domingo, 7 de setembro de 2025

Um breve olhar Mateus 1,1-16.18-23 - Festa da Natividade da Bem-Aventurada Virgem Maria

O texto de  Mateus 1,1-16.18-23  proclamado na  Festa da Natividade da Bem-Aventurada Virgem Maria Celebra o mistério do início de uma nova criação. A liturgia da Igreja nos convida a contemplar, não apenas um nascimento humano, mas o sinal de que a promessa de Deus começa a se concretizar de modo definitivo. O prefácio da Missa deste dia proclama: “Na aurora do mundo novo, brilhou a Virgem Maria, aurora da salvação; dela nasceu o Sol da justiça, Jesus Cristo, nosso Senhor”. Assim, a liturgia interpreta o nascimento de Maria como antecipação do advento do Messias, como se a criação inteira se inclinasse para acolher a nova arca da aliança. O nascimento de Maria é proclamado com o evangelho de Mateus 1,1-16.18-23, que une duas realidades: a genealogia de Jesus e a narração de seu nascimento virginal. Esse texto não é exclusivo desta festa, mas é retomado também no Natal do Senhor e em solenidades marianas, mostrando que Maria nunca pode ser isolada do mistério de Cristo.

Mateus abre seu evangelho com uma genealogia. Para a mentalidade contemporânea, acostumada ao imediatismo, pode soar como lista enfadonha. Mas, para a tradição judaica, genealogia é identidade, memória, raiz. Ao apresentar Jesus como filho de Abraão e filho de Davi (Mt 1,1), Mateus insere sua vida no coração da história da salvação. Ele não vem como mito solto, mas como promessa realizada. O nascimento de Maria se torna, assim, a aurora de uma nova história, na qual a antiga aliança encontra seu cumprimento. Se a Imaculada Conceição é a preparação da aurora, e o Natal o meio-dia pleno, o nascimento de Maria é a primeira luz que rompe a noite, sinal de que a promessa caminha.

A genealogia também surpreende por incluir mulheres improváveis — Tamar, Raab, Rute, Betsabé — todas estrangeiras, todas marcadas por situações de fragilidade. Isso nos revela que a história da salvação não se constrói sobre purezas elitistas, mas sobre vidas quebradas que Deus assume e redime. Maria, jovem humilde de Nazaré, se insere nessa trama de pequenas e frágeis histórias. Aqui já há um golpe contra toda teologia da prosperidade ou do domínio, que insiste em vincular o agir de Deus a prestígio, sangue puro ou poder. O Messias nasce da mistura, da vulnerabilidade, da surpresa. Como canta Maria no Magnificat: “Derruba os poderosos de seus tronos e exalta os humildes” (Lc 1,52).

O anúncio feito a José nos leva à segunda parte do texto. Psicologicamente, ele encarna o drama humano de não entender, de se sentir perdido, de viver a angústia entre lei e amor. O anjo lhe anuncia que a concepção é obra do Espírito Santo e que a profecia de Isaías se cumpre: “Eis que a virgem conceberá e dará à luz um filho, e o chamarão com o nome de Emanuel” (Mt 1,23; cf. Is 7,14). José, como Maria em Lucas 1,26-38, diz “sim” mesmo sem compreender. Aqui tocamos a experiência existencial: aceitar o que não se controla, confiar mesmo sem garantias. José e Maria vivem o “não saber”, mas permanecem no “confiar”. Em tempos como os nossos, de ansiedade, de obsessão pelo controle, de necessidade de respostas imediatas, eles nos lembram que a fé não elimina o drama humano, mas o atravessa e o transfigura.

Paralelos bíblicos ampliam o horizonte. Marcos abre sem genealogia, mas já dizendo: “Princípio do Evangelho de Jesus Cristo, Filho de Deus” (Mc 1,1). João anuncia: “E o Verbo se fez carne e habitou entre nós” (Jo 1,14). Em Gênesis 3,15, já estava a promessa: a descendência da mulher esmagaria a cabeça da serpente. Em Miquéias 5,1-3, o nascimento em Belém é prenunciado. Em Apocalipse 12, a mulher vestida de sol é sinal de Maria e da Igreja. Assim, da primeira à última página da Escritura, a figura de Maria atravessa como sinal de esperança, como mulher que anuncia o Emanuel, Deus conosco.

O nascimento de Maria lança luz sobre os invisíveis. Ela nasce em um povo dominado por impérios, pobre, marcado por sofrimentos. Hoje, quantas “Marias” nascem nas periferias, em comunidades negras, indígenas, em famílias migrantes, vistas como peso e não como promessa? Celebrar a Natividade de Maria é afirmar que cada nascimento é portador de futuro e que Deus continua escrevendo sua história pelos pequenos que o mundo despreza. Essa festa é também um ato profético contra o sistema que mercantiliza a vida e trata corpos como descartáveis.A patrística ilumina ainda mais. 

Santo Agostinho dizia: **Maria concebeu primeiro em seu coração pela fé, antes de conceber em seu ventre pela carne”*¹. São João Damasceno a chama de *“terra virgem” da qual brota o Salvador”*². São Irineu de Lião a apresenta como nova Eva: *“Assim como a desobediência de uma virgem trouxe a morte, a obediência de outra trouxe a vida”*³. Santo Efrém a chamava de “lira do Espírito Santo”, porque nela o Espírito fez ressoar a melodia da salvação⁴. São Bernardo de Claraval dizia: *“Do nascer de Maria começou o mundo a ser iluminado”*⁵. Nessas vozes, a Natividade de Maria é vista como início de uma nova ordem, em que a graça vence o pecado, e a vida vence a morte. Do ponto de vista histórico, Mateus escreve para uma comunidade judaico-cristã em tensão com a sinagoga. Ao proclamar Jesus como Emanuel, ele afirma que a presença de Deus não está mais restrita ao templo de pedra, mas no corpo de Cristo. Maria, portanto, é a arca da nova aliança, primeiro sacrário vivo. Isso desmonta toda tentativa de clericalismo que monopoliza a graça em templos ou castas. Maria não é patrimônio do clero, mas sinal para toda a humanidade, mãe da Igreja e companheira do povo.

Os documentos da Igreja confirmam isso. Lumen Gentium (n. 55) afirma que Maria “ocupa o lugar mais alto e mais próximo de nós depois de Cristo”. Gaudium et Spes (n. 66) lembra que “o valor da vida humana deve ser respeitado desde a sua concepção”, chamando a ver em cada nascimento uma promessa. A Evangelii Gaudium (n. 286) recorda Maria como “mãe de uma Igreja que evangeliza”. E a Fratelli Tutti (n. 215) nos lembra que a vida se constrói em encontros: Maria é a mulher do encontro, aquela que leva ao Filho.

Contra as falsas teologias da prosperidade, do domínio, do individualismo e da fé-mercadoria, Maria é sinal profético. Ela nos recorda que Deus não se compra, que a graça não se negocia, que o Evangelho não é palanque nem mercado. O clericalismo, que reduz a Igreja a poder e privilégio, é desmentido por Maria, que mostra que a graça é dom oferecido aos pequenos. O messianismo político que instrumentaliza Jesus e Maria para legitimar projetos autoritários é desmascarado pela genealogia que inclui estrangeiras, pobres e frágeis. O Cristo não nasce para legitimar impérios, mas para ser Emanuel, Deus conosco. Maria é arquétipo da confiança radical. Sociologicamente, é sinal de reversão: Deus começa sua obra na margem. Filosoficamente, é figura da liberdade que acolhe o totalmente Outro. Teologicamente, é a aurora do Verbo encarnado.

Celebrar sua Natividade é, portanto, ato de esperança e de resistência. Não celebramos uma estátua distante, mas uma menina de carne e sangue, cuja vida inaugura a nova história. Como canta a liturgia: “De sua aurora nasceu o Sol da justiça.” Se Maria é a aurora, é porque anuncia que a noite não é eterna; se é filha de Israel, é porque traz em si o grito dos pobres de seu povo; se é mãe do Emanuel, é porque nos recorda que Deus continua escolhendo nascer onde ninguém espera. A Natividade de Maria é a lembrança de que toda aurora já carrega em si a promessa do sol pleno, e que cada nascimento humano, especialmente dos pequenos e descartados, é sinal de que Deus permanece conosco.



DNonato – Teólogo do Cotidiano

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Notas

¹ Agostinho, Sermão 215.

² João Damasceno, Homilia in Nativitatem Deiparae.

³ Irineu de Lião, Adversus Haereses, III,22,4.

⁴ Efrém da Síria, Hinos sobre a Natividade.

⁵ Bernardo de Claraval, Sermão sobre a Natividade de Maria.


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