sábado, 18 de outubro de 2025

Um olhar sobre Lucas 18,1-8 – 29⁰ domingo do tempo comum

Oração perseverante e fé ativa: entre a viúva, o juiz e o silêncio de Deus

O Evangelho hoje nos ensina sobre a importância da oração perseverante e da fé. A parábola da viúva e do juiz injusto nos mostra que, mesmo quando parece que Deus não está ouvindo, Ele está sempre trabalhando. A viúva, com sua determinação e insistência, consegue finalmente ser ouvida pelo juiz, e Deus, que é justo e amoroso, certamente ouvirá os seus filhos que clamam a Ele dia e noite. O que você gostaria de refletir sobre essa passagem? Como você acha que podemos aplicar essa lição em nossas vidas diárias?

A liturgia de hoje, o 29º Domingo do Tempo Comum, apresenta-nos o mesmo tema em harmonia com as demais leituras: Êxodo 17,8-13; Salmo 120(121),1-2.3-4.5-6.7-8 (R. cf. 2); 2 Timóteo 3,14–4,2 e o Evangelho de Lucas 18,1-8, proclamado também no 32º sábado do Tempo Comum. As leituras se entrelaçam num tecido de perseverança, oração e fidelidade. Em Êxodo, Moisés sustenta os braços erguidos durante a batalha contra Amalec, e quando se cansa, Aarão e Hur o sustentam: é o símbolo da oração comunitária que não desiste. No Salmo, o peregrino ergue os olhos aos montes e reconhece: “De onde me virá o socorro? O meu socorro vem do Senhor”. Em 2Timóteo, Paulo exorta o discípulo a permanecer firme na Palavra, a tempo e fora de tempo, com paciência e doutrina. E em Lucas, Jesus propõe a parábola da viúva persistente diante do juiz insensível — uma das mais belas sínteses da fé que não cansa de esperar, mesmo no aparente silêncio de Deus. 

Todas as leituras deste domingo formam um mosaico espiritual em torno da mesma certeza: a presença de Deus não se mede pela ausência de dificuldades, mas pela força que nos sustenta em meio a elas. Moisés, a viúva e Paulo são rostos distintos da mesma perseverança — o profeta que reza pelos outros, a mulher que insiste pela justiça, o apóstolo que exorta à fidelidade. Cada um deles representa uma forma de oração que não se esgota em palavras, mas se traduz em compromisso e resistência.

Lucas é o evangelista da misericórdia e da oração. Ele não apenas relata os fatos, mas revela o coração orante de Jesus, o Filho que se recolhe para rezar antes de cada decisão (cf. Lc 3,21; 5,16; 6,12; 9,28). Aqui, Jesus “contou-lhes uma parábola sobre a necessidade de orar sempre, sem desanimar” (Lc 18,1). Essa introdução editorial é exclusiva de Lucas, e já orienta o leitor: trata-se de uma pedagogia da perseverança. A parábola, simples e provocante, coloca frente a frente dois personagens: uma viúva e um juiz. No mundo bíblico, a viúva representa a figura da vulnerabilidade e da exclusão; é o símbolo dos que não têm voz, dos que dependem da justiça divina porque a humana lhes é negada. O juiz, por sua vez, encarna o poder arbitrário, a autoridade sem compaixão, a instituição desumanizada. Ele “não temia a Deus nem respeitava homem algum” (Lc 18,2). A estrutura da parábola é um espelho do mundo injusto, onde os que sofrem clamam sem resposta e onde o direito é comprado ou negado aos pobres. No entanto, é exatamente nesse cenário que nasce o milagre da persistência: a mulher que não se cala, que incomoda, que insiste até ser ouvida.

A oração, aqui, não é um ritual devocional, mas um ato de resistência. É o grito de quem não aceita o silêncio cúmplice da injustiça. A viúva, símbolo das vítimas e dos esquecidos, encarna todos os que lutam pela vida e pela dignidade. Na Bíblia, as viúvas, órfãos e estrangeiros são os preferidos de Deus, não por causa da dor em si, mas porque revelam a face da humanidade ferida (cf. Dt 10,18; Is 1,17; Tg 1,27). O pedido da viúva — “faze-me justiça contra o meu adversário” — ecoa o clamor dos salmos (Sl 43,1; Sl 82,3-4), e revela a convicção de que o justo não desiste de esperar o dia do Senhor.

Em nossos dias, essa resistência se manifesta também nas comunidades que, apesar da fome, da violência e do abandono, continuam celebrando, partilhando o pão e acreditando. É o mesmo clamor das periferias urbanas, das aldeias indígenas, dos campos de refugiados e dos cárceres invisíveis da sociedade de consumo. Toda oração feita nesses lugares é, em si, um ato político e escatológico: é dizer ao mundo que o Reino ainda pulsa.

Quando o juiz, finalmente, cede, não é por conversão, mas por cansaço: “Vou fazer-lhe justiça para que ela não venha por fim me importunar” (Lc 18,5). O verbo grego usado — hypopiazē — significa literalmente “me deixar com o rosto machucado”, isto é, “me exaurir de tanto insistir”. O poder injusto cede não por amor, mas por desgaste. E Jesus conclui: “Se até um juiz injusto age assim, não fará Deus justiça aos seus eleitos que clamam a Ele dia e noite?” (Lc 18,7).

A chave hermenêutica está aqui: Deus não é comparado ao juiz, mas contraposto a ele. O juiz é o espelho do mundo sem compaixão, enquanto Deus é o Deus da escuta e da misericórdia. Lucas inverte a lógica do poder. O Reino não nasce da imposição, mas da perseverança silenciosa dos que oram e lutam. Essa parábola é, ao mesmo tempo, uma crítica profética à religião da barganha e à fé dos resultados. Contra as teologias da prosperidade e do domínio, ela nos recorda que a oração não é contrato, é comunhão; não é exigência, é entrega. O orante verdadeiro não busca manipular Deus, mas manter-se fiel a Ele mesmo quando tudo parece em ruínas. Jesus, ao final, faz a pergunta que perfura os séculos: “Mas, quando vier o Filho do Homem, encontrará fé sobre a terra?” (Lc 18,8). Não pergunta se encontrará templos, estruturas, devotos ou doutrinas — pergunta se encontrará fé.

Essa pergunta não é retórica, é apocalíptica. Jesus interroga o coração humano e o futuro da humanidade. A fé, aqui, não é mero assentimento intelectual, mas perseverança ativa, fidelidade em meio ao desespero. A fé que Jesus busca é a da viúva, que não desiste do justo; é a de Moisés, que mantém os braços erguidos; é a de Paulo, que prega “a tempo e fora de tempo”. É a fé que reza com os pés na terra e o coração em Deus. Em tempos de idolatria do sucesso e da religião transformada em espetáculo, essa parábola denuncia a substituição da oração pela autopromoção. Muitos rezam para obter, poucos rezam para permanecer.

A fé que Jesus questiona é a fé do deserto, aquela que amadurece no silêncio e na secura. Como Elias na caverna (1Rs 19,9-13), somos convidados a reconhecer Deus não no estrondo dos terremotos nem nas labaredas do espetáculo religioso, mas na brisa leve que sustenta os dias cansados. A perseverança na oração é também uma pedagogia do silêncio: ela ensina a confiar mesmo quando Deus parece ausente, porque o amor, como o vento, se revela no movimento invisível.

Do ponto de vista psicológico, a parábola revela a dimensão profunda da perseverança. A viúva representa o inconsciente da fé, o desejo humano que resiste à desesperança. A oração insistente é, nesse sentido, terapêutica e libertadora: ela reorganiza o eu ferido, transforma a impotência em ato simbólico de resistência. A fé, como diria Viktor Frankl, é a força que sustenta o sentido quando tudo o mais desaba. Sociologicamente, a parábola é também uma crítica ao sistema que normaliza a injustiça. O juiz é a figura das estruturas que negam o direito aos pequenos; a viúva é o povo empobrecido que luta para existir. Jesus, ao contar essa história, não está promovendo passividade, mas revelando que a oração é a forma mais profunda de protesto contra a injustiça. Quem reza sem cessar não se conforma, mantém viva a tensão escatológica entre o já e o ainda não.

A oração perseverante é também uma escola. Ela educa o coração para a paciência e a comunidade para a solidariedade. Quem ora junto aprende a escutar o tempo do outro e o tempo de Deus. Na comunidade orante, a fé deixa de ser propriedade individual e se torna respiração coletiva. Por isso, toda pastoral autêntica é, em seu núcleo, uma pedagogia da escuta e da esperança.

Historicamente, o contexto da Palestina romana era de exploração e corrupção jurídica. O suborno e a parcialidade eram comuns. Viúvas, sem herdeiros homens, perdiam facilmente suas propriedades. Ao escolher essa figura, Jesus inscreve o Reino na marginalidade. O Reino não é a voz do poder, mas o grito da viúva. É nesse grito que se cumpre o Magnificat de Maria (Lc 1,46-55), onde Deus “derruba os poderosos de seus tronos e eleva os humildes”. Assim, o texto não apenas ensina a rezar: ensina a transformar a oração em justiça.

A parábola se insere na pedagogia da oração em Lucas, em paralelo com a parábola do amigo importuno (Lc 11,5-13), onde Jesus também exalta a insistência. Ambas ensinam que Deus não é insensível, mas pedagógico: às vezes o silêncio de Deus é o espaço do amadurecimento da fé. O mesmo eco aparece em Mateus 15,21-28, na mulher cananeia que insiste por sua filha. Nesses textos, o feminino é o lugar da fé perseverante, da espiritualidade que não se curva ao silêncio. Deus escuta os gritos da história, mas deseja também que a humanidade aprenda a escutar o grito do outro.

Santo Agostinho via na viúva a imagem da Igreja que clama pela vinda de Cristo: “A viúva é a Esposa que aguarda o Esposo ausente, clamando sem cessar para que Ele venha fazer justiça ao seu povo.” São João Crisóstomo ressaltava a força da oração contínua: “Nada é tão poderoso quanto a oração insistente. Ela é uma arma que vence o inimigo e abre as portas do céu.” Orígenes, por sua vez, interpretava o juiz como a consciência endurecida que precisa ser vencida pela persistência do Espírito. Gregório Magno lembrava que Deus “às vezes parece tardar, não porque não escute, mas porque quer ampliar o desejo.” Todos convergem num ponto: a oração perseverante purifica o coração e o torna mais semelhante ao de Cristo.

Séculos mais tarde, místicos como Teresa d’Ávila e João da Cruz retomariam esse mesmo espírito. Para Teresa, “orar é tratar de amizade com Quem sabemos que nos ama”, e para João, “é na noite escura da fé que o amor se purifica”. Ambos viram na perseverança a porta da união com Deus: não a oração que busca sentir, mas a que permanece mesmo sem sentir.

Essa parábola toca a questão da esperança e do tempo. O filósofo Ernst Bloch via na esperança o motor da história, a capacidade de esperar o que ainda não é. A viúva é a figura do principium spei, o princípio-esperança, que se recusa a naturalizar o injusto. Emmanuel Lévinas, ao refletir sobre o rosto do outro, diria que a justiça divina se revela quando a alteridade nos interpela. A viúva é o rosto do outro que exige resposta. Orar, aqui, é deixar-se incomodar pela dor alheia. A esperança, assim, não é fuga do real, mas o modo mais radical de habitá-lo. Ela é o que Santo Tomás de Aquino chamaria de virtus expectandi, a virtude de esperar em Deus agindo no mundo. A fé que ora persevera porque sabe que a história é inacabada, e que cada ato de fidelidade apressa o dia em que “a justiça e a paz se abraçarão” (Sl 85,11).

A Gaudium et Spes (63–66) denuncia as estruturas de pecado que perpetuam a desigualdade e conclama a Igreja a discernir os sinais dos tempos, promovendo uma justiça que nasça da solidariedade. Essa visão ecoa na Evangelii Gaudium, quando o Papa Francisco recordava que “a oração que não conduz à ação solidária é incompleta” (EG 262). A Fratelli Tutti (n. 286) reafirma: “A oração é o coração de uma fraternidade aberta, porque quem reza por justiça não pode permanecer indiferente diante da dor do mundo.” E a recente Dilexi te, do Papa Leão XIV, retoma esse mesmo espírito ao dizer: “Quem ama os pobres reza com o coração de Deus, porque a oração verdadeira é sempre um gesto de compaixão ativa.”

Essa visão encontra ressonância concreta nas pequenas comunidades, nas capelanias de rua, nos grupos de oração que resistem nas margens. Ali, o Evangelho se encarna em gestos simples — partilhar um prato de comida, acolher um migrante, escutar um desabafado. É a Dilexi te vivida sem alarde, o amor traduzido em cotidiano.

A figura da viúva é um espelho das sociedades patriarcais e das exclusões estruturais. Ela simboliza todos os grupos marginalizados — mulheres, migrantes, pobres, negros, indígenas, LGBTQIA+, idosos e doentes — que clamam por reconhecimento e dignidade. Jesus, ao elevar a voz dessa mulher, subverte as hierarquias sociais e religiosas. Ele mostra que o Reino começa na periferia. Essa dimensão é também profundamente profética: a oração dos oprimidos é o combustível da história da salvação.

A crítica ao clericalismo emerge naturalmente desse texto. O juiz que não teme a Deus é a imagem de todo poder religioso que se fecha ao sofrimento. Há juízes de toga, mas há também juízes de batina: homens que administram a fé como um tribunal, que tratam os pobres como incômodos, que transformam o Evangelho em norma e não em vida. A viúva, nesse sentido, é a Igreja dos pobres que clama contra a Igreja dos privilégios. É o povo que pede justiça aos que se dizem servos, mas vivem como senhores. Contra isso, a oração perseverante é também um ato de denúncia.

O Papa Francisco recordava que “o clericalismo é uma perversão” (EG 102), porque transforma o dom em privilégio. A viúva da parábola é o antídoto desse desvio: ela não tem poder, mas tem fé. Ela não impõe, mas insiste. É o retrato da Igreja que serve, não da Igreja que domina. O futuro eclesial nascerá sempre dos que oram de joelhos e vivem de pé, dos que pregam menos com palavras e mais com coerência.

A teologia da prosperidade e do domínio corrompe a essência da oração, porque a transforma em instrumento de poder e lucro. Ela promete bênçãos em troca de fé, mas o Evangelho promete fidelidade em meio à dor. A oração de Lucas 18,1-8 é o oposto da oração interesseira: é o clamor sem garantias. É a fé que continua orando mesmo quando o juiz parece não responder. Essa fé é revolucionária porque não depende de recompensas.

Por fim, o Evangelho termina com uma provocação escatológica: “Quando vier o Filho do Homem, encontrará fé sobre a terra?” Essa pergunta atravessa séculos e chega a nós, em meio à fé diluída em consumo, à religião tornada marketing, às orações transformadas em curtidas. A parábola nos convida a recuperar o sentido original da oração: não pedir o que queremos, mas tornar-nos aquilo que Deus sonha. A oração perseverante é o fio que sustenta a esperança humana. É o clamor das mães que esperam seus filhos voltarem, dos pobres que rezam por um prato de comida, dos povos que não desistem da paz. É a força de Moisés, de Maria, da viúva e de todos os que acreditam que o amor de Deus é mais teimoso que a injustiça.

A oração perseverante é o coração que pulsa dentro do universo. Ela se mistura ao canto das aves, ao murmúrio dos rios e ao silêncio das estrelas. Quando o justo reza, toda a criação reza com ele, porque a oração é também o gemido da Terra que espera redenção (cf. Rm 8,22). Orar é participar da respiração divina que sustenta o cosmos e faz florescer a esperança até nas fendas do deserto. Que nossa oração, como a da viúva, se torne um caminho de transformação. Que cada clamor pela justiça se traduza em gestos concretos de compaixão, e que a fé que resistiu à noite nos encontre amanhecidos na esperança.

DNonato – Teólogo do Cotidiano




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