sábado, 12 de julho de 2025

Um outro olhar sobre Lucas 10,25-37 - 15º Domingo do Tempo Comum

 

Quando a compaixão e escandaliza: a fé que desce do altar à estrada.  A religião de muitos quer subir ao céu. A fé de quem segue o  Cristo desce à estrada. 

Neste 15º Domingo do Tempo Comum, a Palavra nos tira do conforto doutrinal e nos lança à estrada onde o amor se torna critério de verdade. Diante da pergunta sobre a vida eterna (Lc 10,25), Jesus não entrega um manual, mas conta uma história que desmonta sistemas e revela: o Reino não se constrói no templo, mas na estrada onde alguém sangra.

As leituras deste domingo — Deuteronômio 30,10-14; Salmo 68(69); Colossenses 1,15-20; e Lucas 10,25-37 que  fizemos uma. Reflexão  tanto no YouTube em 2020, 2022 e 2024 e em  nosso blog em 2022 escrevemos  um olhar  sobre  o texto  que vai  nos  orientar no caminho da nossa reflexão de  hoje, apontando para a centralidade da escuta, da compaixão e da proximidade. 

Na primeira  leitura  Moisés recorda ao povo às portas da Terra Prometida que a Palavra de Deus não está distante, mas ao alcance da boca e do coração, acessível a todos que desejam viver segundo a aliança. O salmo expressa o grito dos pobres perseguidos, cuja esperança está em Deus: “Procurem os humildes o Senhor, e reviverá o seu coração.” Na segunda leitura, somos tomados por um hino que proclama Cristo como imagem do Deus invisível, primogênito da criação e cabeça do corpo, a Igreja. Nele, a proximidade de Deus alcança sua plenitude. A transcendência se faz toque. O Criador se curva, como o samaritano, diante da criatura ferida.

O Evangelho de hoje, que vamos aprofundar, é proclamado na segunda-feira da 27ª semana do Tempo Comum do ciclo ferial par, e no 15⁰ domingo do Tempo Comum do ciclo dominical "C". O texto do evangelista Lucas de hoje não é uma lição moral, mas uma ruptura profética. Jesus, a caminho de Jerusalém — onde derramará o próprio sangue — é interpelado por um doutor da Lei que deseja saber o que fazer para herdar a vida eterna (Lc 10,25-37). A pergunta, embora legítima, não é pura: carrega a intenção de pôr Jesus à prova. Mas o Mestre devolve a pergunta com outra pergunta, remetendo ao coração da Torá, em Levítico 19,18, que ordena amar a Deus e ao próximo como a si mesmo. Então vem a questão que move toda a cena: “E quem é o meu próximo?”

 Jesus não responde com doutrina, mas com narrativa. Um homem desce de Jerusalém a Jericó, caminho íngreme, traiçoeiro, repleto de sombras e emboscadas, e é deixado quase morto. Passam por ele um sacerdote e um levita. Têm pressa de chegar ao culto. A religião oficial fecha os olhos à dor que sangra na estrada. O templo se isola da ferida. A liturgia se torna escudo. A ortodoxia, sem amor, vira arma.

Eles não negam Deus com palavras, mas com ausência. A indiferença é a heresia mais aceita em nome da ordem. Ela mascara-se de piedade, mas perpetua a exclusão. Suas mãos estão limpas, mas não santas. Seus passos são certos, mas não justos. A estrada de Jericó é ferida aberta na carne da humanidade. Liga o sagrado ao marginal, o culto ao abandono. Toda cidade tem sua Jericó: onde o Estado não chega, onde a Igreja não se ajoelha, onde a esperança sangra sobre o asfalto quente.

Então aparece o escandaloso da parábola: um samaritano. Marginalizado, considerado herege, impuro, inimigo histórico. Mas é ele quem se aproxima, se comove e age. O verbo grego splagchnizomai exprime uma comoção visceral, entranhada, que move não só o corpo, mas a alma inteira. Ele derrama azeite e vinho — símbolos de cuidado, sacramento e consolo. Usa o próprio animal. Gasta do próprio dinheiro. Compromete-se com o retorno. O que o templo não fez, ele faz. O que os consagrados negaram, ele assume. O samaritano é o verdadeiro sacerdote da nova aliança. Faz da compaixão um altar. Entende que Deus não habita o templo, mas a carne dilacerada do outro. Ele não faz perguntas. Ele toca. Ele não exige ficha moral. Ele ajoelha-se.

A parábola é uma releitura profunda da espiritualidade bíblica. Deus jamais aceitou sacrifícios vazios. Os profetas já gritavam contra a religião que ignora o órfão, a viúva, o estrangeiro. A compaixão é mais antiga que o altar. A justiça, mais sagrada que o incenso. Em Jesus, essa denúncia se faz carne. Ele é o samaritano de Deus: que se aproxima, que cura com a própria presença, que toca os intocáveis, que transforma a estrada em espaço litúrgico. Jesus curava no sábado. Tocava os impuros. Comia com pecadores. Rompia com a religião que usava Deus para justificar a exclusão. Sua fé era escândalo porque sua ternura era liturgia. Seu altar era a mesa. Sua oração, o toque. Sua teologia, o gesto.

Hoje, os novos sacerdotes e levitas vestem túnicas caras e ternos bem cortados. Seus altares são palcos. Seus incensos, luzes. A fé virou espetáculo. A cruz, um símbolo decorativo. O púlpito, empresa. A espiritualidade foi capturada pelo mercado. Falam de Deus, mas prestam culto ao lucro. Medem a unção por métricas de engajamento. O sucesso virou gráfico. A conversão, KPI (Chave de Desempenho).  O Espírito, algoritmo. Mas o Reino de Deus não se mede em likes, e sim em lágrimas enxugadas. Não em números, mas em mesas partilhadas. Pregam vitória, mas evitam os vencidos. Cantam bênção, mas ignoram os corpos feridos. Passam ao largo dos favelados, dos imigrantes, dos LGBTQIAPN+ silenciados, dos indígenas assassinados, dos jovens   negros  chacinados,  das mulheres violentadas. Suas mãos estão limpas, mas suas almas estão ausentes. A fé que não se curva ao sofrimento é idolatria do ego. A religião que não se suja com a estrada de Jericó é encenação litúrgica.

A pedagogia de Jesus não pergunta quem é o próximo. Ela inverte a lógica: quem se fez próximo? A proximidade não é um dado, mas uma decisão. Não é localização geográfica, mas posicionamento existencial. O Evangelho exige deslocamento. Quem permanece fixo, não entendeu. Fé é travessia. Proximidade é conversão. Não adianta falar de Jesus em púlpitos climatizados, se ignoramos sua presença nos que têm fome e sede. De que serve nosso ministério, se é blindado contra a dor? Há violências que não gritam, mas se insinuam em homilias que omitem, em catequeses que excluem, em bênçãos que se negam. O silêncio também fere. Quando a Igreja cala, sua doutrina vira pedra de tropeço. Só a compaixão devolve frescor à Palavra.

No juízo final, não nos perguntarão quantos cultos / missas  frequentamos, mas quantos corpos levantamos. A balança de Deus não mede discursos, mas feridas tocadas. O critério não será a ortodoxia, mas a misericórdia. O samaritano será justificado. O sacerdote ausente, desmascarado.

Vivemos um tempo em que a religião se tornou instrumento de dominação, e a neutralidade favorece os opressores. A verdadeira fé desce do altar à estrada. Não há outro caminho. Quando a Igreja se divorcia da dor dos pobres, trai sua missão. A teologia que não toca a ferida é ruído vazio. A Eucaristia que não gera compaixão, é autotraição. O pão consagrado exige mãos que também partilham o pão cotidiano.

A estrada de Jericó continua. Ainda há corpos caídos. Ainda há os que racionalizam e justificam a distância. Mas também há os que se curvam. Que se deixam ferir. Que entendem que a fé não é conforto, mas cruz. Que a salvação não está no culto perfeito, mas na presença imperfeita que acolhe e cura.

A pergunta não é mais “Quem é o meu próximo?”

As  perguntas  que precisam de respostas hoje:

  • Quem eu me torno diante dos caídos no caminho da vida?”
  • Sou aquele que passa ao largo?
  • Sou aquele que terceiriza a responsabilidade?
  • Sou aquele que desce da estrada litúrgica para tocar a realidade ferida?

DNonato – Teólogo do Cotidiano


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