segunda-feira, 8 de setembro de 2025

Um breve olhar sobre Lucas 6,12-19

O Evangelho proclamado  na Terça-feira da  23ª semana do Tempo Comum (Lucas 6,12-19) é uma passagem que também aparece em outras ocasiões da liturgia, sobretudo quando a Igreja celebra a memória dos santos apóstolos, pois trata diretamente da escolha dos Doze. Essa narrativa é ao mesmo tempo simples e grandiosa: Jesus passa a noite em oração, escolhe aqueles que, pelo nome, se tornarão testemunhas de sua vida e de sua obra, e desce da montanha para se encontrar com uma multidão de pessoas vindas de toda parte, que o escutam, buscam sua cura e experimentam a força que dele saía e que a todos curava. Não é apenas uma memória distante; é um acontecimento que fala à vida da Igreja em todos os tempos, porque nela se radica a origem da comunidade missionária e participativa que somos chamados a ser.

O primeiro elemento que chama atenção é que Jesus não age de modo precipitado nem isolado. Antes de tomar decisões, retira-se para rezar. Lucas sublinha com frequência essa dimensão orante de Jesus, mais até do que Marcos e Mateus. Aqui vemos que ele passa a noite inteira em oração a Deus (Lc 6,12). Isso remete imediatamente à necessidade de discernimento: a escolha dos Doze não é resultado de estratégia política, nem fruto de cálculos humanos, mas brota do diálogo profundo com o Pai. Nisso se manifesta uma chave hermenêutica fundamental: o Reino não é obra de indivíduos geniais nem de líderes carismáticos autossuficientes, mas nasce da obediência ao desígnio de Deus e se concretiza em comunidade. É importante notar que, em diversas passagens do Antigo Testamento, as grandes decisões são precedidas por escuta e oração: Samuel, ainda menino, aprende a responder “Fala, Senhor, teu servo escuta” (1Sm 3,10); Moisés permanece no Sinai em diálogo com Deus antes de guiar o povo (Ex 24,18). Jesus, novo Moisés, reatualiza e plenifica esse dinamismo: sobe ao monte não para receber tábuas de pedra, mas para se oferecer ao Pai e deixar-se conduzir por Ele.

Na tradição sinótica, encontramos paralelos que iluminam essa cena. Marcos 3,13-19 mostra Jesus subindo ao monte e chamando os que ele quis, instituindo doze para estarem com ele e para serem enviados a pregar e expulsar demônios. Mateus 10,1-4, por sua vez, enfatiza que lhes deu autoridade sobre espíritos impuros e sobre doenças, vinculando a missão diretamente à experiência do envio. Lucas, diferentemente, ressalta primeiro a oração de Jesus e depois o chamado pelo nome, destacando a dimensão da relação pessoal e comunitária. Há ainda um paralelo mais amplo com a experiência de Moisés no Sinai: ele sobe à montanha para estar diante de Deus, recebe as tábuas da Lei e desce para o povo. Jesus, novo Moisés, sobe para rezar, desce para chamar e formar um novo povo, sinal da nova aliança, não fundada em pedras, mas em pessoas concretas, frágeis e chamadas pelo nome.

Essa escolha pelo nome é significativa antropologicamente e biblicamente. O nome, na tradição semita, não é mero rótulo, mas identidade, vocação, missão. Chamar alguém pelo nome é reconhecer sua singularidade e dignidade. Isaías já havia proclamado em nome de Deus: “Eu te chamei pelo nome, tu és meu” (Is 43,1). O próprio Jesus revela em João 10,3 que o bom pastor “chama as suas ovelhas pelo nome”. O chamado pelo nome é também promessa de futuro, como no caso de Abraão, que recebe um novo nome como sinal de missão (Gn 17,5). Ao nomear Simão como Pedro, Jesus confere uma missão específica; ao escolher Judas, mesmo sabendo de sua traição futura, mostra que a graça de Deus passa também pelo mistério da liberdade humana. Isso revela que a comunidade não é formada por perfeitos, mas por homens concretos, com suas luzes e sombras, chamados a caminhar juntos. Davi, escolhido entre os filhos de Jessé, não era o mais forte nem o mais promissor segundo critérios humanos, mas Deus viu seu coração (1Sm 16,7). Assim também acontece com os apóstolos: a eleição não se baseia em currículos, mas em confiança divina.

Aqui emerge também uma crítica necessária às tendências individualistas de nossa época. Quantas vezes, em nossas pastorais e comunidades, repetimos a lógica da autossuficiência, acreditando que sozinhos podemos resolver tudo, e que os outros mais atrapalham do que ajudam. Essa mentalidade gera clericalismo, em que o padre se vê como dono da paróquia; gera pastoralismo individualista, em que líderes leigos concentram poder e não permitem participação; gera espiritualidades de mercado, em que pregadores digitais buscam likes e não comunhão. Jesus rompe essa lógica: ele poderia, de fato, ter realizado sua missão sozinho, mas escolhe o caminho da partilha e da comunhão. A Igreja é, por essência, sinodal, comunitária, participativa, como recorda o Vaticano II: “Aprouve a Deus salvar e santificar os homens não individualmente e separados de qualquer ligação, mas constituí-los em povo que O conhecesse em verdade e O servisse em santidade” (Lumen Gentium 9). O Papa Francisco retoma esse ensinamento em Evangelii Gaudium (n. 31), ao afirmar que não podemos reduzir a missão a uma elite clerical, mas é necessário abrir espaço para os leigos, para as mulheres, para todos os batizados corresponsáveis. E em Fratelli Tutti (n. 95-96), denuncia os fechamentos grupais e as falsas seguranças que nos impedem de construir fraternidade universal.

Do ponto de vista psicológico, podemos perceber aqui um ensinamento profundo. A tentação do perfeccionismo, da centralização e do controle absoluto nasce muitas vezes da insegurança e da incapacidade de confiar no outro. Projetamos nos outros nossas próprias sombras e acabamos excluindo-os em nome de uma pretensa eficiência. A escolha de Jesus desconstrói isso: ele confia em pessoas frágeis, forma um grupo heterogêneo, dá poder e envia. É um ato de confiança radical na ação do Espírito. Como diria Santo Agostinho, “Deus, que te criou sem ti, não te salvará sem ti” (Sermo 169). Ou seja, Deus nos chama a colaborar, mesmo sendo imperfeitos. Esse ensinamento tem também uma dimensão pedagógica: Jesus não escolhe pessoas prontas, mas acompanha, educa, corrige, forma ao longo do caminho. É um modelo de liderança servidora que confia no processo e não descarta quem falha.

Do ponto de vista sociológico, a escolha dos Doze tem um valor simbólico fundamental. O número doze remete às doze tribos de Israel, indicando que a comunidade de Jesus é o novo Israel, não substitutivo, mas plenitude da promessa. É um gesto de refundação da identidade do povo de Deus, agora aberto a todos os povos. O texto de Lucas mostra a multidão vinda não apenas da Judeia e de Jerusalém, mas também do litoral de Tiro e Sidônia, regiões estrangeiras. Já aí se insinua a dimensão universal da missão. O Reino não é propriedade de uma etnia ou de uma tradição religiosa fechada, mas dom de Deus para todos. Aqui também somos convidados a criticar toda forma de teologia do domínio que reduz o cristianismo a bandeira política de uma nação ou grupo ideológico. A Igreja não é partido nem milícia; é sacramento universal de salvação, sinal de unidade do gênero humano (Gaudium et Spes 42). Isso se torna ainda mais urgente quando assistimos à apropriação da fé por projetos de extrema-direita, que usam símbolos cristãos para legitimar exclusão, ódio e violência.

Quando Lucas afirma que “toda a multidão procurava tocar em Jesus, porque dele saía uma força que a todos curava” (Lc 6,19), encontramos um ponto de contato com a dimensão antropológica da fé. O ser humano busca cura, não apenas física, mas integral: deseja ser reconhecido, reintegrado, encontrar sentido e dignidade. O toque simboliza proximidade, confiança, vulnerabilidade. Em Marcos 5, vemos a hemorroíssa que toca o manto de Jesus e é curada. Em Mateus 14,36, muitos o tocavam e eram curados. O toque é linguagem de afeto e de fé. Em tempos de relações virtuais e de individualismos exacerbados, esse evangelho denuncia a falta de proximidade que corrói a vida comunitária e cria seres humanos isolados, presos em suas bolhas digitais. A cura de Jesus devolve pertença e identidade: quem estava excluído por doença, por possessão, por impureza, agora é reintegrado no povo de Deus.

A patrística percebeu essa dimensão com profundidade. Orígenes afirmava que a força que saía de Jesus era o próprio Logos, que curava não apenas corpos, mas também inteligências enfermas pela mentira e vontades adoecidas pelo pecado. São João Crisóstomo insistia que os apóstolos foram escolhidos não por seus méritos, mas para que ficasse claro que era Deus quem operava por meio deles. Essa leitura patrística reforça que a comunidade e a missão não são obras de homens geniais, mas da graça de Deus que age em vasos de barro (cf. 2Cor 4,7). Santo Irineu, por sua vez, via nos Doze um ícone da recapitulação: como Israel foi formado pelas doze tribos, assim a Igreja nasce dos Doze apóstolos para recapitular a humanidade inteira em Cristo.

A filosofia nos ajuda a compreender o alcance da escolha comunitária. Emmanuel Levinas diria que a verdadeira transcendência se manifesta no rosto do outro, que me interpela e me retira do meu egocentrismo. Jesus, ao escolher os Doze, abre um horizonte ético: não posso salvar-me sozinho, mas somente com e pelos outros. A modernidade individualista, marcada pelo “cogito ergo sum” cartesiano, precisa ser convertida para o “sou porque somos”, que ressoa tanto na filosofia africana do ubuntu quanto na antropologia bíblica. Dietrich Bonhoeffer, mártir do nazismo, lembrava que “a Igreja só é Igreja quando existe para os outros”, e isso ecoa o gesto de Jesus que chama colaboradores e desce para servir as multidões.

A sociologia, por sua vez, alerta para os perigos de transformar a fé em mercadoria. As igrejas da prosperidade vendem bênçãos, prometem sucesso financeiro e fazem da religião uma empresa. Isso perverte o sentido do evangelho, que não é comércio, mas dom gratuito. Paulo já advertia contra tais falsificadores da palavra (2Cor 2,17). A crítica de Jesus aos vendedores do templo permanece atual: quando a fé se torna mercado, perde-se a gratuidade e a comunhão. A religião espetáculo, feita de palcos, holofotes e slogans motivacionais, cria “apóstolos-influencers” que substituem a cruz por câmeras e curtidas. Em contrapartida, o evangelho de hoje mostra um Jesus que desce da montanha não para brilhar, mas para tocar feridas e curar. Não é palco, mas encontro; não é performance, mas proximidade.

A teologia do domínio, que transforma o cristianismo em projeto de poder político, também é denunciada pelo evangelho de hoje. Jesus escolhe discípulos para anunciar, curar e libertar, não para conquistar territórios ou impor leis. “Entre vós não deve ser assim: quem quiser ser o maior, seja aquele que serve” (Mc 10,43). A Igreja trai sua identidade quando se alia a regimes autoritários, quando busca privilégios em vez de serviço. A instrumentalização política da fé produz ídolos que não salvam, falsos messias que prometem segurança e estabilidade, mas geram violência e exclusão.

O clericalismo, por sua vez, é uma das mais graves doenças espirituais de nosso tempo. Quando o clero se fecha em si mesmo, quando se vê como elite separada do povo, trai o gesto de Jesus que chama pelo nome e forma uma comunidade de irmãos. O Papa Francisco tem insistido: “O clericalismo anula a personalidade dos cristãos, apaga a graça batismal que o Espírito Santo pôs no coração do nosso povo e destrói a força da comunhão” (Carta ao Povo de Deus, 2018). O evangelho de hoje pede uma Igreja de irmãos, não de castas. Não há espaço para donos de comunidades, mas para servidores que caminham juntos.

Por fim, é importante lembrar que essa passagem de Lucas é proclamada em momentos litúrgicos significativos: nas memórias dos apóstolos, quando celebramos a origem apostólica da Igreja; em certas festas marianas, pois Maria é a mãe da Igreja apostólica; e nesta terça-feira da 23ª semana, quando somos convidados a redescobrir a dimensão comunitária da missão. A liturgia, que é sempre atualização do mistério, nos convida a viver hoje a mesma experiência: colocar-nos em oração antes das decisões, reconhecer que somos chamados pelo nome, e descer da montanha para encontrar a multidão de homens e mulheres que têm sede de cura, de sentido e de vida plena. Aqui ecoa a missão narrada em Atos 1,8: “Recebereis a força do Espírito Santo… e sereis minhas testemunhas até os confins da terra”. A força que saía de Jesus continua saindo pela Igreja quando ela é fiel à oração, à comunhão e ao serviço.

Diante disso, somos chamados a ser testemunhas proféticas. Num mundo marcado pela política de resultados, pela idolatria do sucesso e pela mercantilização da fé, a Igreja deve ser sinal de gratuidade, comunhão e serviço. Num tempo de fragmentação e individualismo, deve ser escola de fraternidade. Num contexto de clericalismo e autoritarismo, deve ser espaço de participação e corresponsabilidade. Como lembrava São Romero da América, “a Igreja não pode ser neutra diante da injustiça: ou está ao lado dos pobres, ou está ao lado dos opressores”. A profecia consiste exatamente em denunciar as falsas seguranças e anunciar o Reino que não se impõe pela força, mas se oferece como dom.

Jesus não quis realizar sozinho a obra do Reino, mas chamou e continua chamando colaboradores. Não há discípulos sem comunidade, nem missão sem partilha. O evangelho de hoje é, portanto, um convite a deixarmos de ser adoradores de nós mesmos para nos tornarmos servidores de um Reino que é sempre maior do que nós. Somos convocados a ser Igreja que ora antes de decidir, que chama pelo nome, que confia nos pequenos, que desce para servir, que toca e deixa-se tocar, que cura e reintegra, que denuncia idolatrias e anuncia esperança. Só assim poderemos dizer, com os primeiros cristãos, que “o que vimos e ouvimos, isso vos anunciamos, para que estejais em comunhão conosco” (1Jo 1,3).



✍️ DNonato – Teólogo do Cotidiano


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