quarta-feira, 22 de outubro de 2025

Um breve olhar sobre Lucas 12,39‑48

No calendário litúrgico, as palavras de Jesus sobre a vigilância e a fidelidade aparecem em dois momentos distintos. Na quarta-feira da 29ª semana do Tempo Comum, a liturgia proclama Lucas 12,39-48, um forte chamado à vigilância e à responsabilidade diante da vinda inesperada do Filho do Homem. Esse mesmo ensinamento já havia sido proclamado como uma unidade maior (Lucas 12,32-48) no 19º Domingo do Tempo Comum – Ano C, ocasião em que reflete-se sobre a confiança filial, o desapego e o serviço fiel. Realizamos reflexões sobre esse trecho tanto em 2022 quanto em 2025, situando-o dentro desse contexto mais amplo que une fé, desprendimento e vigilância ativa.

Na 29ªSemanadoTempoComum no calendário semanal ,  o mesmo discurso de Jesus é proclamado de forma dividida em dois blocos complementares: na terça-feira, com Lucas 12,35-38, destacando o convite a manter as lâmpadas acesas e o coração desperto e na quarta-feira, com Lucas 12,39-48. Assim, a liturgia nos oferece uma leitura progressiva e integrada: primeiro o chamado à vigilância constante, depois a consciência do serviço fiel e da administração responsável dos dons recebidos, iluminando tanto o caminho cotidiano da semana quanto a celebração dominical.

Hoje somos convidados a entrar na profundidade do ensinamento de Jesus sobre vigilância, fidelidade e responsabilidade. O Evangelho de Lucas 12,39‑48 nos apresenta imagens poderosas de espera ativa e serviço fiel, que não podem ser reduzidas a formalismos ou práticas superficiais, mas exigem de nós uma atenção constante à presença do Senhor em nossas vidas. Quando lemos que “o Filho do Homem virá à hora em que não esperais”, somos confrontados com a certeza de que o tempo do Senhor não se submete aos nossos relógios, planos ou agendas. Essa vinda inesperada não é apenas um acontecimento futuro; ela é uma dimensão presente que exige de nós vigilância, prontidão e responsabilidade na gestão de tudo aquilo que Deus nos confiou.

A primeira parábola nos coloca diante da figura de um dono de casa vigilante que, no entanto, não sabe quando o ladrão chegará. O ladrão, nesse contexto, é mais do que uma ameaça física; ele simboliza todos os perigos que rondam nossa vida de fé, todas as distrações, tentações e seduções que podem arrombar o coração e a comunidade se não estivermos atentos. A casa representa a vida, o dom e a vocação confiados por Deus a cada discípulo. A vigilância não é mera expectativa passiva; é ação concreta de manter a vida alinhada aos valores do Reino, de cultivar a fidelidade nos atos cotidianos, mesmo quando o tempo parece longo ou a vinda do Senhor distante. É o chamado para que cada um de nós viva consciente de que a eternidade se faz presente na maneira como usamos o presente, e que cada gesto de amor, justiça e serviço é uma lâmpada acesa no caminho da vigilância.

A segunda parábola, sobre o administrador que ante a demora do mestre relaxa e abusa das responsabilidades confiadas a ele, aprofunda a dimensão ética da fé. Aqui, Jesus dirige sua advertência à segunda geração cristã, àquelas comunidades que, diante da aparente demora da Parousia, correm o risco de relativizar os valores do Reino ou de acomodar-se em uma fé confortável e individualista. O administrador representa cada um de nós diante dos dons que recebemos: talentos, tempo, habilidades, missão, relações. A fidelidade se manifesta no uso responsável desses dons, na atenção às necessidades dos outros e na consciência de que nada nos pertence de forma absoluta, mas tudo nos é confiado para o bem comum. A demora do Senhor não é desculpa para o relaxamento moral ou espiritual; ao contrário, ela nos convoca a um compromisso contínuo, onde a vigilância e a responsabilidade são medidas pelo amor e pela justiça.

Os símbolos presentes no texto de Lucas são ricos e se entrelaçam com imagens recorrentes no Antigo e Novo Testamento. A casa e o ladrão evocam imagens de proteção e ameaça que encontramos em Provérbios e nos Salmos, onde a vigilância é sinônimo de prudência e cuidado. O servo fiel, que administra bem os bens confiados, ecoa a lógica dos talentos em Mateus 25,14‑30, e as dez virgens (Mateus 25,1‑13) nos lembram que a prontidão é mais importante que a quantidade de recursos ou conhecimento. A expressão “a quem muito foi dado, muito será exigido” sintetiza a ética de responsabilidade que atravessa toda a Escritura, lembrando-nos que a fidelidade não é medida pelo que possuímos, mas pelo uso que fazemos do que nos foi confiado.

A vigilância é um exercício de atenção plena, de autoconsciência e disciplina. O servo que se deixa levar pela preguiça, pelo conforto ou pelo egoísmo exemplifica os efeitos da procrastinação espiritual e da negligência moral. A fé não é um sentimento passivo, mas uma postura ativa que requer esforço, reflexão e maturidade. Na sociologia, essas parábolas falam à organização da vida comunitária, mostrando que a responsabilidade e a administração ética dos bens de Deus impactam diretamente na convivência, na justiça social e na solidariedade. Ignorar a vigilância é permitir que o egoísmo, o abuso e a exploração se instalem, minando a comunidade e corroendo os laços de confiança.

Lucas nos desafia a pensar sobre o tempo, a finitude e a transcendência. A vinda inesperada do Senhor nos lembra que a existência humana é marcada pela contingência, e que a fidelidade não é opcional, mas uma exigência diante do mistério da vida e da morte. A vigilância não é mero cálculo racional, mas disposição ética e espiritual, onde a liberdade encontra limites na responsabilidade e na atenção ao outro. A antropologia nos mostra que essas imagens do servo, do mestre e da casa eram familiares aos ouvintes originais de Lucas, mas que Jesus transforma, subvertendo a lógica social do domínio e da exploração, propondo um modelo de serviço mútuo, confiança e administração compartilhada dos bens confiados.

Historicamente, a comunidade lucana vivia uma tensão constante entre a espera da Parousia e a realidade de um mundo marcado por injustiças, opressão e demora aparente na ação divina. A demora de Cristo não é sinal de ausência ou falha, mas convite à vigilância e à fidelidade. Cada ação, cada decisão ética, cada momento de serviço fiel se torna significativo porque se insere nesse tempo “entre”, no qual a história humana continua sendo moldada pela graça e pela responsabilidade dos discípulos.

As críticas às correntes contemporâneas de teologia da prosperidade, do domínio, do individualismo e da fé‑mercadoria encontram eco direto neste texto. A promessa de recompensa não é baseada na acumulação de bens ou no sucesso pessoal, mas na fidelidade e na responsabilidade na administração do que nos foi confiado. A lógica do domínio e do poder, que muitas vezes permeia instituições e ministérios, é confrontada pelo exemplo do servo fiel, que não abusa dos outros, mas distribui o sustento no tempo próprio. O individualismo, que reduz a fé a experiência pessoal ou a consumo de bênçãos, é desafiado pela ênfase comunitária e pela prestação de contas: ninguém é fiel sozinho; a vigilância é ética, espiritual e social. A fé‑mercadoria, que transforma dons espirituais em bens de consumo, é contrária à exigência de serviço, responsabilidade e compromisso.

Os líderes e ministros, que recebem maiores dons e responsabilidades, são igualmente avaliados por sua fidelidade e serviço. A administração dos bens e do cuidado pastoral não é prerrogativa de poder, mas incumbência de serviço. A demora do Senhor não justifica a negligência nem a busca de privilégios. “A quem muito foi dado, muito será exigido” aplica-se igualmente ao sacerdote, ao líder comunitário, ao leigo engajado: a responsabilidade é proporcional ao dom recebido.

No tom profético, Lucas nos confronta hoje: a vida não espera a hora perfeita. O Senhor pode vir a qualquer momento, e o que Ele encontra em nossa casa, em nosso coração, em nossa comunidade, é o critério de fidelidade. Não se trata de temor paralisante, mas de compromisso ético e espiritual: nossas ações, escolhas e cuidados são a manifestação concreta de nossa vigilância e responsabilidade. Cada gesto de amor, cada ato de justiça, cada serviço humilde é uma lâmpada acesa, pronta para o encontro. O risco da demora é a acomodação, a tentação do egoísmo, a ilusão de que a espera nos autoriza ao relaxamento ou ao abuso.

Assim, a mensagem de Lucas 12,39‑48 permanece radical e atual: viver atentos, vigilantes, conscientes dos dons recebidos, e administrar esses dons com justiça, humildade e serviço, porque o tempo é dom e responsabilidade. A parábola nos lembra que a demora do Senhor não significa impunidade, mas oportunidade de fidelidade; que os dons não são propriedade, mas missão; que a vigilância não é ansiedade, mas prontidão; e que a prestação de contas é medida do amor e da fidelidade. A chamada é clara: sejamos discípulos vigilantes, administradores fiéis, servos justos, para que, quando o Mestre vier, encontre nossa vida, nossa comunidade e nosso ministério prontos, iluminados e transformados pelo amor que recebemos e compartilhamos.

Portanto, neste tempo litúrgico, seja na Quarta‑feira da 29ª Semana do Tempo Comum, seja no 19º Domingo do Tempo Comum, Lucas nos oferece um chamado à consciência plena, à responsabilidade ética, à vigilância espiritual e à fidelidade nos dons de Deus. Não podemos adiar o compromisso, nem acomodar-nos diante da aparente demora. Devemos vigiar, trabalhar, servir, amar e administrar o que nos foi confiado, para que nossa vida, nossa comunidade e nosso testemunho permaneçam fiéis ao Reino que já está presente, mas ainda se revelará em plenitude. Que cada um de nós reconheça a urgência do agora, a responsabilidade proporcional aos dons recebidos e a necessidade de viver sempre em prontidão, para que, ao final da jornada, possamos ouvir: “Muito bem, servo bom e fiel; foste fiel no pouco, sobre o muito te porei.”

DNonato - Teólogo do Cotidiano 


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