sábado, 25 de outubro de 2025

Um olhar sobre Lucas 18,9-14 - 30º domingo do Tempo Comum

A Parábola que Inverte o Espelho da Fé

​A liturgia deste domingo nos trás  o Evangelho de Lucas 18,9-14, um texto proclamado   também no Sábado da 3ª Semana da Quaresma e  demais leituras   desse  30º  Domingo do Tempo Comum nesse ano "C" são  as seguintes  1ª leitura Eclesiástico 35,15b-17.20-22a; Salmo 33(34),2-3.17-18.19.23 (R. 7a.23a);  2⁰ leitura  II Timóteo 4,6-8.16-18 

No Evangelho, o Senhor nos previne contra a vaidade e a arrogância que podem se infiltrar em nossa fé se não formos vigilantes. É preciso estar atento para não cair na ilusão de que nossas obras ou devoções nos conferem crédito ou mérito diante de Deus. Atitudes de altivez não apenas desagradam a Deus, mas nos desviam de Sua vontade. Jesus estabelece, então, um novo modelo de agradar a Deus: o homem que se humilha, que se reconhece pequeno e necessitado. Confiemos não em nossas obras, mas no amor e na misericórdia do Senhor.

Este trecho do Evangelho de Lucas é uma advertência direta àqueles que se consideram justos e, por isso, desprezam os outros. Não se dirige aos pagãos ou ateus, mas aos religiosos, aos piedosos, aos que rezam e frequentam o templo. A parábola do fariseu e do publicano revela como a fé pode ser distorcida e transformada em mero instrumento de exibição. O fariseu sobe ao templo não para ser transformado, mas para se justificar. Sua oração é um espelho voltado para si mesmo; ele não fala com Deus, mas fala de si. É uma prece que não ascende ao céu porque não emana de um coração contrito. Em contraste, o publicano, figura socialmente desprezada, sequer ousa levantar os olhos. Bate no peito e confessa sua pobreza interior: “Ó Deus, tem piedade de mim, que sou pecador.” Ele não apresenta currículo, apenas oferece sua miséria. E é justamente essa vulnerabilidade que abre espaço para a graça.

Essa dinâmica cumpre o que a Primeira Leitura de Eclesiástico anuncia: “A oração do humilde atravessa as nuvens, e ele não sossegará até que ela chegue ao Altíssimo” (Eclo 35,21). O fariseu clama para o alto, mas sua oração morre no eco do próprio orgulho; o publicano fala das profundezas, e sua prece rasga o céu. O clamor dos pobres e humildes é o som que Deus mais escuta.

​Jesus conclui a parábola com uma inversão radical das expectativas humanas: “Quem se exalta será humilhado e quem se humilha será exaltado.” É uma lógica que escandaliza qualquer sistema religioso baseado no mérito, nas aparências e nas hierarquias de pureza. Esta é a mesma inversão proclamada por Maria no Magnificat, quando afirma que Deus “derruba do trono os poderosos e exalta os humildes.” Lucas mantém a coerência de sua teologia: a salvação é dom, não conquista; é encontro, não exibição; é graça, não barganha. O Reino de Deus não é o prêmio de uma performance espiritual, mas a resposta de amor gratuito àquele que reconhece sua total dependência.

​O contexto histórico intensifica a força desse ensinamento. O fariseu era o arquétipo do religioso zeloso, fiel à Lei; o publicano, um cobrador de impostos, era visto como traidor e impuro. A audiência esperava que o fariseu fosse o modelo a ser seguido. No entanto, o Mestre subverte os critérios: o piedoso é cegado pela autossuficiência, e o pecador é justificado pela humildade. Jesus denuncia uma espiritualidade que se nutre de comparações e vaidade. O fariseu constrói sua identidade sobre o desprezo do outro: “não sou como este publicano.” Toda forma de religiosidade que se ergue sobre a negação ou a exclusão do próximo é falsa. O fariseu de ontem ecoa ainda hoje nos púlpitos, nas redes sociais e em toda postagem onde a fé se torna performance e o ego clerical se alimenta.

​Em Lucas, esta parábola sucede a do juiz iníquo e da viúva (Lc 18,1-8 proclamado no domingo anterior), que trata da perseverança na oração. Ambas se complementam: a oração autêntica não é eficaz pelo excesso de palavras ou pela ostentação de virtudes, mas pela verdade do coração. O fariseu multiplica as palavras, mas o publicano tem um coração aberto. A tradição dos Salmos confirma: “um coração contrito e humilhado, ó Deus, não desprezarás.” A oração verdadeira nasce do reconhecimento da própria miséria e da confiança no amor que tudo restaura. É o clamor do pobre, e não a autopromoção, que toca o coração divino: “O Senhor escuta o clamor do pobre e o livra de todas as suas angústias” (Sl 33,7).

​Neste ponto, ressoa a voz do profeta Oséias: “Quero misericórdia e não sacrifício.” Jesus retoma essa profecia ao enfrentar Seus detratores. A parábola de hoje é a sua encarnação: o fariseu oferece sacrifícios, jejuns e dízimos, mas se recusa a oferecer o coração. O publicano nada tem a oferecer senão seu vazio, e é esse vazio que Deus preenche com graça. É o mesmo movimento do filho pródigo, de Pedro após a negação, e de Maria Madalena. Todos eles compartilham a humildade de quem não esconde as feridas diante do Amor.

​Na ótica da psicologia espiritual, a parábola opõe a persona à sombra reconhecida. O fariseu representa a máscara social da virtude, a imagem construída para o aplauso. O publicano simboliza a aceitação da própria limitação. A espiritualidade farisaica é o narcisismo religioso que busca a glória própria; a do publicano é o caminho do ser que se entrega, vulnerável, ao Mistério. O primeiro vive da autoafirmação; o segundo, da graça. O primeiro é escravo da aparência; o segundo é livre na verdade.

​Sociologicamente, a parábola é um espelho da estrutura de poder que ainda vigora no mundo religioso. O fariseu ocupa o centro, o lugar do discurso; o publicano, as margens, o lugar do silêncio. A Igreja, quando adota a lógica farisaica, torna-se uma instituição de prestígio e exclusão. Quando se aproxima do publicano, torna-se uma comunidade de misericórdia. Por isso, o Papa Francisco insiste que a Igreja seja “hospital de campanha”, e não tribunal de condenação. A parábola denuncia as teologias do mérito e do domínio, que transformam a fé em moeda de troca. O fariseu moderno acredita que sua oferta ou moral o coloca acima dos demais. O publicano sabe que tudo é graça, e esse saber liberta.

​A diferença decisiva entre eles não reside na quantidade de obras, mas na qualidade da relação. O fariseu fala de Deus, o publicano fala com Deus. Falar de Deus pode ser mera teologia; falar com Deus é vida. A crítica ao clericalismo, que transforma o sagrado em propriedade, está implícita. Muitos líderes agem como donos do templo, esquecendo que o altar pertence ao Cordeiro.

​A patrística reconheceu neste texto o coração do Evangelho. Santo Agostinho viu no publicano o modelo de oração cristã, pois ele não se apoiava em méritos. São João Crisóstomo advertiu que “o orgulho é o mais grave dos pecados, porque é o único que pode nascer da própria virtude.” A parábola é um exorcismo do orgulho religioso: não é a liturgia perfeita que salva, mas o coração contrito. O fariseu cumpre os ritos; o publicano experimenta a Presença.

​No horizonte filosófico, o fariseu encarna a razão instrumental – o cálculo da fé; o publicano, a razão do dom – o pensamento do ser que se reconhece dependente do Mistério. A verdadeira relação com o Divino, segundo Levinas, se dá no voltar-se para o outro em humildade. O fariseu transforma o outro em medida da própria superioridade; o publicano o reconhece como irmão igualmente necessitado.

​A história confirma que o publicano era marginalizado. Jesus, ao elevá-lo como exemplo, subverte não apenas a religião, mas toda uma estrutura de poder, colocando no centro quem estava na periferia. É o mesmo movimento de Nazaré, de Belém, da Cruz. Deus escolhe o lugar menos esperado para revelar Sua glória. Essa inversão é o núcleo da Boa Nova: “Os últimos serão os primeiros.” A graça não segue a lógica das hierarquias humanas.

​A antropologia bíblica mostra que, desde Adão, o ser humano busca justificar-se. A parábola revela que a justificação só ocorre quando as máscaras caem. A oração do publicano é o eco do clamor de Jó e do centurião: “Senhor, eu não sou digno.” Este é o ponto de virada da fé: quando a criatura reconhece que nada pode oferecer a não ser o desejo de ser amada.

​Os documentos da Igreja, da Gaudium et Spes à Evangelii Gaudium e Fratelli Tutti, ecoam essa parábola em seus apelos à conversão pastoral, denunciando o “narcisismo espiritual” e chamando à humildade do encontro. A Igreja só será fiel ao Evangelho se escolher o lugar do publicano, e não o do fariseu. O templo só será casa de oração se for lugar de verdade e não de espetáculo.

​A mensagem final de Jesus é libertadora e inquietante. Ele não condena o fariseu por suas obras, mas por sua autossuficiência. O problema não é o jejum ou o dízimo, mas transformá-los em moeda de barganha. A fé não é contrato, é confiança; a religião não é contabilidade, é comunhão; a oração não é desfile, é entrega. Rezamos para nos justificar ou para nos converter? A resposta define toda a vida.

Em nossos tempos, o fariseu ressuscita na teologia da prosperidade, que promete troca (“faça isso e Deus te dará aquilo”), no fundamentalismo que confunde o altar com o palanque, na fé mercadoria, e no ministro que fala em nome de Deus, mas nunca com Deus. O publicano, silencioso, continua no fundo do templo, clamando por misericórdia — e é ele quem sai justificado. A Igreja precisa reaprender a orar como esse homem simples: com lágrimas, não com números; com vida, não com slogans; com fé, não com soberba.

​O fariseu é o símbolo da sociedade do desempenho; o publicano, o sinal do Reino. O primeiro acredita que tudo se compra; o segundo confia que tudo se recebe. O primeiro mede sua fé em resultados; o segundo a vive em confiança. Deus não precisa de heróis, mas de corações verdadeiros.

​Como recorda Paulo na Segunda Leitura deste domingo, é o publicano que perseverou na humildade da fé, e não o fariseu, quem pode dizer: “O Senhor esteve ao meu lado e me deu forças” (2Tm 4,17). A justiça é graça, não mérito.

​O Evangelho de Lucas nos devolve à simplicidade: Deus não resiste a um coração sincero. O fariseu pode enganar os outros, mas não engana o Amor. O publicano, ao reconhecer-se pecador, abre a porta da casa interior para o Deus que sempre esteve à espera. E, nesse encontro, o templo deixa de ser um prédio e se torna uma alma em oração.

​Ao voltarmos do templo hoje, que não levemos o orgulho de ter rezado, mas o silêncio de quem foi escutado. E que o nosso clamor, humilde e verdadeiro, atravesse as nuvens e alcance o coração de Deus.

DNonato – Teólogo do Cotidiano

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