos feridos, o Deus que sangra conosco, o Pastor que carrega a ovelha nos ombros (cf. Lc 15,5). Por isso, Seu jugo é leve: não por ser fácil, mas por ser carregado com amor, como ensinou Paulo: “Levai os fardos uns dos outros e assim cumprireis a lei de Cristo” (Gl 6,2).

A Igreja, quando fiel a esse Cristo manso, torna-se extensão do Seu convite. Como Pedro afirmou após a cura do paralítico: “Por que colocais sobre os discípulos um jugo que nem nossos pais puderam suportar?” (At 15,10). O verdadeiro Corpo de Cristo não acrescenta peso: oferece alívio, cura e partilha.

“...porque sou manso e humilde de coração” (Mt 11,29)

Jesus não diz “sou exigente e justo”, nem “sou forte e puro”, mas “manso e humilde”. Essa não é uma declaração de fraqueza, mas a revelação de uma força que não oprime. Como na profecia de Zacarias 9,9: “Eis que teu rei vem a ti... manso, montado num jumento”. Ele é o Rei do paradoxo: domina servindo, vence entregando-se, reina lavando os pés.

A humildade de Jesus não é retórica, é cruz. Como diz Paulo em Filipenses 2,6-8, Ele “esvaziou-se a si mesmo, fazendo-se servo, obediente até a morte, e morte de cruz”. Quem aprende dEle, aprende a inclinar-se. Aprende que o verdadeiro discipulado não é subir degraus espirituais, mas descer aos abismos do outro. Essa mansidão e humildade são terapêuticas. Num mundo marcado pela autoimagem agressiva, pela competição espiritual e pela comparação constante, Jesus ensina a acolher-se e a acolher. É o antídoto para os que foram esmagados por vozes religiosas adoecidas: “Tu não foste suficiente”, “Tua fé falhou”, “Te faltou santidade”. A mansidão de Jesus rompe essas vozes. Sua presença é bálsamo para a alma ferida, repouso para os que carregam pesos invisíveis. Ele se aproxima como um amigo fiel, como em Eclesiástico 6,14-16: “Um amigo fiel é um refúgio seguro, quem o encontra encontrou um tesouro”.

“E encontrareis descanso para as vossas almas” (Mt 11,29)

O termo grego para “descanso” é anapausis: repouso profundo, cessar de lutas, reencontro com o centro da vida. É o descanso do Gênesis: “E Deus descansou no sétimo dia de toda a obra que havia feito” (Gn 2,2). Não é mera pausa: é repouso habitado, respiro que cura.

Esse descanso é mais que ausência de dor. É presença de amor. É como o que se anuncia em Jeremias 6,16: “Ponde-vos nos caminhos e perguntai pelas veredas antigas... e encontrareis descanso para as vossas almas”. Mas os homens responderam: “Não andaremos por elas”. Também hoje muitos preferem o cansaço do sucesso ao repouso do amor. Preferem os palcos da fé ao silêncio do coração. Mas esse descanso é oferecido a quem tem o corpo cansado, não só a alma ferida. Jesus não fala a fantasmas. Ele fala aos corpos suados das lavadeiras, aos ombros curvados dos garis, às mães que choram diante da fila do hospital público, aos desempregados de currículo na mão. Fala aos corpos invisíveis que o mercado espiritual não quer mostrar no palco da prosperidade. E por isso a Boa Nova também é corpo: “Aos cansados Ele dá vigor, e aos que não têm forças, Ele enche de energia” (Is 40,29).

“Porque o meu jugo é suave e a minha carga é leve” (Mt 11,30)

O jugo de Jesus é leve porque é feito de amor compartilhado. É leve como o amor que suporta tudo (1Cor 13,7), como o gesto da viúva pobre que dá duas moedas (Mc 12,41-44), como o perdão que carrega o fardo do outro sem cobrar troco (Lc 15,20-24). É leve porque não isola. O peso que mais esmaga é o da solidão, o da culpa acumulada, o da espiritualidade sem comunidade. A salvação não é fuga do mundo, mas abraço da realidade, em comunhão. A fé que liberta não é fuga para o céu, mas compromisso com a terra.

Por isso, o jugo de Jesus desafia as igrejas que vendem bênçãos como cambistas no templo (cf. Mt 21,12-13). Confronta os altares enfeitados, mas sem compaixão. Desmonta os púlpitos de ouro que pregam sucesso, mas se calam diante da fome. Jesus não abençoa a fé-circo, nem a fé-bancada, nem a fé-empresa. Seu jugo é leve porque não se vende. Porque é pura doação. Como dizia São João da Cruz: “Onde não há amor, ponha amor, e colherá amor”. Esse é o caminho do jugo suave. Esse jugo não é apenas caminho espiritual. Ele é promessa escatológica. Ele antecipa o repouso do fim. Como diz Hebreus 4,9: “Resta um repouso sabático para o povo de Deus”. E como proclama o Apocalipse: “Felizes os mortos que desde agora morrem no Senhor. Sim — diz o Espírito — descansem dos seus trabalhos, pois as suas obras os acompanham” (Ap 14,13).

O descanso de Cristo é já e ainda não. É pouso agora e plenitude depois. É pão na jornada e festa no fim. É caminho com cruz e chegada com ressurreição. Quem carrega com amor, será carregado no último dia. Porque o Cristo que nos chama para alívio hoje é o mesmo que nos ressuscitará amanhã.

Esse é o Deus de Jesus.

Esse é o Cristo que alivia.

Esse é o jugo que liberta.

Que este trecho de Mateus 11,28-30 seja uma oração constante para os que carregam cansaços sem nome. Que seja lido ao amanhecer pelos pobres que vão ao trabalho. Que seja sussurrado à beira da cama dos doentes. Que seja anunciado nas ruas, nas favelas, nos presídios. 

Porque é ali que o jugo de Cristo revela sua verdadeira leveza.

DNonato – Teólogo do Cotidiano

terça-feira, 15 de julho de 2025

Um breve olhar sobre Mateus 12, 46-50.


A cena é simples, mas o gesto é revolucionário. Enquanto Jesus ensinava às multidões — partilhando a Palavra, curando os doentes, enfrentando a hipocrisia religiosa e anunciando o Reino — sua mãe e seus irmãos se aproximam e tentam falar com Ele. Não entram, ficam do lado de fora. Um dos presentes, talvez com respeito ou curiosidade, avisa: “Tua mãe e teus irmãos estão aí fora, e querem falar contigo” (cf. Mt 12,46-47). A resposta de Jesus, no entanto, desconcerta, rompe expectativas, e abre um novo horizonte espiritual: “Quem é minha mãe? Quem são meus irmãos? Aquele que faz a vontade de meu Pai que está nos céus, esse é meu irmão, minha irmã e minha mãe” (Mt 12,48-50).

Esse breve episódio, proclamado com frequência nas memórias de Nossa Senhora e na liturgia ferial da 16ª semana do Tempo Comum, revela com nitidez a profundidade profética da pedagogia de Jesus. Ele não nega seus laços familiares, tampouco os despreza. Ao contrário: honra-os, mas os transfigura. Ao reconfigurar a noção de família, Jesus nos chama a uma conversão radical de nossas relações — com Deus, com os outros, com as estruturas sociais e religiosas. Não se trata de abandonar vínculos afetivos, mas de relativizá-los diante de um chamado mais alto: o de viver na escuta e na prática da vontade de Deus, critério definitivo de pertencimento à nova comunidade do Reino.

Esse versículo está no final de uma sequência de confrontos com os fariseus e mestres da Lei (Mt 12,1-45). O capítulo inteiro revela o choque entre a lógica do Reino — centrada na misericórdia, no acolhimento e na obediência a Deus — e as estruturas de poder religioso, jurídico e moral que distorcem a fé para controle. No episódio anterior, Jesus já havia declarado: “Eu quero misericórdia, e não sacrifício” (Mt 12,7; cf. Os 6,6), e acusara aquela geração de buscar sinais espetaculares, mas sem abertura interior para a conversão (Mt 12,39-42). O contexto imediato, portanto, é um convite à ruptura com os vínculos baseados apenas em tradições culturais ou biológicas, e à adesão a um novo princípio de filiação: a escuta e a prática da vontade de Deus, que é sempre exigente, libertadora e fecunda.

Jesus está revelando uma antropologia nova: não somos definidos pelo sangue, pela linhagem, pelo nome de família ou pelas instituições, mas pela escuta e adesão à Palavra que transforma. Lucas reforça isso quando registra: “Minha mãe e meus irmãos são aqueles que ouvem a palavra de Deus e a põem em prática” (Lc 8,21). Marcos, por sua vez, situa essa fala após a acusação de que Jesus estava possuído por Belzebu (Mc 3,20-35), indicando que a nova família não se organiza por laços naturais, mas pelo discernimento espiritual. Como diz o prólogo joanino: “A todos que o receberam, deu-lhes o poder de se tornarem filhos de Deus… não do sangue, nem da vontade da carne, nem da vontade do homem, mas de Deus” (Jo 1,12-13).

Essa redefinição de família, sob a ótica de Jesus, desestabiliza qualquer pretensão de apropriação religiosa, tribal ou eclesiástica da salvação. Jesus denuncia o etnocentrismo dos grupos religiosos de sua época, mas também antecipa o que Paulo desenvolverá com clareza: “Em Cristo já não há judeu nem grego, escravo nem livre, homem nem mulher” (Gl 3,28). A nova comunidade do Reino é formada por todos os que se dispõem a viver a vontade do Pai: com fé, coragem e fidelidade, como Abraão (cf. Gn 22,18), como os profetas perseguidos (cf. Mt 5,12), como os pequenos que recebem o Reino com coração aberto (cf. Mt 18,3-4).

Maria, longe de ser excluída, é aqui exaltada. Ela é a primeira a fazer a vontade de Deus (cf. Lc 1,38), a mulher que guarda todas as coisas no coração (cf. Lc 2,19.51), a discípula fiel até o pé da cruz (cf. Jo 19,25). É ela que proclama: “O Senhor fez em mim maravilhas… derrubou os poderosos de seus tronos e exaltou os humildes” (Lc 1,49.52). Sua maternidade espiritual não se reduz ao aspecto biológico: ela é mãe porque escuta, crê e segue. É figura da nova humanidade redimida. A tradição e o Magistério reconhecem nela não apenas a Mãe do Verbo encarnado, mas a imagem da Igreja que caminha na fé (cf. LG 63), a primeira entre os discípulos e a mais próxima da vontade do Pai.

Essa Palavra é profundamente contracultural. Em tempos em que a fé é mercantilizada, manipulada para interesses de poder ou reduzida a um espetáculo de likes e aplausos, Jesus declara: “Minha família é quem faz a vontade do Pai”. A fé verdadeira é a que se traduz em prática, não em performance; em compaixão, não em dogmatismo; em comunidade, não em individualismo espiritual. A parábola da casa sobre a rocha, que precede esse trecho (cf. Mt 7,24-27), ecoa aqui como chave hermenêutica: só quem ouve e pratica a Palavra constrói sua vida sobre alicerces sólidos.

A fé como mercadoria, alimentada por teologias da prosperidade, não encontra espaço no projeto de Jesus. Ele não chamou uma elite privilegiada, mas uma multidão sedenta, marginalizada, doente, excluída. A família de Jesus é a dos que não têm poder, mas se fazem pequenos para acolher o Reino (cf. Mt 11,25). A fé do Reino é partilha, é cruz, é comunhão de dores e esperanças. O clericalismo, por sua vez, que cria castas dentro da Igreja, encontra nesta cena uma denúncia: Jesus estende a mão não aos especialistas da Lei, mas aos discípulos simples, anônimos, disponíveis. A nova família não tem lugar para a arrogância espiritual.

Do ponto de vista psicológico e antropológico, esse chamado à nova filiação exige maturidade emocional e responsabilidade moral. Romper com dependências, inclusive religiosas, para assumir um caminho livre e autêntico, implica sofrimento, desapego e discernimento. “Quem ama seu pai ou sua mãe mais do que a mim, não é digno de mim” (Mt 10,37) não é desprezo pelos laços afetivos, mas um alerta: o Reino exige prioridade. Como diria Kierkegaard, é preciso escolher “o absoluto em vez do relativo”. Ser discípulo é sempre uma decisão que ressignifica todos os vínculos: familiares, sociais, religiosos, econômicos

Por isso, essa Palavra ressoa hoje com força particular: em uma era de tribalismos ideológicos, de radicalismos identitários e de seitas religiosas que tentam capturar a fé com promessas de poder, cura ou prosperidade, Jesus nos convida à comunhão aberta, livre e operante com todos os que fazem a vontade do Pai. Fazer essa vontade é escutar a Palavra (cf. Dt 6,4), meditar nela dia e noite (cf. Sl 1,2), praticá-la no concreto da vida (cf. Tg 1,22), vivê-la no amor (cf. Jo 15,10-12).A cena termina com um gesto: Jesus estende a mão para os discípulos e diz: “Eis minha mãe e meus irmãos” (Mt 12,49). É um gesto de fundação eucarística e profética. Estender a mão é partilhar a missão, é confiar a Palavra, é reunir uma nova humanidade. Ali nasce a nova casa: não feita de tijolos ou de regras, mas do Espírito que sopra onde quer (cf. Jo 3,8), do amor que liberta (cf. Gl 5,1), da comunhão que supera as fronteiras (cf. Ef 2,14-19).É essa casa que somos chamados a construir: com Maria, com os discípulos, com todos os que se dispõem a dizer “faça-se em mim segundo tua Palavra”. Não por nome, não por tradição, não por aparência — mas por escuta, fé e ação. Eis a nova família: comunidade de irmãos, irmãs, mães… filhos e filhas do Reino que vem.



DNonato - Teólogo do Cotidiano