sábado, 4 de outubro de 2025

Um breve olhar sobre Lucas 10, 17-24

 

No 26º sábado do tempo comum somos chamados a ler o texto de Lucas  10,17‑24, que  apresenta  a missão dos setenta e dois discípulos como experiência de vida e aprendizagem para toda a comunidade. É uma narrativa de retorno e entusiasmo, mas, sobretudo, uma lição sobre a verdadeira fonte de alegria e sobre a percepção correta do Reino de Deus. A liturgia, ao situar esse texto no cotidiano, em vez de grandes celebrações, nos recorda que a fé não se mede por aplausos, números ou conquistas visíveis, mas pela fidelidade humilde e pela certeza de que pertencemos a Deus.

Ao regressarem, os discípulos exultam: “Senhor, até os demônios nos obedeceram por causa do teu nome!” (Lc 10,17). A alegria deles nasce da experiência imediata, do poder visível, da recompensa concreta. Psicologicamente, é uma reação natural: reforço positivo, sensação de competência, validação social. Mas Jesus desloca o foco da exultação: “Eu via Satanás cair do céu como um relâmpago” (Lc 10,18). O relâmpago simboliza a rapidez com que o mal se manifesta e desaparece, a efemeridade do poder aparente. Historicamente e sociologicamente, vemos ciclos de impérios e sistemas de opressão que surgem com imponência e logo se desmoronam. O símbolo do relâmpago nos ensina que todo poder humano, quando confrontado com a força de Deus, é transitório, frágil e ilusório.

Contudo, Jesus não nos convida a alegrar-nos pelo resultado das obras visíveis: “Não vos alegreis porque os espíritos vos obedecem; antes, alegrai-vos porque os vossos nomes estão escritos no céu” (Lc 10,20). A verdadeira alegria, resiliente e profunda, não depende de conquistas externas. A psicologia positiva identifica isso como “eudaimonia” — a realização do ser e a conexão com um propósito maior. Viktor Frankl diria que mesmo diante da adversidade, a vida humana encontra sentido no que transcende a circunstância imediata. Assim, a alegria do discípulo não é condicional ao sucesso da missão, mas à pertença ao Reino e à fidelidade humilde ao Deus vivo.

Mateus 10,16-17 complementa esta pedagogia: “Eis que vos envio como ovelhas no meio de lobos; sede prudentes como serpentes e simples como pombas. Guardai-vos dos homens, pois vos entregarão aos tribunais e vos açoitarão nas sinagogas.” Marcos (13,9-13) reforça o realismo da missão: perseguição, hostilidade e sofrimento fazem parte do caminho. Assim, o Evangelho apresenta uma pedagogia da fidelidade e não do triunfo aparente. Historicamente, as comunidades cristãs sobreviveram e floresceram precisamente quando aprenderam a confiar na graça de Deus, não em estruturas de poder ou prestígio.

O “nome escrito no céu” é símbolo poderoso. Antropologicamente, refere-se à memória, à identidade e à pertença definitiva. No Antigo Testamento, Daniel fala dos “inscritos no livro” (Dn 12,1), e o Apocalipse menciona o “livro da vida” (Ap 20,12). Filosoficamente, a inscrição do nome revela que o ser humano é valorizado por Deus não por realizações externas, mas por participação na vida eterna. Sociologicamente, isso subverte hierarquias humanas e sistemas de prestígio, lembrando que a verdadeira dignidade não é conferida pelo mundo.

A oração de Jesus, “Eu te louvo, ó Pai, Senhor do céu e da terra, porque escondeste estas coisas aos sábios e inteligentes e as revelaste aos pequeninos” (Lc 10,21), é um clímax teológico e profético. Os “sábios e inteligentes” não são aqueles que estudam, mas os que confiam em si mesmos, arrogantes e autossuficientes. Os “pequeninos” são humildes ativos, abertos à graça, capazes de acolher a revelação. O Magnificat ecoa esta lógica (Lc 1,52), assim como 1Coríntios 1,27: Deus escolhe os fracos para confundir os fortes. Patrística e Magistério reforçam: Santo Irineu, Santo Agostinho e Gregório Magno enfatizam que a fé genuína floresce na simplicidade do coração. Orígenes e Tertuliano mostram que o poder humano é transitório; a humildade e a fidelidade são caminhos seguros para a contemplação do Reino.

A conclusão de Lucas exalta a experiência dos discípulos: “Felizes os olhos que veem o que vedes! Pois muitos profetas e reis quiseram ver o que estais vendo e não viram” (Lc 10,23-24). Eles contemplam o cumprimento de promessas que profetas como Isaías 6, Jeremias 1 e Daniel 7 apenas anteciparam. A gratidão é central: não se trata de mérito próprio, mas de contemplação do mistério revelado. Aqui a pedagogia é clara: a alegria do Reino é contemplativa, não competitiva; é testemunho, não exibição.

Criticamente, a passagem denuncia distorções contemporâneas: a teologia da prosperidade reduz a fé a contrato de bênçãos; a teologia do domínio transforma o Reino em poder político; a fé-mercadoria transforma graça em produto; o clericalismo confere prestígio e autoridade a poucos em detrimento do povo. A alegria verdadeira do Evangelho subverte todas essas lógicas: é gratuita, resiliente e ancorada na pertença a Deus, não em resultados visíveis ou reconhecimento humano.

Do ponto de vista interdisciplinar: a psicologia evidencia o risco da alegria condicional; a sociologia, o efeito do prestígio e da estrutura de poder; a história, os ciclos efêmeros de impérios e lideranças; a filosofia, a distinção entre prazer e bem-aventurança; a antropologia, a centralidade do nome e da memória na cultura hebraica. Esses elementos se integram à leitura do Evangelho, mostrando que Lucas dialoga com todas as dimensões humanas.

O estilo literário e poético pode ser intensificado com imagens vivas: o relâmpago que cai, os olhos que contemplam, os pequeninos que acolhem, a escritura celestial que garante a permanência. Pequenas narrativas cotidianas — missionários urbanos, professores, famílias, trabalhadores humildes — ilustram a alegria do Reino na vida concreta. Esses elementos permitem que o leitor viva o texto, não apenas o compreenda intelectualmente.

Os documentos do Magistério reforçam esta leitura: Gaudium et Spes (22) afirma que “o mistério do homem só se ilumina verdadeiramente no mistério do Verbo encarnado”; Evangelii Gaudium (1, 270-273) lembra que “a alegria do Evangelho enche o coração e a vida inteira daqueles que se encontram com Jesus”; e Fratelli Tutti (64) convoca a atenção aos pequenos e marginalizados, reconhecendo neles o Reino.

Portanto, Lucas 10,17-24 nos ensina que a alegria duradoura não está nas conquistas, sinais ou prestígio, mas na certeza de pertencer a Deus; que o mal é transitório e já derrotado; que os humildes e dependentes acolhem a revelação; e que contemplar o Reino é privilégio e responsabilidade. É um chamado profético: a fé não se mede por resultados visíveis, mas pelo compromisso humilde, resiliente e grato com o Deus vivo. A alegria do Evangelho é gratuita, resistente e transformadora — e só é compreendida à luz da vida, morte e ressurreição de Cristo.

📌 DNonato – Teólogo do Cotidiano

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