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quinta-feira, 11 de setembro de 2025

7 de Setembro, Romaria e o Falso Patriotismo

Mais um 7 de setembro atravessa a história recente do Brasil. No Santuário Nacional de Aparecida, os passos de trabalhadores e trabalhadoras se transformaram em oração e denúncia, na 38ª Romaria dos Trabalhadores e Trabalhadoras. Ali, o clamor não era por desfiles ou armas, mas por soberania, justiça social e dignidade. Enquanto isso, em tantas cidades, os desfiles oficiais se misturavam a gritos de rua: de um lado, o 31º Grito dos Excluídos, que pedia o fim da jornada desumana 6x1, a defesa do trabalho, da terra e da vida; do outro, grupos que, sob a máscara de patriotismo, gritavam pela manutenção de privilégios e erguiam bandeiras estrangeiras como se fossem mais importantes do que o verde e amarelo.

É preciso dizer com clareza: ali, em Aparecida, estava o verdadeiro sentido da pátria. Porque pátria não se resume a um pano colorido tremulando ao vento, mas se encarna na vida concreta de quem acorda cedo, enfrenta ônibus lotado, sustenta a casa com salário mínimo e ainda assim encontra forças para lutar. É esse povo que constrói o Brasil, não aqueles que se travestem de patriotas enquanto servem a interesses externos, carregando com orgulho bandeiras de outros países como se fossem extensão de nossa identidade.

A contradição chega a ser gritante. Muitos repetem como mantra: “Minha bandeira jamais será vermelha.” Mas, se tiver vermelho, branco e azul com estrelas, tudo bem. O falso perigo do comunismo se tornou espantalho útil, alimentado por décadas de propaganda ideológica e medo. Desde os tempos da ditadura militar, disciplinas como Educação Moral e Cívica e OSPB tentaram forjar uma noção de patriotismo domesticado: cantar o hino, decorar símbolos, mas nunca aprender a questionar as estruturas sociais que mantinham a desigualdade e a exclusão. O amor à pátria virou cartilha para silenciar e adestrar, não para libertar.

Hoje vemos os frutos desse ensino torto. Uma parte da população acredita que defender soberania, direitos trabalhistas e justiça social é sinal de “ameaça comunista”. Como se pedir pão fosse subversão. Como se a luta pelo SUS, pela escola pública e pela dignidade do trabalho fosse conspirar contra o Brasil. O mais irônico é que os mesmos que gritam contra o “vermelho” da bandeira não enxergam que, ao se ajoelharem diante do vermelho, branco e azul dos Estados Unidos, rasgam a soberania que dizem defender.

A filosofia política já nos ensinou que o verdadeiro patriotismo não é obediência cega ao poder, mas compromisso com a liberdade e a justiça. Rousseau diria que não há pátria onde há miséria. Marx lembraria que a pátria dos trabalhadores é o mundo inteiro, mas que, antes de tudo, é preciso conquistar dignidade em sua própria terra. Paulo Freire mostraria que o amor à pátria nasce na consciência crítica, não na repetição de hinos em salas de aula militarizadas. O patriotismo sem justiça social é apenas máscara para esconder privilégios.

Neste 7 de setembro, vimos duas pátrias se confrontando: uma pátria viva, feita de povo em marcha, trabalhadores e trabalhadoras em romaria, gente que grita porque sabe que silêncio é cumplicidade; e uma pátria falsa, de quem veste verde e amarelo como fantasia, mas se curva diante de bandeiras estrangeiras. A pergunta que ecoa é: 

  • Quem ama mais o Brasil? 
  • Quem denuncia a exploração e exige soberania, ou quem se contenta em ser colônia de interesses alheios?

O profetismo da Romaria e do Grito dos Excluídos revela que a bandeira verdadeira não é de tecido, mas de carne e sangue, de suor e esperança. Ela é tecida nas fábricas, nas roças, nas periferias, nas mãos calejadas que constroem a nação dia após dia. E essa bandeira, sim, pode ser vermelha: não do comunismo temido, mas do sangue derramado por aqueles que nunca deixaram de lutar por justiça.

No fim, o falso patriotismo se desmancha como pó, porque amar o Brasil não é temer o vermelho, mas cuidar do verde das florestas que ainda resistem, do amarelo das riquezas que não podem ser entregues a poucos, do azul do céu que não se negocia, e do branco da paz que só se constrói com justiça. A bandeira não é um pedaço de pano, mas um compromisso vivo. Ela pulsa nas mãos dos que lutam, nas vozes que gritam, nos pés que caminham, nos olhos que ainda sonham.

Sim, a bandeira verdadeira pode ser vermelha — não do fantasma do comunismo inventado para amedrontar corações ingênuos, mas do sangue que escorreu de homens e mulheres que tombaram em greves, marchas, lutas pela terra e pela dignidade. Vermelho como o coração que insiste em bater, mesmo quando a pátria o sufoca.

E o grito dos excluídos ecoa como profecia: não haverá independência enquanto houver fome, não haverá soberania enquanto houver miséria, não haverá pátria enquanto houver trabalhadores tratados como descartáveis. O desfile oficial pode encher as avenidas de fardas e canhões, mas o verdadeiro 7 de setembro está nas ruas, nas romarias, nos clamores que se levantam contra a injustiça. O tempo das cartilhas de OSPB e de Educação Moral e Cívica passou; não precisamos mais repetir hinos de olhos fechados, precisamos abrir os olhos para enxergar o Brasil real, aquele que os livros oficiais tentaram esconder. Não há civismo sem crítica, não há moral sem justiça, não há pátria sem povo.

Por isso, que neste tempo de sombras ressoe a palavra dos profetas: ai dos que confundem idolatria com fé, que trocam soberania por submissão, que preferem bandeiras estrangeiras ao compromisso com o seu próprio povo. Ai dos que dizem amar o Brasil, mas se alimentam da sua miséria.

Mas benditos são os que caminham em romaria, os que gritam nas ruas, os que insistem em sonhar com um país onde a vida seja maior do que a morte, a justiça maior do que o lucro, a esperança maior do que o medo.

Essa é a bandeira que merece ser hasteada. E ela não se rasga, não se vende, não se cala. Porque ela é feita do tecido indestrutível da esperança.

DNonato



terça-feira, 9 de setembro de 2025

Um breve olhar sobre Lucas 6,20-26

Iniciamos esta reflexão com a palavra profética de São Óscar Romero, pronunciada em 17 de fevereiro de 1980: "Não é um prestígio para a Igreja estar bem com os poderosos. Prestígio para a Igreja é sentir que os pobres a sentem como sendo sua, sentir que a Igreja vive uma dimensão na terra, chamando todos, também os ricos, à conversão e à salvação a partir do mundo dos pobres, porque eles são unicamente os bem-aventurados."

O Evangelho de Lucas 6,20-26, proclamado no 6⁰  Domingo do Tempo Comum do Ano C e também na 23ª quarta-feira do Tempo Comum do ano ímpar, nos oferece a oportunidade de refletir profundamente sobre a verdadeira bem-aventurança e sobre os caminhos de vida que escolhemos. Esta leitura, verificada e confirmada em fontes oficiais de liturgia, nos lembra que a Igreja não é neutra: ou ela está alinhada com o Reino de Deus ou se conforma aos valores do mundo. Lucas, diferentemente de Mateus, não fala genericamente dos “pobres em espírito”, mas aponta diretamente para os pobres concretos, afirmando: “Bem-aventurados vós, os pobres, porque vosso é o Reino de Deus”. Essa distinção ilumina a centralidade da presença divina entre os marginalizados e excluídos. Essa centralidade se revela ainda mais ao analisarmos o contexto histórico e social em que Jesus proclamou essas palavras. Ele falava a pessoas oprimidas pelo jugo romano, submetidas a tributos pesados e às arbitrariedades das elites religiosas. O pobre, nesse sentido, é não apenas carente de bens, mas estruturalmente vulnerável. O termo grego ptōchos evoca total dependência e precariedade, revelando que a promessa de Jesus não é espiritualismo abstrato, mas compromisso concreto com aqueles que o mundo despreza. 

A forma literária do texto de Lucas reforça esta mensagem: quatro bem-aventuranças contrapostas a quatro “ais” denunciam a inversão de valores. Esta técnica lembra os profetas do Antigo Testamento, como Amós, que denuncia os ricos que vivem em luxo enquanto o povo sofre (Am 6,1-6), e Isaías, que critica a acumulação egoísta de bens (Is 5,8). Jeremias denuncia líderes injustos que ignoram o clamor dos necessitados (Jr 22,16), e os Salmos reafirmam que Deus ouve o clamor dos justos e marginalizados (Sl 34,7). Essas referências não apenas fundamentam o texto de Lucas, mas revelam a continuidade da opção divina pelos pobres ao longo de toda a Escritura.

Quando olhamos os paralelos sinóticos, percebemos a radicalidade desta escolha. Mateus 5,1-12 oferece uma versão espiritualizada das bem-aventuranças, enquanto Lucas não esconde o rosto real da pobreza. Marcos 10,17-27 mostra a dificuldade dos ricos em entrar no Reino, reforçando o contraste entre riqueza e entrega a Deus. Tiago 5,1-4 ecoa as palavras de Lucas ao denunciar a exploração econômica e moral, mostrando que a denúncia profética transcende culturas e épocas.

Essa perspectiva se aprofunda quando consideramos a dimensão psicológica e sociológica da mensagem. O apego desenfreado a bens e prestígio não apenas gera injustiça, mas cria vazio interior, solidão e isolamento. Viktor Frankl já demonstrava que o ser humano precisa de sentido, e não de acúmulo. Sociologicamente, a concentração de riqueza perpetua desigualdade e exclusão; antropologicamente, o ser humano é relacional, feito para viver em comunidade (Gn 2,18). Historicamente, os pobres enfrentaram múltiplas formas de opressão, evidenciando a atualidade da mensagem de Lucas.

A Patrística reforça esta leitura. Santo Ambrósio lembra que a terra foi criada em comum para todos e que o excesso é um roubo aos pobres (De Naboth). São João Crisóstomo denuncia que não partilhar os bens é roubo de vida (Homilia sobre Lázaro), enquanto Santo Agostinho, em Cidade de Deus, contrapõe o amor desordenado com o amor ordenado, mostrando o caminho ético das bem-aventuranças. Estes ensinamentos formam um fio contínuo que conecta a mensagem de Jesus à tradição da Igreja.

O Magistério contemporâneo confirma esta interpretação. O Concílio Vaticano II, em Gaudium et Spes (n.1), afirma que alegrias e sofrimentos dos pobres são também os da Igreja. Medellín (1968) denunciou a miséria coletiva, Puebla (1979) apontou os rostos concretos da exclusão, e Aparecida (2007, nn. 392-395) reafirma que a opção pelos pobres é eixo missionário. Evangelii Gaudium (n.198) adverte que sem essa opção o Evangelho perde autenticidade, enquanto Fratelli Tutti (nn.187 e 189) denuncia a exclusão e a desigualdade, mostrando que a mensagem de Lucas continua viva e urgente.

Entretanto, as falsas teologias tentam silenciar esta radicalidade. A teologia da prosperidade reduz a fé a mercadoria; a teologia do domínio legitima poder e controle; a fé-mercadoria transforma espiritualidade em espetáculo. O clericalismo cria hierarquias fechadas, afastando a Igreja dos pobres e invertendo a lógica das bem-aventuranças. Cada um desses desvios demonstra a necessidade de permanecermos atentos à autenticidade do Evangelho, colocando a justiça e a solidariedade acima do prestígio, do lucro e da autopromoção.

Historicamente, na América Latina, muitos viveram e morreram por esta fidelidade, incluindo Romero, irmã Dorothy Stang e padres e leigos comprometidos com os pobres. Eles encarnaram as bem-aventuranças e enfrentaram os “ais” do mundo, tornando-se testemunhas vivas da opção preferencial pelos pobres. Suas vidas mostram que a consolação do Reino é possível aqui e agora, na coragem de defender a justiça e a dignidade humana.

Lucas 6,20-26 nos convida à escolha radical: ou buscamos a consolação do mundo, passageira e ilusória, ou a consolação do Reino, que já começa no cotidiano de partilha e solidariedade. As bem-aventuranças são vividas em cada gesto de cuidado, denúncia profética e entrega ao outro. Isaías 32,17 assegura que “o fruto da justiça será a paz”, enquanto Apocalipse 21,4 promete que Deus “enxugará toda lágrima”, consolidando a esperança daqueles que hoje choram e sofrem. .

Assim, à luz de Lucas, da tradição profética e da voz de Romero, proclamamos com fé: bem-aventurados os pobres, porque deles é o Reino de Deus. E ai de nós, se não formos Igreja pobre e dos pobres.

DNonato – Teólogo do Cotidiano


terça-feira, 19 de agosto de 2025

Um breve olhar sobre Mateus 20,1-16a

Do Denário à Dignidade: Primeiros e Últimos Contra Jornadas Abusivas, existe vida após  o trabalho

A liturgia  hoje nos apresenta a parábola dos trabalhadores na vinha, conforme Mateus 20,1-16a, leitura própria da quarta-feira da 20ª semana do Tempo Comum, ano ímpar, e do 25º domingo do Tempo Comum, ano A. A narrativa de Jesus, rica em simbolismo, revela a natureza radical da graça divina e nos desafia a repensar nossa relação com o trabalho, a justiça e a solidariedade. Cada elemento da parábola – o proprietário, a vinha, os trabalhadores, as horas do dia e o denário – é simbólico, mas também nos convida a refletir sobre questões sociais e laborais muito atuais, mostrando que a justiça de Deus muitas vezes contraria as expectativas humanas e os esquemas de exploração ou meritocracia. Este texto nos recorda que a verdadeira justiça não se mede pelo esforço ou tempo de serviço, mas pelo acolhimento da graça e pela abertura do coração à generosidade divina, uma lógica que subverte todas as concepções humanas de mérito, produtividade e poder.

O proprietário da vinha, que chama trabalhadores em diferentes horários e paga a todos o mesmo denário, simboliza a soberania e generosidade de Deus. Ele nos lembra que a recompensa divina não é proporcional ao esforço ou ao tempo de serviço, mas ao amor com que cada um acolhe o chamado. No contexto contemporâneo, esta lógica desafia o modelo de trabalho baseado na meritocracia rígida, na exploração ou na subvalorização do trabalhador. Assim como os primeiros trabalhadores murmuram ao verem os últimos recebendo igual salário, muitas vezes nos indignamos com as leis trabalhistas que buscam equilibrar direitos e garantias, pois elas parecem contrariar a lógica do “merecimento” e do lucro imediato. Mas a Bíblia, desde Deuteronômio 24,14-15, já orientava sobre a justa remuneração do trabalhador: “Não oprimirás o teu trabalhador pobre e necessitado, seja ele dos teus irmãos ou dos estrangeiros que estiverem na tua terra. Dar-lhe-ás o seu salário no mesmo dia, antes que o sol se ponha; porque ele é pobre, e dele depende a sua vida.” Este preceito revela que a justiça do trabalho tem raízes profundas na tradição bíblica, colocando a dignidade do ser humano acima do cálculo econômico.

A parábola sugere, portanto, uma visão de justiça que vai além da simples equidade contratual: ela denuncia qualquer lógica de exploração ou imposição de escalas abusivas, como a rotina exaustiva da escala 6x1, onde o trabalhador cumpre seis dias consecutivos de trabalho e tem apenas um dia de descanso. Tal prática, embora legalmente permitida em alguns contextos, muitas vezes ignora a necessidade de repouso digno, saúde física, equilíbrio familiar e vida comunitária. A escala 6x1, quando aplicada de forma mecânica ou sem atenção à dignidade humana, reproduz uma lógica contrária ao cuidado que Deus demonstra na parábola, transformando o trabalho em mero instrumento de lucro, e não em meio de santificação e serviço. Esta realidade evidencia o contraste entre a lógica humana, voltada ao rendimento e à eficiência, e a lógica divina, centrada na dignidade, na generosidade e na misericórdia. É uma denúncia clara de como sistemas laborais desumanos não respeitam o ritmo de vida do trabalhador, prejudicando a saúde física, emocional e espiritual.  O denário, símbolo da plenitude da graça, pode ser interpretado também como metáfora da justa compensação, que não deve ser exploratória nem desproporcional. As leis trabalhistas modernas, como a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) no Brasil, tentam equilibrar direitos, proteção e salário digno, refletindo a lógica divina de justiça e cuidado com todos os trabalhadores, especialmente os mais vulneráveis. Entretanto, ainda que garantam formalmente um pagamento, as condições de trabalho muitas vezes não contemplam a integralidade do ser humano: descanso, segurança, saúde e tempo para a vida comunitária. A parábola de Mateus nos convida a olhar para além do pagamento e avaliar se o trabalho respeita a dignidade, se promove o bem comum e fortalece a fraternidade, lembrando que “os primeiros serão últimos, e os últimos serão primeiros” (Mt 20,16). Aqui, a Boa Nova nos propõe uma síntese simbólica: o trabalho justo e digno é expressão concreta da graça de Deus, um chamado a romper com sistemas que reduzem o ser humano a cifras e produtividade, lembrando que Deus valoriza a pessoa e não apenas o rendimento.

A  narrativa nos alerta sobre a ansiedade, a comparação e o ressentimento que surgem quando o esforço humano é medido apenas pelo retorno material. A crítica à escala 6x1 é essencial nesse contexto: jornadas prolongadas e descanso insuficiente geram desgaste físico e mental, prejudicando a capacidade de relacionamentos, de reflexão e de vida espiritual. Quando o ritmo de trabalho se torna um fardo contínuo, ele mina a saúde, provoca adoecimento e alimenta um ciclo de exploração e desigualdade, revelando a incompatibilidade entre a lógica humana de produção e a justiça de Deus. Sociologicamente, esta prática evidencia a persistência de estruturas opressivas, a desigualdade e a desvalorização do trabalhador, denunciando que a produtividade não pode ser a única medida do valor humano, sob pena de destruir comunidades e famílias inteiras.

A  parábola questiona o utilitarismo e o pragmatismo que pautam a economia do trabalho, subvertendo a ideia de que o valor do homem está vinculado exclusivamente à eficiência ou à produção. Teologicamente, ela denuncia as concepções de prosperidade vinculadas à produtividade, ao domínio ou à fé como mercadoria. Historicamente, o contexto agrícola do tempo de Jesus revela contratos e desigualdades, mas a decisão do proprietário de pagar igualmente a todos escandaliza, transformando a compreensão do valor do trabalho e antecipando a visão cristã de justiça social. A escala 6x1, aplicada de forma desumana, mostra como a sociedade contemporânea ainda repete a lógica da exploração, exigindo reflexão ética, política e espiritual sobre os direitos do trabalhador.

Na patrística, de Agostinho a Gregório de Nissa, interpreta esta parábola como convite à renúncia do orgulho e à valorização da equidade e da misericórdia. Agostinho observa que “não é a duração do trabalho que pesa, mas o amor com que se serve”, enquanto Gregório de Nissa destaca que a igualdade de pagamento para os trabalhadores tardios revela a primazia da generosidade divina sobre a contabilidade humana. Em nossas sociedades contemporâneas, esta lógica crítica nos desafia a questionar escalas extenuantes, jornadas abusivas e a concepção de que a produtividade define o valor da pessoa, chamando-nos a construir relações laborais que respeitem o ritmo, a saúde e a vida do outro. A escala 6x1, quando aplicada sem humanidade, torna-se um símbolo da opressão moderna, que contradiz o ensino do Evangelho e o respeito à dignidade do trabalhador.

A Igreja con o Magistério  reforça essa perspectiva. A Gaudium et Spes (n. 63-66) afirma que a justiça social e o direito ao trabalho digno refletem a justiça de Deus, enquanto Evangelii Gaudium lembra que a economia não pode estar desligada da ética, da solidariedade e da dignidade humana. Fratelli Tutti (n. 215) reforça que o encontro e a fraternidade são princípios fundamentais, opondo-se a qualquer lógica de exploração ou cálculo utilitário. Assim, a parábola torna-se uma denúncia profética, lembrando que a graça de Deus se manifesta também na vida concreta, nas condições de trabalho, no respeito à pessoa e na construção de uma sociedade mais justa, em que a escala 6x1 não seja instrumento de opressão, mas transformada para preservar a saúde, o descanso e a dignidade humana.

A  parábola dos trabalhadores na vinha nos convida a repensar a justiça do trabalho, a remunerar com dignidade, respeitar o descanso e a vida pessoal e resistir a práticas de exploração, como a escala 6x1 quando ela se torna desumana. Deus chama todos à salvação, e o chamado ao trabalho digno reflete a mesma lógica: não basta o esforço, o tempo ou a produtividade; importa a abertura do coração, a generosidade e a justiça que promove a vida plena. Que a Boa Nova nos inspire a lutar por condições de trabalho que respeitem a dignidade, a solidariedade e a graça que transcende qualquer cálculo humano, vivendo uma espiritualidade profética que contrarie os esquemas injustos do mundo e abrace a lógica surpreendente e misericordiosa de Deus. Que possamos ser vigilantes e audaciosos na defesa da vida, do descanso e da justiça laboral, lembrando sempre que a vinha do Senhor é para todos, e ninguém deve ser explorado ou desprezado no ritmo da colheita.



DNonato - Teólogo do Cotidiano 


domingo, 17 de agosto de 2025

Um breve olhar sobre Mateus 19,16-22

 
"O Tesouro da Entrega: Seguindo Jesus além do apego"

O Evangelho de Mateus 19,16-22, proclamado na segunda-feira da 20ª semana do Tempo Comum, encontra ecos em outros momentos da liturgia, como no 28º Domingo do Tempo Comum, ano B, quando Marcos relata a mesma narrativa (Mc 10,17-30), e também em Lucas 18,18-30, utilizado em dias da liturgia ferial. A insistência da Igreja em nos fazer ouvir essa passagem mais de uma vez ao longo do ano não é casual: trata-se de um espelho evangélico em que somos convidados a nos reconhecer e a confrontar nosso apego ao que é transitório. A repetição litúrgica é pedagógica, porque a renúncia, o seguimento e a liberdade do coração atravessam toda a história da fé e permanecem atualíssimos. Não se trata de uma reflexão sobre moralismo abstrato, mas de uma chamada concreta à conversão interior e à justiça social.

A narrativa inicia com o jovem rico correndo até Jesus, reconhecendo nele um Mestre digno de respeito. Sua pergunta é profunda e legítima: “Mestre, que devo fazer de bom para alcançar a vida eterna?” (Mt 19,16). Esse desejo não surge do vazio, mas ecoa o anseio antigo de Israel pelo bem e pela paz, o shalom, presente no livro do Deuteronômio: “Ponho diante de ti a vida e a morte… escolhe, pois, a vida” (Dt 30,15-20). A sabedoria israelita já havia descrito a vida como dom da fidelidade (Pr 3,16-18), e os salmos suplicavam: “Mostra-me, Senhor, os caminhos da vida” (Sl 16,11). O jovem, portanto, não é um cínico, mas alguém em busca de plenitude. No entanto, sua mentalidade revela a lógica meritocrática de seu tempo — e a nossa: o que devo fazer, qual esforço extra, qual ação me garante vantagem? É a tentação de transformar a vida eterna em produto, prêmio ou mérito humano. João 6,28-29 mostra a mesma inquietação: “Que devemos fazer para realizar as obras de Deus?” A resposta de Jesus permanece: não se trata de multiplicar obras, mas de entrar em relação com o único Bem verdadeiro. “Por que me perguntas sobre o que é bom? Um só é o Bom” (Mt 19,17). A bondade não é soma de obras, mas fruto da comunhão com Deus.

Jesus então enumera os mandamentos, mas destaca aqueles que revelam a essência da Lei e dos Profetas: não matar, não adulterar, não roubar, não levantar falso testemunho, honrar pai e mãe, amar o próximo como a si mesmo (cf. Mt 19,18-19; Lv 19,18). O jovem afirma: “Tenho observado tudo isso. Que me falta ainda?” (Mt 19,20). A pergunta é universal: cumprir normas é importante, mas não basta; a vida clama por algo mais. A obediência formal não preenche o coração inquieto, como ensina Santo Agostinho: “Fizeste-nos para Ti, Senhor, e o nosso coração está inquieto enquanto não repousar em Ti” (Confissões, I,1). Nicodemos em João 3, mesmo conhecedor da Lei, procura Jesus na noite, evidenciando que o reconhecimento religioso não substitui a transformação do coração.


O passo decisivo aparece quando Jesus diz: “Se queres ser perfeito, vai, vende tudo o que tens, dá aos pobres, e terás um tesouro no céu. Depois, vem e segue-me” (Mt 19,21). A perfeição não é impecabilidade moral nem acumulação de virtudes, mas liberdade do apego e coragem de seguir Jesus. Marcos acrescenta um detalhe precioso: “Jesus olhou para ele e o amou” (Mc 10,21). O chamado é convite amoroso, não imposição coercitiva. No entanto, o jovem “retirou-se cheio de tristeza, porque possuía muitos bens” (Mt 19,22). Sua tristeza simboliza a escravidão do apego: quanto mais se possui, maior o medo de perder. Esta é a mesma cegueira denunciada na parábola do rico insensato (Lc 12,16-21) e do rico que ignora Lázaro à sua porta (Lc 16,19-31).

A hermenêutica do texto se abre em várias direções. Psicologicamente, revela como a identidade baseada em posse e status produz ansiedade e vazio existencial. Sociologicamente, o capitalismo moderno reproduz a lógica da acumulação sem sentido, produzindo sociedades ricas em mercadorias e pobres em sentido. A antropologia mostra que culturas antigas já compreendiam que a abundância só se torna vida quando partilhada; do contrário, vira maldição, como o maná que apodrecia quando acumulado (Ex 16,20). Filosoficamente, Aristóteles enfatizava a vida virtuosa, e Lévinas a responsabilidade ética pelo outro. A teologia vê nesse texto denúncia da idolatria: confiar mais na riqueza do que em Deus é afastar-se do Reino. Não por acaso, Jesus afirma: “É mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma agulha do que um rico entrar no Reino” (Mt 19,24), ecoando Isaías 5,8 e Amós 6,1-7, que criticam a opulência e a exploração dos pobres.

A tradição patrística reforça essa leitura. São Basílio advertia: “O supérfluo que tu guardas pertence aos pobres; as roupas que mofam nos teus armários pertencem aos que estão nus” (Homilia sobre a Avarícia). João Crisóstomo afirmava: “Não compartilhar com os pobres é roubar e privá-los da vida” (Homilias sobre Mateus, 50,3). Orígenes lembrava: “Seguir Cristo não é apenas imitá-lo, mas deixar-se transformar interiormente por Ele” (Comentário sobre Mateus, XIII,24). Ambrósio de Milão denunciava: “A terra foi criada em comum para todos, e a avareza dos ricos a transformou em posse exclusiva” (De Nabuthe, 12). A patrística inteira insiste: a riqueza não é neutra; torna-se diabólica quando fecha o coração à fraternidade.

O Evangelho também nos convida a olhar criticamente para situações atuais dentro da própria Igreja. Não é raro que padres, bispos e autoridades eclesiásticas acumulem bens materiais ou vivam em conforto e luxo, distantes da simplicidade que o Evangelho propõe. Esse apego contradiz frontalmente o chamado de Jesus à renúncia e ao serviço desinteressado: o ministério, que deveria ser expressão do amor e da partilha, corre o risco de se transformar em prestígio, poder ou mercadoria espiritual. Tais condutas não apenas escandalizam os fiéis, mas obscurecem a credibilidade da Igreja como comunidade profética, capaz de anunciar a justiça e a fraternidade. O chamado de Cristo permanece inalterado: seguir Jesus exige desapego, coragem de pobreza evangélica e compromisso concreto com os pobres. Qualquer riqueza que fecha o coração, restringe a liberdade ou impede o serviço ao próximo transforma-se em obstáculo ao Reino. Por isso, a renúncia não é apenas uma virtude individual, mas exigência de coerência para toda a comunidade eclesial, lembrando que o Evangelho se cumpre na entrega e na partilha, e não na acumulação ou no conforto pessoal. Este Evangelho denuncia frontalmente as teologias contemporâneas deformadas. A teologia da prosperidade é desmentida: Jesus não promete riqueza, mas pede renúncia. A teologia do domínio, que transforma a fé em projeto de poder, é desmontada: o Reino não se impõe, recebe-se na entrega. O individualismo religioso é insuficiente; a vida eterna passa pela partilha com os pobres. A fé como mercadoria, transformando bênçãos em produtos, é desmascarada pela gratuidade do seguimento. O clericalismo, igualmente, é atingido em cheio: títulos e funções nada valem se o coração não se desapega para servir. O Papa Francisco lembra: “O clericalismo é uma perversão” porque substitui serviço por poder.

O Magistério atual reafirma esta perspectiva. Gaudium et Spes (n. 63-66) alerta contra medir o homem pelo que possui. A Evangelii Gaudium denuncia: “esta economia mata” (EG 53). A Fratelli Tutti insiste que não há humanidade sem fraternidade e que não há futuro para quem escolhe muros e exclusão. O desapego não é idealismo, mas condição de liberdade, justiça e fraternidade concreta, traduzida em escolhas políticas, sociais e comunitárias.

O jovem rico não é apenas personagem do passado; é retrato de cada um de nós, de nossas comunidades e da própria Igreja, sempre tentada a se apegar a bens, prestígios e tradições rígidas. A liturgia repete esse texto para que não nos contentemos com o mínimo da lei, mas nos lancemos na plenitude do amor. Não basta não matar: é preciso promover a vida. Não basta não roubar: é preciso partilhar. Não basta não levantar falso testemunho: é preciso colocar-se ao lado da verdade. Não basta cumprir mandamentos: é preciso seguir Jesus. A tristeza do jovem rico é também a tristeza de igrejas e indivíduos que se apegam a privilégios, prestígio ou segurança material, perdendo a liberdade profética.

Assim, a mensagem final se faz clara: a alegria do cristão não está na posse ou no controle, mas na entrega. O verdadeiro tesouro não se mede em bens, mas em amor doado, liberdade conquistada e coração aberto. Seguir Jesus é aceitar o risco da entrega, perder para ganhar, deixar para viver plenamente. Como Paulo declara: “Tudo considero perda diante da sublimidade do conhecimento de Cristo” (Fl 3,8). A liturgia insiste, geração após geração, com a mesma pergunta: “Que me falta ainda?” (Mt 19,20). E a resposta de Jesus permanece atual: desapegar-se para amar, perder para encontrar, deixar para seguir. Que a Igreja e cada um de nós, hoje, escolham a alegria da entrega e a liberdade do coração aberto, permitindo que a vida verdadeira floresça em plenitude.



DNonato - Teólogo do Cotidiano 


quarta-feira, 6 de agosto de 2025

Um breve olhar sobre Mateus 16,13-23

O Evangelho de Mateus 16,13-23 é proclamado na 5ª-feira da 18ª semana do Tempo Comum e em outras ocasiões, como na festa da Cátedra de São Pedro (quando se lê até o versículo 19) e em solenidades que recordam o ministério apostólico. Ao situar este trecho no contexto da oração e da escuta comunitária, a Igreja nos convida a retornar, vez após vez, à pergunta que Jesus dirige aos discípulos e que continua viva e urgente em cada geração. É uma pergunta que não se dirige apenas a um grupo de pescadores da Galileia, mas que atravessa os séculos e chega até nós, desafiando nossas certezas e confrontando nossas imagens de Deus (Sl 139,1-4; Jr 17,9-10).

Quando Jesus chega à região de Cesareia de Filipe, não é por acaso nem por turismo. Trata-se de um lugar carregado de simbolismo político, religioso e cultural. A cidade, reconstruída e ampliada por Filipe, filho de Herodes, era um polo de culto pagão, onde se erguia um templo em homenagem ao imperador romano — adorado como “filho de deus” na ideologia imperial (Rm 13,1-7) — e onde antigas tradições cananeias associavam a nascente do Jordão ao deus Pã, símbolo de fertilidade e força selvagem. Ali, distante do Templo de Jerusalém e de suas seguranças ritualísticas (Sl 122,1), Jesus conduz os discípulos para um terreno onde o poder imperial, a idolatria econômica e as expectativas messiânicas populares se encontram e se confundem. É nesse contexto de disputa de lealdades e significados que Ele pergunta: “Quem dizem os homens ser o Filho do Homem?” (Mt 16,13).

A expressão “Filho do Homem” — vinda de Daniel 7,13-14 — evoca não apenas a humanidade de Jesus, mas uma figura escatológica a quem é dado domínio eterno, diferente dos reinos violentos simbolizados por bestas (Ap 13). É também um título que Jesus usa para falar de si mesmo de forma velada, abrindo espaço para que as pessoas cheguem ao reconhecimento não pela imposição, mas pelo encontro (Jo 1,14). A pergunta é meticulosamente pedagógica: antes de chegar à fé pessoal, é preciso confrontar o rumor das multidões (Lc 12,2-3). E as respostas que chegam a Ele ecoam a memória profética de Israel: “uns dizem João Batista; outros, Elias; outros, Jeremias ou algum dos profetas” (Mt 16,14; cf. Mc 8,28; Lc 9,19). João Batista, o pregador do arrependimento (Mt 3,1-12); Elias, o profeta que enfrentou reis e falsos deuses (1Rs 18); Jeremias, o homem das lágrimas e da denúncia contra a religião vazia (Jr 7,1-15); ou algum profeta que ousou falar em nome de Deus contra a injustiça (Am 5,21-24).

Todas essas comparações são honrosas, mas insuficientes. Reconhecem em Jesus algo de extraordinário, mas ainda o reduzem às categorias do passado, incapazes de perceber a novidade absoluta que Ele encarna (Is 43,18-19). É a tentação de encaixar Deus nos moldes antigos, de esperar que o Messias venha confirmar nossas agendas e não subvertê-las (Jr 23,16-22). O povo vê milagres, ouve palavras de autoridade, percebe compaixão (Mt 9,35), mas continua preso ao imaginário de um messias político, nacionalista ou milagreiro, capaz de restaurar a glória de Israel e derrotar Roma pela força (Mt 20,25-28). Então Jesus desloca o foco: “E vós, quem dizeis que eu sou?” (Mt 16,15). A mudança de pronome é decisiva. Agora não se trata mais da opinião pública, mas da confissão pessoal (Rm 10,9-10). A fé não se apoia apenas no que ouvimos dizer; precisa nascer do encontro vivo (Jo 20,29). É Pedro quem toma a palavra: “Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo” (Mt 16,16). No grego, Christós significa “Ungido” e ecoa o hebraico Mashiach, aquele consagrado para uma missão única (Sl 2,2). Mas Pedro acrescenta algo ousado: “Filho do Deus vivo”, uma profissão que remete ao Deus revelado em Êxodo (Ex 3,14), vivo e atuante, em contradição com o imperador, chamado “filho do divino” em Roma (At 17,22-31). Aqui, a confissão é um ato de resistência teológica e política: o verdadeiro Filho de Deus não é César, mas Jesus (Fl 2,5-11).

Jesus confirma: “Não foi a carne nem o sangue que te revelaram isso, mas meu Pai que está nos céus” (Mt 16,17). A expressão “carne e sangue” é um semitismo para indicar a limitação humana (1Co 2,14). Pedro não chegou a essa conclusão por lógica ou por pesquisa de opinião; foi um dom, fruto da intimidade com o Mestre e da abertura ao Espírito (Jo 14,26). É o mesmo que Paulo recordará em 1Coríntios 2,10-16: “O Espírito sonda todas as coisas, até mesmo as profundezas de Deus”. Então Jesus declara: “Tu és Pedro, e sobre esta pedra construirei a minha Igreja, e as portas do inferno não prevalecerão contra ela” (Mt 16,18). No aramaico de Jesus, provavelmente a frase foi Kepha, e sobre esta kepha edificarei a minha comunidade. A palavra kepha pode ser entendida como “penhasco” ou “rocha firme” (Sl 61,2), e a imagem da pedra na Escritura evoca firmeza, mas também remete ao próprio Deus como rocha de Israel (Sl 18,3; Is 28,16). O profeta Isaías já anunciava a pedra angular, escolhida e preciosa, fundamento seguro para todos os que creem, uma rocha firme em meio às tempestades da história (Is 28,16). Aqui, a missão de Pedro não é a de um soberano terreno, mas de um fundamento vivo, chamado a sustentar a comunhão (Ef 2,20-22). As “portas do inferno” — na mentalidade bíblica, o poder da morte e do caos — não vencerão a comunidade que permanece fiel ao Evangelho (Sl 24,7-10; Ap 21,8). Paulo lembra que essa Igreja é “edifício santo, templo do Espírito” (Ef 2,20-22), sustentada pela pedra angular, Jesus Cristo.

O “poder das chaves” (Mt 16,19) não é licença para autoritarismo religioso, mas responsabilidade de abrir e fechar, ligar e desligar, reconciliar e excluir o mal, não as pessoas (Jo 20,22-23). A Lumen Gentium (27) recorda que a autoridade na Igreja deve ser serviço, não domínio; cuidado, não manipulação (Mt 23,8-12). Quando a autoridade se converte em mecanismo de autopreservação, acúmulo de bens ou manipulação de consciências, ela trai o Cristo Servo, que “não veio para ser servido, mas para servir” (Mt 20,28). O Papa Francisco em Evangelii Gaudium (109-111) denuncia a mundanidade espiritual e o clericalismo que “distorcem o sentido da missão, levando a Igreja a perder o frescor da novidade do Evangelho”.

Mas logo vem a virada dramática. A partir daquele momento, Jesus começa a explicar que é necessário ir a Jerusalém, sofrer muito, ser rejeitado pelos anciãos, pelos chefes dos sacerdotes e pelos escribas, ser morto e ressuscitar ao terceiro dia (Mt 16,21; cf. Mc 8,31; Lc 9,22). É o caminho do Servo Sofredor de Isaías 53, não o do conquistador armado (Is 53,3-12). Paulo relembra que a cruz é “escândalo para os judeus e loucura para os gentios” (1Cor 1,23) e que o verdadeiro discipulado passa por tomar a cruz (Gl 2,20; Lc 14,27). Pedro, que há pouco fora rocha, agora se torna obstáculo: “Deus não permita, Senhor! Isso nunca te acontecerá!” (Mt 16,22). Ele pensa proteger Jesus, mas está tentando desviá-lo do projeto do Pai. Por isso ouve palavras duras: “Vai para trás de mim, Satanás! Tu és para mim pedra de tropeço, porque não pensas as coisas de Deus, mas as dos homens” (Mt 16,23). Jesus é a “pedra de tropeço e rochedo de escândalo” para os que rejeitam o Reino (1Pd 2,8).

Este episódio revela a fragilidade humana: podemos confessar a fé num momento e, no instante seguinte, distorcê-la pelos nossos medos e interesses. O medo da dor, a busca de segurança e a sede de glória nos levam a projetar sobre Deus nossas ambições. É a lógica das teologias da prosperidade e do domínio, que pregam um Cristo sem cruz, um Reino sem renúncia, uma fé mensurada por posses e conquistas políticas (Lc 6,24-26). É também a tentação do clericalismo, que transforma a missão em privilégio e a graça em mercadoria (2Tm 3,1-5). Como alerta a Gaudium et Spes (63–66), as estruturas econômicas e políticas que absolutizam o lucro e o poder geram desigualdade e violência; a Igreja não pode se calar diante delas sem trair o Evangelho (Mt 25,31-46).

A antropologia mostra que, em todas as culturas, líderes são investidos de expectativas messiânicas. No tempo de Jesus, sob a opressão romana, o povo ansiava por libertação política (Sl 136). Jesus redefine o messianismo: não é conquista pela espada, mas entrega radical; não é supremacia, mas serviço; não é exclusão, mas mesa aberta (Mt 20,25-28; Lc 22,27). São João Crisóstomo dirá: “O poder na Igreja é mais pesado do que honroso, pois exige carregar o peso das almas”.

A cena de Cesareia de Filipe, portanto, é um alerta para nós. Não basta repetir fórmulas corretas; é preciso encarnar a lógica do Evangelho. Na sociedade do espetáculo, proliferam falsos profetas que transformam o Evangelho em espetáculo e mercadoria, banalizando a cruz e vendendo uma fé anestesiada, que conforta os poderosos e abandona os pobres (Mt 7,15-20; 2Tm 4,3-4). O Cristo vivo não cabe em slogans; Ele derruba tronos (Lc 1,52), chama a perder a vida para encontrá-la (Mt 16,25) e caminha com os descartados do sistema (Mt 25,40).

Responder à pergunta de Jesus é aceitar o caminho da cruz, da entrega e da comunhão. É reconhecer que no trono está o Cordeiro imolado (Ap 5,6), não o predador triunfante; que segui-lo é sair “fora do acampamento, levando sua humilhação” (Hb 13,13), mesmo que isso signifique enfrentar rejeição e perder privilégios. É viver, como ensina Fratelli Tutti (3), uma fraternidade aberta que se opõe tanto ao ídolo do mercado quanto à idolatria da nação.

Cesareia de Filipe não é apenas um lugar na história; é um espelho diante do qual cada geração da Igreja deve se examinar. É o ponto onde se decide se seguiremos o Cristo vivo ou se usaremos Seu nome para legitimar nossos próprios projetos. É o lugar onde se escolhe entre ser rocha ou pedra de tropeço, entre pensar como Deus ou como os homens. Seguir Jesus é permitir que Ele desconstrua nossos falsos messianismos e edifique sobre a pedra viva que é Ele mesmo (1Pd 2,4-6) uma Igreja humilde, aberta e fraterna.

No fim, a verdadeira rocha não é a que se vangloria da própria firmeza, mas a que se deixa lapidar pelo amor que dá a vida. Quem pensa como Deus sabe que a Igreja permanece de pé não por muros altos ou alianças de conveniência, mas porque está apoiada na pedra angular rejeitada pelos construtores (Sl 118,22; Mt 21,42). E é justamente essa pedra — ferida, desprezada e aparentemente frágil — que se torna fundamento de um mundo novo, onde “a justiça e a paz se abraçarão” (Sl 85,11) e onde cada porta estará aberta para acolher o pobre, o estrangeiro, o ferido e o perdido (Is 58,6-10). 

Que cada um de nós, hoje, diante da pergunta de Jesus, escolha ser pedra viva edificada na humildade e no serviço, rejeitando o poder mundano e acolhendo a cruz que liberta e recria. Que nossa Igreja, mesmo ferida e rejeitada, permaneça firme e profética, denunciando os falsos messias do mercado, do nacionalismo e da vaidade, e abrindo suas portas a todos os que buscam justiça, paz e fraternidade verdadeira.9



DNonato – Teólogo do Cotidiano


sábado, 2 de agosto de 2025

Um outro olhar sobre Lucas 12,13-21 - 18º Domingo do Tempo Comum.

Os textos da Liturgia do 18º Domingo do Tempo Comum – Ano C  – nos convocam a uma profunda revisão de vida à luz da Palavra: Eclesiastes 1,2; 2,21-23; Salmo 89(90), com o refrão “Senhor, tendes sido o nosso refúgio através das gerações”; Colossenses 3,1-5.9-11; e o Evangelho de Lucas 12,13-21 também  proclamado  na 2ª-feira da 29ª semana do Tempo Comum do ano par,  sobre o qual já partilhamos uma reflexão anterior em 2022, disponível em nosso canal no YouTube em: 2020, 2022,  2024 e também neste blog. Trata-se de uma Palavra viva, atual, urgente e necessária, especialmente diante das seduções do mundo moderno e das espiritualidades domesticadas.

Desde o início, é preciso afirmar com clareza: Jesus não é socialista nem comunista — mas também está radicalmente distante do modelo neoliberal capitalista. Este mesmo sistema, lamentavelmente, tem sido defendido por certas lideranças religiosas que mercantilizam a fé e canonizam o acúmulo. O Evangelho deste domingo é uma denúncia contundente contra a idolatria da riqueza, a obsessão pelo lucro, o egoísmo travestido de meritocracia e a lógica do “meu celeiro, meus bens, minha alma”.

A narrativa começa com um pedido aparentemente justo: um homem solicita que Jesus intervenha na partilha de herança entre irmãos. No contexto patriarcal judaico, o primogênito costumava herdar a totalidade ou a maior parte dos bens do pai — como vemos no episódio entre Esaú e Jacó, onde a bênção é tomada por astúcia. Esse pano de fundo jurídico e cultural é essencial para compreendermos a provocação feita a Jesus. Contudo, em vez de assumir o papel de juiz ou legislador, Jesus recusa-se a validar o pedido. Ele percebe que o problema não é apenas jurídico, mas espiritual, ético e social. O coração daquele homem estava tomado pela cobiça.

A resposta de Jesus desmascara as engrenagens da ambição: “Acautelai-vos de todo tipo de ganância!” (Lc 12,15). A parábola do homem rico que constrói celeiros maiores para guardar suas colheitas — e que à noite perde a vida — nos recorda que a morte é o desmascaramento final de todas as ilusões de posse. Aquilo que se acumula com egoísmo não atravessa o túmulo. Como já dizia o Eclesiastes: “Vaidade das vaidades, tudo é vaidade” (Ecl 1,2). O suor e o esforço humano são desperdício quando não se traduzem em solidariedade, partilha e cuidado com o outro.

Hoje, como naquele tempo, há quem se ache no direito de herdar tudo — por tradição familiar, por título religioso, por posição social ou por falsa superioridade moral. Essa lógica excludente e concentradora é incompatível com o Reino de Deus, que é justiça, partilha e dignidade para todos — e não apenas para alguns. E mais: é escandaloso quando tal lógica é promovida por ministros religiosos que, em nome de uma “teologia da prosperidade”, espiritualizam o egoísmo e abençoam o acúmulo de bens. Esquecem-se de que Jesus se fez pobre, e de que seus discípulos foram chamados a partilhar tudo (cf. At 2,44-45).

Este Evangelho não condena o trabalho, o esforço, a previdência ou o cuidado com a casa e com os filhos. O que está em jogo é a motivação profunda: para quê e para quem se vive. Quem vive para acumular, acaba prisioneiro do que possui. Quem faz da riqueza o centro da existência, perde o verdadeiro sentido da vida. Por isso, Jesus conclui com a advertência: “Assim acontece com quem ajunta tesouros para si mesmo, mas não é rico diante de Deus” (Lc 12,21).

É tempo de rever nossos celeiros, nossas contas bancárias, nossos títulos, nossos muros, nossas estruturas religiosas. Nada disso nos salvará. A única herança verdadeira é o amor encarnado, a solidariedade concreta, a justiça realizada na vida dos mais pobres. Como recorda São Paulo em Colossenses, o ser humano novo se renova “segundo a imagem daquele que o criou”, e nesse novo modo de viver “Cristo é tudo em todos” (Cl 3,10-11).

O Papa Francisco denunciava essa “economia que mata” (Evangelii Gaudium, n. 53), conclamando a fé a ser fermento de transformação estrutural, denúncia da injustiça e promoção do bem comum. A liturgia que vira espetáculo e o clericalismo exibicionista são sinais de uma distorção profunda do mistério cristão — e só podem ser enfrentados com a radicalidade do Evangelho.

No Brasil, apesar da conquista histórica de sair do mapa mundial da fome, persistem fragilidades estruturais que denunciam a urgência de um compromisso permanente. Vivemos ainda os efeitos da guerra tarifária iniciada pelo governo Trump, que impôs barreiras comerciais e afetou profundamente setores agrícolas e industriais — expondo como o mercado global exacerba desigualdades e vulnerabilidades. Sair do mapa da fome foi apenas uma etapa: o combate à insegurança alimentar e à exclusão exige ação constante, crítica e solidária, como convoca o Evangelho. Hoje, com as longas filas no SUS e desigualdades gritantes, o Evangelho denuncia a religião cúmplice do capital e da opressão. Uma fé que se cala diante disso é uma fé morta, anestesiada e acomodada. O convite radical de Jesus é claro: ou vivemos para os celeiros do egoísmo, ou para o Reino, para a partilha e o amor. Que nossa escolha, hoje, seja alicerce da eternidade. Que, ao sermos chamados, não sejamos loucos, mas discípulos que escolheram os bens eternos à ilusão dos depósitos. Os profetas nos advertem: “Ai dos que ajuntam casa a casa…” (Is 5,8), e denunciam aqueles que “pisam os pobres e exploram os humildes” (Am 8,4-6), revelando a fome como instrumento de controle.

Neste cenário, a Doutrina Social da Igreja é uma bússola indispensável. Ela afirma que a propriedade privada, embora legítima, não é um direito absoluto: deve sempre servir ao bem comum e à dignidade humana, garantindo que ninguém fique sem o necessário (Laborem Exercens, n. 14; Centesimus Annus, n. 30; Populorum Progressio, n. 23-24). O Evangelho não absolutiza nem demoniza a posse, mas rompe com sistemas que promovem a concentração, o controle e a dominação, propondo comunhão, cuidado e fraternidade.

São Basílio Magno advertia: “O pão que tu guardas pertence ao faminto; o manto que tu escondes pertence ao que está nu”. São João Crisóstomo dizia, com veemência: “Não partilhar com os pobres é roubar deles”. A posse que não se abre é agressão à comunhão e negação do Corpo de Cristo presente nos pobres, pequenos e excluídos. Essa ética da partilha é a antítese da lógica do mercado, que se alimenta do medo, da ganância e da indiferença. Se, ao final desta parábola, ainda houver em nós a tentação de justificar a ganância em nome da tradição, da segurança ou até mesmo da fé, será preciso reconhecer: não foi Deus quem mudou — fomos nós que construímos um ídolo em seu lugar. Um ídolo que exige mais do que orações: exige a alma, exige o outro, exige o planeta. E diante desse ídolo, muitos dobram os joelhos sem perceber que perderam o Evangelho. A parábola de hoje não é uma fábula moral, mas um espelho escandaloso: nela vemos refletida a alma de um sistema que habita nossas casas, nossas igrejas, nossas consciências — e que legitima a desigualdade enquanto recita versículos.

Jesus não oferece àquele homem — e a nós — um parecer jurídico, mas uma libertação existencial. Não resolve sua questão de herança, mas revela o que verdadeiramente herdamos quando permitimos que o Reino de Deus nos converta: herdamos os pobres como irmãos, a criação como casa comum, a justiça como linguagem da fé, e o amor como única riqueza que não apodrece.

Ser rico diante de Deus é romper com a lógica da acumulação e abraçar a lógica do dom. É transformar celeiros em mesas, reservas em redes, muros em pontes. É confiar que, mesmo que esta noite nos seja pedida a alma, encontraremos no abraço do Pai a única herança que importa: ser reconhecido como filho — e não como proprietário.

E enquanto essa hora não chega, resta-nos viver o Evangelho com radicalidade e ternura, cuidando do que temos e partilhando o que somos. Porque o verdadeiro tesouro não está no que se possui, mas no que se doa. Não no que se ajunta, mas no que se semeia. E quem vive assim, mesmo que pobre aos olhos do mundo, é eternamente rico aos olhos de Deus (cf. Tg 2,5; Mt 6,19-21).

A parábola do rico insensato, portanto, não é apenas um alerta — é um convite urgente: convertei-vos da idolatria do acúmulo e deixai-vos conduzir pelo Evangelho da partilha. Pois só quem se esvazia de si mesmo pode ser cheio de Deus.

Se hoje ouvirmos essa Palavra e ainda estivermos agarrados ao mito do merecimento e à sedução do “meu”, “meu”, “meu”, então é porque ainda não entendemos o Cristo que nasceu num estábulo, não tinha onde reclinar a cabeça (cf. Lc 9,58) e morreu nu numa cruz. E se nosso cristianismo se contenta com rezas e ritos sem justiça, é sinal de que nos tornamos discípulos do mercado — não do Messias. Urge lembrar: o juízo final não será sobre o saldo bancário, mas sobre o amor concreto ao próximo (cf. Mt 25,31-46). O Evangelho é claro: quem acumula para si, empobrece o mundo; quem reparte com amor, enriquece o céu. Que não sejamos lembrados como insensatos que construíram celeiros e perderam a alma, mas como justos que construíram pontes e herdaram o Reino.

Quem é o senhor da sua vida:

 Jesus ou a ganância? 

Que celeiros constróis em teu coração? 

O Evangelho exige uma metanoia profunda — que transforme a alma e a sociedade, para que justiça, paz e fraternidade sejam realidade para todos. A verdadeira riqueza é comunhão com Deus e com o próximo, no serviço humilde e na generosidade. Assim, o Evangelho torna-se luz que rompe as trevas das ideologias idolátricas, bálsamo que cura as feridas da exclusão e chamado profético para um mundo novo — onde o bem comum supera a posse, a dignidade humana é inviolável, e o Reino de Deus se constrói com justiça, amor e solidariedade.

DNonato -Teólogo do Cotidiano 


domingo, 13 de julho de 2025

A Face Oculta do Brasil: Golpismo, Tarifaço e o Comunismo Inventado


A música “Brasil”, de Cazuza, lançada em 1988 no calor da redemocratização, não é apenas um grito artístico, mas um chamado profético que continua a ecoar com a mesma urgência nos dias de hoje. “Brasil, mostra tua cara / Quero ver quem paga pra gente ficar assim” — esse verso é uma denúncia direta contra uma elite que mantém o país em uma festa pobre, onde a miséria e a exclusão social são convidadas não admitidas. Um país que se sustenta no cinismo, no medo e na manipulação da fé para perpetuar privilégios.

Essa denúncia ganha maior sentido quando olhamos para o chamado “tarifaço” de Donald Trump, que, a partir de 1º de agosto de 2025, impõe uma tarifa de 50% sobre todos os produtos brasileiros exportados para os Estados Unidos. Essa medida, anunciada com a clara motivação de defender Jair Bolsonaro, acusado de tentativa de golpe, é uma ameaça direta à economia brasileira e à soberania nacional. Trump, em sua carta pública no X e em declarações recentes, deixou explícito que essa escalada tarifária serve para pressionar o governo Lula e proteger seus aliados políticos no Brasil.

O impacto econômico já é sentido na inflação dos preços básicos: a cesta básica aumentou em 15% nos últimos seis meses, o gás de cozinha subiu 25% e a energia elétrica 18%, elevando o custo de vida e aprofundando a pobreza das camadas mais vulneráveis. Esse “tarifaço” lembra o verso de Cazuza: “Brasil, mostra tua cara”. A cara que se mostra é a de um país vulnerável, exposto às chantagens internacionais e ao jogo político sujo que sacrifica a população para manter privilégios. É a face de um Brasil cuja economia depende da exportação, mas que é punido por sua resistência democrática. Enquanto isso, Bolsonaro e sua base celebram um patriotismo de fachada, incapaz de proteger o povo e que apenas reproduz o ciclo da exclusão e do sofrimento.

Essa mesma lógica do “nacionalismo” falacioso e protecionista foi importada para o Brasil pelo bolsonarismo, que com um discurso de “Brasil acima de tudo” promoveu um “tarifaço social” que atingiu brutalmente a população mais vulnerável: alta de preços no gás, na energia e nos alimentos, enquanto desmontava o Estado e entregava os setores estratégicos ao capital especulativo.

O bolsonarismo revelou-se uma aliança perversa entre o agronegócio predatório, milícias digitais, setores golpistas e lideranças religiosas fundamentalistas, que instrumentalizaram a fé para legitimar o autoritarismo e o ódio. Essa aliança não é um mero acidente: é o projeto consciente de uma teocracia autoritária, onde o moralismo hipócrita se transforma em ferramenta de dominação. O patriotismo, que deveria ser amor ao povo e à justiça, virou máscara para a necropolítica — política da morte que silencia diante da fome, da destruição da Amazônia e da violência contra os jovens negros e pobres. 

Aqui entra a crítica bíblica profunda, que denuncia a hipocrisia do falso culto: Isaías alerta com veemência que Deus não quer “jejum em que o homem se aflige, inclina a cabeça como junco e se deita sobre cilícios e cinzas” se não vier acompanhado da justiça social, da defesa dos oprimidos e da promoção do direito (Isaías 58). Amós condena os que “pisam os pobres no pó da terra” e “arruinam o destino dos humildes” enquanto entoam louvores vazios (Amós 5). Jesus confrontou duramente os fariseus, denunciando sua religiosidade hipócrita que “fecham o reino dos céus diante dos homens” e vivem a “explorar os indefesos” (Mateus 23). Essa tradição profética é a base para entender a rejeição da religião vazia e do moralismo instrumentalizado pelo bolsonarismo.

A tentativa explícita de golpe em 2022 escancarou o caráter golpista desse projeto. A existência comprovada da Abin paralela — um órgão clandestino usado para perseguir adversários políticos e manipular informações — demonstra o grau de aparelhamento e subversão institucional. Isso ocorreu com a cumplicidade de setores militares, empresariais e religiosos, que apoiaram a tentativa de destruir a democracia brasileira e impor um regime autoritário disfarçado de cristianismo. Mais recentemente, na primeira semana de julho de 2025, o ex-presidente dos Estados Unidos Donald Trump publicou uma carta em sua conta no X (antigo Twitter) em defesa explícita de Jair Bolsonaro, atacando o governo Lula e questionando sua legitimidade. Essa manifestação pública internacionaliza o golpismo brasileiro, revelando que o bolsonarismo não é um fenômeno isolado, mas parte de uma rede global de extrema-direita que busca minar democracias e impulsionar agendas autoritárias em vários países. Essa aliança internacional fortalece os setores que tentam manter Bolsonaro relevante e desestabilizar o Brasil democraticamente eleito.

É preciso esclarecer o que é o comunismo histórico e o que é o “comunismo da mente louca” vendido pela extrema direita. O comunismo real nasceu da crítica racional à exploração capitalista e propôs a construção de uma sociedade sem classes, fundamentada na justiça social. Apesar dos erros históricos de regimes autoritários, foi um projeto político concreto e teorizado. Já o comunismo da extrema direita é uma invenção delirante, que mistura qualquer forma de contestação ou luta por direitos com um inimigo imaginário. Basta discordar de Bolsonaro para ser tachado de comunista — como ocorreu com a Rede Globo, Sérgio Moro, Alexandre Frota e tantos outros.

Esse rótulo serve para criminalizar o pensamento crítico, sufocar o debate e justificar perseguições políticas. É o novo inquisidor digital e real, que ataca a educação pública, a ciência, a cultura e a solidariedade. É a versão tropical do fascismo, que usa a fé como arma para espalhar o ódio.

A festa pobre que Cazuza denunciou segue presente, mas agora institucionalizada como política de Estado. O bolsonarismo transformou o país em palco para um espetáculo de morte, intolerância e desinformação. A Constituição é rasgada, a democracia ameaçada, e a fé usada como cortina de fumaça.

A crítica ao clericalismo não pode ser esquecida. O bolsonarismo soube articular com setores religiosos — pastores, bispos e líderes — que instrumentalizaram a fé para vender prosperidade vazia, legitimar a violência e alimentar o ódio contra minorias. Essa religião de fachada desfigura o Evangelho libertador, traindo a missão profética de justiça e paz. 

Mas não há profecia sem esperança. O Evangelho nos chama a denunciar os falsos profetas, a enfrentar os poderes opressores e a anunciar a justiça do Reino de Deus. Como Jesus que confrontou os fariseus hipócritas, somos convocados a romper com as falsas religiões que legitimam a opressão.

A resistência existe e é plural: movimentos sociais, indígenas, jovens das periferias, artistas, intelectuais e tantas vozes que negam o silêncio e lutam por um Brasil livre. Eles são a verdadeira face do país que Cazuza desejava — um Brasil que conhece a verdade e, por isso, se liberta.

Não podemos esquecer que a liberdade e a democracia exigem luta diária. É tempo de resistência ativa, de engajamento na defesa dos direitos, da educação pública, da justiça social e da solidariedade. A fé autêntica se traduz em compromisso com a vida plena para todos.

Fechamos com as palavras fortes do presidente Lula, ditas em março de 2025 durante a inauguração do Hospital Universitário do Ceará:

“Esse país não tem dono. O dono do país é o povo brasileiro. E quanto melhor estiver o povo, melhor estará o Brasil.”

Que essa verdade nos inspire a continuar a luta contra o bolsonarismo, o fascismo e a religião vazia, em defesa de um Brasil justo, solidário e soberano.

DNonato – Teólogo do Cotidiano