terça-feira, 21 de outubro de 2025

Um breve olhar sobre Lucas 12, 35-38

Há parábolas que são como portais: nelas, Jesus não apenas fala, mas nos desperta. Lucas 12,35-38 é uma dessas passagens que convidam o coração à lucidez, não pela ameaça, mas pela ternura  proclamado na terça-feirada 29ª semanadoTempo Comum:

 “Estejam cingidos os vossos rins e acesas as vossas lâmpadas. Sejam como homens que esperam o senhor voltar de uma festa de casamento, para lhe abrirem a porta assim que ele chegar e bater.”  

Esse  Evangelho  ressoa também nas vigílias do Advento e em celebrações sobre a vigilância cristã, porque ele traduz o espírito de uma Igreja que caminha, vela e confia.

Lucas escreve a uma comunidade marcada pela demora do Senhor. As primeiras gerações cristãs, inflamadas pela esperança da parusia, começaram a cansar-se: a volta de Cristo parecia distante, e o cotidiano, mais pesado. O evangelista, com olhar pastoral e alma de profeta, convida à fidelidade paciente. A vigilância não é medo do fim, mas amor desperto. O Senhor que tarda não é ausente: é pedagogo da esperança. Ele volta sempre, disfarçado de acontecimento, e espera que o reconheçamos. A parábola não mostra um amo tirânico, mas um Senhor surpreendentemente servidor: “Felizes aqueles empregados que o senhor encontrar acordados; em verdade vos digo, ele mesmo vai cingir-se, fazê-los sentar-se à mesa e, passando, os servirá.” É o coração do Evangelho: o Deus que serve os servos, o Senhor que se abaixa e se faz alimento.

O gesto de cingir os rins remete à noite da Páscoa (Êxodo 12,11), quando os israelitas deviam estar prontos para partir. Cingir-se é atitude de quem não se instala, de quem vive de prontidão, como peregrino da promessa. Também é símbolo de domínio interior — conter as dispersões, fortalecer o coração, preparar-se para o serviço. É o oposto da apatia. As lâmpadas acesas evocam as virgens prudentes (Mateus 25,1-13) e as sentinelas de Isaías (21,11): “Sentinela, quanto falta para o dia?” A lâmpada é a fé desperta, a consciência luminosa, o amor vigilante. A vigilância, portanto, é ato pascal: atravessar a noite com o coração em luz.

Em Mateus e Marcos, o tom é de advertência: “Vigiai, porque não sabeis o dia nem a hora.” Lucas, porém, reveste a cena de ternura: o Senhor que chega é o mesmo que se põe a servir. O banquete do Reino começa no serviço e culmina na comunhão. Aqui ressoa o Apocalipse (3,20): “Eis que estou à porta e bato; se alguém ouvir minha voz e abrir a porta, entrarei em sua casa e cearei com ele.” O Senhor que vem à noite é o mesmo que visita o coração no silêncio das horas comuns.

A noite é também símbolo do tempo presente. Somos, como diz o Salmo 130, “sentinelas que esperam pela aurora”. A noite cai quando o amor esfria, quando a esperança se apaga, quando o ruído do mundo sufoca o murmúrio de Deus. A vigilância é o movimento da alma que se recusa a dormir no desespero. É a resistência interior à anestesia do século. A psicologia chama isso de atenção plena, mas no Evangelho trata-se de atenção amorosa. Manter a lâmpada acesa é preservar a chama do sentido em meio à dispersão. A neurociência fala de foco; a fé fala de fidelidade.

O servo vigilante é imagem da consciência desperta, enquanto o servo sonolento representa a mente fragmentada e o coração entorpecido. Muitos dormem acordados: não é o corpo que repousa, é a alma que se rende. Vigiar é não se deixar paralisar pela fadiga do tempo, é reconhecer que cada instante pode ser o momento da visita divina. O sono, no campo psicológico, é fuga da consciência; espiritualmente, é o torpor de quem vive sem escuta. O servo fiel, ao contrário, vive atento ao sopro de Deus na vida.

Mas vigiar, num mundo que premia a distração, é um ato de resistência. A sociedade atual — marcada pelo consumo, pelo imediatismo e pela idolatria da imagem — prefere corações adormecidos e mentes dóceis. A religião do espetáculo transforma a fé em produto e o altar em palco. Luzes artificiais substituem a chama interior; promessas de sucesso e prosperidade tomam o lugar da cruz. Evangelii Gaudium (n. 93) denuncia esse “mundanismo espiritual que se disfarça de religiosidade”. Vigiar é não confundir brilho com luz. É resistir à sedução dos templos de LED e das liturgias de performance. O servo fiel não busca plateia, busca o silêncio onde Deus passa.

A teologia da prosperidade, ao confundir bênção com lucro, nega o Evangelho do Crucificado. A teologia do domínio, ao fundir Reino de Deus e poder político, trai a mansidão do Servo. A fé-mercadoria transforma o amor em contrato e o sagrado em serviço premium. O Evangelho de Lucas desmascara essas idolatrias: o Senhor da parábola não exige privilégios, mas inverte os papéis — Ele serve. O Reino não é palco de vencedores, mas mesa de servos. A vigilância, então, é solidariedade.

Gaudium et Spes (n. 39) recorda que “ignora-se o tempo da consumação da terra e da humanidade, mas Deus prepara uma nova habitação onde habita a justiça”. A vigilância cristã nasce dessa certeza: o tempo é travessia, e o fim é comunhão. Fratelli Tutti (n. 68) insiste que a esperança é ousada, “sabe olhar além do conforto pessoal e das pequenas compensações”. Vigiar é viver além do cálculo. É escolher o amor quando tudo convida à desistência.

A antropologia bíblica vê o homem como homo viator, ser em travessia. Abraão, chamado a sair de sua terra, inaugura essa condição: a fé é movimento. O cristão, herdeiro dessa Páscoa existencial, sabe que o deserto não é destino, mas caminho. O servo fiel é aquele que não se instala nas seguranças do mundo. “Buscai primeiro o Reino” (Lc 12,31): vigiar é confiar que o eterno sustenta o provisório.

Orígenes via na lâmpada a fé iluminada pela caridade e no óleo o Espírito que mantém a chama. Santo Agostinho ensinava: “Não é o sono do corpo que deve ser temido, mas o sono da alma que esquece Deus.” São Gregório Magno advertia aos pastores: “O vigilante é aquele que, em meio ao sono dos outros, mantém os olhos da alma abertos.” São João Crisóstomo completaria: “Não basta esperar o Senhor; é preciso arder enquanto se espera.” E Basílio lembrava que cingir os rins é disciplinar os sentidos, dominar-se para servir. A patrística, uníssona, nos mostra que vigiar é amar ativamente.

A noite da alma não é ausência de Deus, mas lugar do encontro silencioso. No Getsêmani, Jesus vigiou enquanto os discípulos dormiam. Ele pediu: “Vigiai e orai, para não cairdes em tentação” (Mt 26,41). A tentação é o conformismo espiritual, a sonolência diante da injustiça. Vigiar, para o discípulo, é manter o coração desperto entre o grito e o silêncio, entre a dor e a esperança.

O clericalismo é uma das formas mais sutis de sono espiritual. Ele transforma o ministério em poder e a liturgia em espetáculo. O pastor que não vigia se torna gestor de templos, não guardião de almas. Jesus, o Servo que cinge o avental, desmonta essa lógica. Em cada Eucaristia, Ele repete o gesto da parábola: cinge-se e serve os seus servos. O altar é o lugar da inversão: o Senhor torna-se alimento. O banquete escatológico começa no pão repartido. A vigilância eucarística é a alma da Igreja — estar de pé na noite, esperando o Amado que já veio e ainda virá.

O servo vigilante é também guardião da criação. Laudato Si’ ensina que cuidar da casa comum é vigiar pela vida em todas as suas formas. Dormir diante da devastação ambiental é negar o Deus criador. Vigiar é perceber o mundo como sacramento da presença divina, não como estoque de consumo. O servo fiel não destrói o jardim onde foi colocado: ele o cultiva, à espera do Senhor que virá passear pela brisa e vigiar e  viver à luz da finitude. Heidegger falava do “ser-para-a-morte” como consciência do limite; Levinas via na vigília o rosto do outro que nos desperta para a responsabilidade; Kierkegaard descreveu o desespero como esquecimento de Deus. A ética da vigilância é a ética da presença: estar inteiro, atento, desperto à alteridade.

A vigilância é resistência à alienação. Num mundo que anestesia pelo consumo e pelo entretenimento, o cristão vigilante é o que recusa o adormecimento coletivo. A fé desperta é crítica. Ela denuncia os ídolos modernos — o lucro absoluto, o sucesso como virtude, a neutralidade cúmplice. “Ai dos que dormem sobre camas de marfim”, dizia Amós (6,1). Vigiar é viver de olhos abertos à dor dos outros.

Ssbet esperar é maturidade. O servo que dorme é a criança impaciente; o servo que vigia é o adulto da fé. A esperança amadurecida sabe suportar o tempo da demora sem desespero. Viktor Frankl, sobrevivente dos campos de concentração, disse: “Quem tem um porquê suporta qualquer como.” O cristão vigilante tem esse “porquê”: o amor de Cristo que não passa.

Há na parábola um gesto escandaloso: o Senhor serve os servos. Nenhuma mitologia antiga ousou dizer isso. Aqui está o centro do Evangelho: o poder de Deus é o amor que se faz menor. O banquete do Reino é mesa de igualdade, não trono de domínio. A vigilância, portanto, é pedagogia da humildade.

A vida cristã é uma vigília entre o já e o ainda não. Vivemos entre a primeira e a última vinda, e cada amanhecer é ensaio da eternidade. A noite é longa, mas não eterna. A fé mantém acesa a lâmpada que atravessa as horas. Fratelli Tutti (n. 222) recorda: “A grandeza espiritual consiste em amar até quando parece inútil.” O amor vigilante é o que permanece, mesmo sem retorno.

A vigilância é também comunitária. Ninguém vigia sozinho. A Igreja é corpo que vela unido: onde um se distrai, o outro desperta. É assim que o Corpo de Cristo permanece vivo na noite da história. Cada comunidade é uma sentinela na muralha do tempo, guardando a esperança dos pobres e o clamor dos que não têm voz.

São Romero da América advertia: “De nada serve uma semana justa se a que a precede é injusta.” Vigiar é manter a chama da justiça acesa. É não se conformar com a noite da desigualdade, nem dormir diante da dor dos inocentes. O servo fiel é o que se levanta em nome dos que não podem esperar.

Quando o texto proclama “Felizes aqueles que o Senhor encontrar acordados”, ele fala de bem-aventurança. A felicidade do vigilante é participar da mesa do amor. E o banquete começa já aqui: toda vez que alguém serve, perdoa e acolhe, o Senhor está presente.

Que a noite não nos adormeça, mas nos eduque. Que a espera não nos desespere, mas nos amadureça. Que a lâmpada do coração não se apague no cansaço. E quando o Senhor bater — talvez em forma de pobre, de estrangeiro, de ferido —, que o reconheçamos.

Então Ele se cingirá, como na parábola, e nos fará sentar à mesa. E haverá silêncio, e alegria, e serviço.

Que o Senhor nos encontre despertos, com o avental do serviço e o coração como lâmpada acesa. Que nossa vigília seja canção de esperança e resistência, até que o dia amanheça e a sombra se dissipe no rosto do Amado.

Maranatha! Vem, Senhor Jesus!

DNonato – Teólogo do Cotidiano


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