sexta-feira, 17 de outubro de 2025

Um breve olhar sobre Lucas 10,1–9 / Festa de São Lucas Evangelista

No coração do mês missionário, a liturgia nos convida a contemplar São Lucas, médico, evangelista e artista da compaixão. Seu olhar, treinado para discernir dores do corpo, aprendeu também a reconhecer feridas da alma. Lucas não esteve entre os Doze, mas acompanhou o caminho do Mestre com atenção singular, deixando registrado o Cristo que não impõe, mas se inclina; que não domina, mas cura; que não ergue templos de pedra, mas habita os caminhos humanos. Tradicionalmente, também se reconhece em Lucas um pintor, e seu Evangelho é, de fato, uma tela viva onde o rosto de Deus se torna humano e a misericórdia ganha cores e formas palpáveis, tocando corpo e espírito.

O capítulo 10 de Lucas surge como um ponto de virada. Situado entre a confissão de fé em Cesareia e a parábola do bom samaritano, ele revela o movimento do discipulado que se transforma em missão. A fé que é professada deve se encarnar no serviço, e o seguimento se converte em prática. Jesus designa setenta e dois discípulos e os envia dois a dois, a toda cidade e lugar onde Ele próprio devia ir. O número setenta e dois ecoa a universalidade da salvação, recordando a multiplicidade das nações e das culturas. Como Moisés escolhera setenta anciãos para compartilhar o espírito profético, Cristo confia o seu Espírito e a sua missão a outros, mostrando que o Reino não é domínio de poucos, mas obra coletiva. O texto, deliberadamente, não distingue sexo ou status social: o Evangelho é para todos, e todos podem ser mensageiros da paz e da justiça.

O envio em dupla revela que a missão nasce da comunhão. A verdade, no testemunho bíblico, se confirma quando é partilhada, quando a responsabilidade é compartilhada. O discípulo não anuncia sozinho, mas com outro, aprendendo e confirmando sua fé pelo encontro. A comunhão é, portanto, primeiro milagre da missão. Em tempos de individualismo religioso, onde cada um quer falar de si em nome de Cristo, o Evangelho nos recorda que a fé verdadeira floresce na relação, na reciprocidade, na escuta do outro. São Gregório Magno dizia que a caridade é a linguagem com que Deus fala através de seus discípulos, e essa linguagem se aprende apenas na entrega ao outro.

A advertência de Jesus é clara: a messe é grande, mas os operários são poucos. Devemos pedir ao Senhor que envie trabalhadores para a colheita. A súplica é oração ativa, e a oração é eixo da missão. Templos podem estar cheios, mas corações permanecem vazios; estruturas podem ser abundantes, mas testemunhos autênticos são raros. Falta-nos operários que sejam guiados pelo Reino, não por ambições eclesiásticas ou por busca de poder. O verdadeiro missionário é fiel, não necessariamente bem-sucedido; sua segurança não está na bolsa ou na reputação, mas na confiança em Deus e na perseverança na missão.

O Cristo de Lucas adverte que a missão se dá como cordeiros entre lobos. A vulnerabilidade é força: o Evangelho se expande não pela imposição, mas pelo despojamento e pela confiança. O missionário que carrega armas espirituais de dominação, seja poder clerical ou teologia da prosperidade, distorce a essência do Reino. O cordeiro, frágil e entregue, é capaz de vencer lobos com mansidão, lembrando que a liberdade interior supera qualquer controle humano. Santo Agostinho observava que possuir é empobrecer-se do infinito; renunciar ao acúmulo abre as mãos e o coração para a abundância do Reino.

Jesus pede que não se leve bolsa, sacola ou sandálias, que não se cumprimentem distraidamente pelas estradas, e que se concentrem no propósito do envio. A pobreza e a concentração são símbolos de liberdade interior. Quem carrega demais não anda; quem confia na providência caminha leve e eficaz. O despojamento é também terapia da alma, afastando a ansiedade e a idolatria do controle. A missão não é palco, mas estrada; não é exibição, mas serviço; não é segurança financeira, mas entrega confiante. Ao entrar numa casa, a ordem é: “A paz esteja nesta casa.” Antes da doutrina, a bênção; antes da moral, a presença. A paz é dom inaugural, o primeiro ato da missão. O mensageiro da paz não impõe, mas reconcilia; não domina, mas aproxima. Ela é shalom, a plenitude anunciada pelos profetas, onde a justiça habita e a vida humana é acolhida. É a paz que reconstrói cidades, que lava feridas do exílio, que une sociedades fragmentadas, que transforma a ausência em presença.

“Permanecei na mesma casa.” Permanecer é resistir à pressa e ao superficial. O missionário vive o Evangelho não como visitante, mas como convivente; participa, come, compartilha. Lucas transforma refeições em espaços teológicos: cada pão repartido, cada mesa aberta é sacramento da presença de Deus. A permanência é fidelidade, intimidade, paciência e cuidado constante.

“Curai os doentes.” Evangelizar é curar. O verbo therapeuein significa servir e restaurar. A missão é terapêutica, tocando corpo, mente e alma. Curar é escutar, acolher, permanecer com o outro. Psicologicamente, o missionário é também curado ao tocar as feridas alheias. Curar não é apenas resolver; é acompanhar, compartilhar dor e esperança, restaurar dignidade. Lucas mostra que fé e compaixão caminham juntas.

“Dizei-lhes: o Reino de Deus está próximo.” Não é ideologia, mas presença. O Reino acontece onde há paz, cuidado, mesa compartilhada, atenção aos pobres, justiça e reconciliação. O Reino é alternativa ao poder e à teologia da prosperidade que transforma fé em mercadoria. A verdadeira missão denuncia estruturas injustas, mas caminha junto das feridas humanas, oferecendo cuidado e presença. A Igreja precisa menos de pregadores que gritam e mais de discípulos que escutam; menos de administradores de impérios e mais de servidores da vida.

São Lucas, discípulo e acompanhante de Paulo, escreve para um mundo plural e em movimento. Seus dois volumes — Evangelho e Atos — formam um único sopro do Espírito, narrando viagens, encontros, curas e conversões. O Espírito Santo é o verdadeiro protagonista da missão. Irineu de Lião nos lembra que a glória de Deus é o ser humano vivo, e a vida humana é a visão de Deus. O missionário, ao cuidar do outro, glorifica a Deus e testemunha a presença do Reino.

Hoje, em tempos de guerra, desigualdade e exploração religiosa, o Evangelho de Lucas é profético. Evangelizar é reconstruir laços, denunciar clericalismo, resistir à fé como mercadoria, e ser presença de ternura e justiça. A missão começa no cotidiano, na escuta e no serviço, ecoando Dom Romero: de que serve uma semana justa se não há trabalho justo todos os dias? Ser missionário é ser contracultura do ódio, portador da esperança, anunciador da paz que reconcilia, curador silencioso de corpos e almas, discípulo que caminha junto do Cristo em todas as estradas da história.

No final, como os discípulos de Emaús, talvez o missionário descubra que Cristo sempre caminhava ao seu lado, disfarçado de companheiro, de necessitado, de ferido. Ao partir o pão ou doar um gesto de ternura, percebe que a missão não terminou: ela recomeça toda vez que o coração arde e os pés se põem a caminho. E, enquanto o mundo corre atrás de ruídos, o Evangelho continua caminhando silencioso, luminoso, nas sandálias gastas dos que dizem apenas: “A paz esteja contigo.”

Que o Espírito Santo nos conceda a graça de viver o que proclamamos, de proclamar o que vivemos, até que toda casa possa ouvir: “A paz esteja contigo, porque o Reino de Deus está próximo.”

DNonato – Teólogo do Cotidiano


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