sexta-feira, 29 de agosto de 2025

Um breve olhar sobre Mateus 25, 14-30

 
O Evangelho de Mateus 25,14-30, proclamado no 21º sabado do Tempo Comum, ano  impares, e no domingo da 33ª semana do Tempo Comum no ano "A", situa-nos no cerne da escatologia cristã e na pedagogia cotidiana de Jesus. A liturgia que o coloca às portas da festa de Cristo Rei enfatiza o horizonte escatológico: somos chamados à vigilância e à responsabilidade sobre o que recebemos do Senhor. Já a leitura ferial, no sábado, insiste na aplicação prática: o Evangelho não se limita ao futuro distante, mas transforma o cotidiano, mostrando que cada instante da vida carrega a dimensão eterna. Como nos recorda a carta aos Hebreus, a Palavra de Deus é “viva e eficaz, mais cortante que qualquer espada de dois gumes” (Hb 4,12), capaz de discernir o íntimo de cada coração e de iluminar nossas escolhas diárias.

A parábola nos apresenta um homem que, ao partir em viagem, confia bens a servos, distribuindo-os “a cada um conforme sua capacidade” (Mt 25,15). A hermenêutica nos revela que não se trata apenas de valores econômicos, mas de dons existenciais, da missão confiada a cada ser humano. O talento, unidade monetária de altíssimo valor — cerca de 34 quilos de prata —, representava riqueza suficiente para sustentar uma família por anos. Jesus usa essa imagem econômica não para glorificar o capital, mas para subverter a lógica humana de acumulação: aquilo que Deus confia não deve ser enterrado, mas multiplicado em serviço, amor e generosidade. A interpretação reducionista, típica da teologia da prosperidade ou do domínio, transforma a parábola em elogio ao sucesso e à performance, reduzindo a graça a cálculo e retorno. Mas o Evangelho nos recorda que o talento simboliza tempo de vida, dom divino, Palavra do Reino, confiança de Deus; a sua multiplicação é fidelidade criativa, engajamento concreto na história da salvação.

Mateus 25,14-30 insere-se no discurso escatológico (Mt 24–25), evidenciando que a fidelidade no presente prepara o encontro final com o Senhor. A distribuição dos talentos remete a figuras do Antigo Testamento, como Noé, que, advertido sobre a inundação, precisou agir no presente (Gn 6–9; cf. Mt 24,37-39). Enterrar o talento é viver alienado, fechado, indiferente ao chamado divino. O tempo de espera é também lembrança das dez virgens (Mt 25,1-13): não basta a vigilância passiva; é necessário produzir frutos concretos. A parábola encontra paralelo ainda na narrativa dos trabalhadores da vinha (Mt 20,1-16), em que operários chamados em horários distintos recebem a mesma recompensa, subvertendo a lógica meritocrática: não é a quantidade de dons recebidos que importa, mas a fidelidade e generosidade no uso deles. O talento multiplicado, portanto, não é questão de acumulação, mas de entrega responsável. Deus distribui dons diversos, mas oferece a todos a mesma vida em plenitude. Psicologicamente, as parábolas denunciam como medo, inveja e comodismo podem bloquear a criatividade; sociologicamente, criticam a meritocracia e o individualismo; teologicamente, recordam que a fidelidade ao dom supera toda contabilidade humana. Santo Agostinho afirma: “a glória de Deus é o ser humano vivo” (Adversus Haereses IV,20,7), lembrando que a vida se realiza quando os talentos se multiplicam em gestos concretos de serviço e partilha.

O servo que enterra o talento revela uma fé marcada pelo medo. A realidade existencial mostra que o temor paralisa a ação, gera procrastinação e projeta a culpa nos outros. Ele acusa o Senhor de severidade, quando, na verdade, sua própria insegurança o paralisou. O medo espiritual é uma das maiores tentações, levando-nos a enterrar dons e a desconfiar da misericórdia divina. Irineu de Lião já dizia: “a glória de Deus é o ser humano vivo”, destacando que Deus deseja ousadia, criatividade e entrega. A não-ação é escolha e condenação silenciosa ao vazio. O Evangelho não exalta o lucro econômico; denuncia a esterilidade da vida autocentrada. Enterrar talentos é fechar-se à graça, impedir a vida de florescer. A parábola, portanto, é convite à ousadia, à multiplicação de dons, à transformação do mundo pelo serviço, pelo amor e pela fé ativa.

A parábola denuncia leituras que a transformaram em legitimação do capitalismo. Jesus não louva grandes investidores; denuncia os servos que não se implicam na construção do Reino. O Concílio Vaticano II enfatiza que “a ordem social e seu progresso devem subordinar-se ao bem da pessoa, pois a ordem das coisas deve estar subordinada à ordem das pessoas e não o contrário” (Gaudium et Spes, n. 26). Reduzir o talento a capital financeiro trai o Evangelho. O que Deus julga é a fidelidade ao dom recebido, não a quantidade acumulada. Multiplicar talentos é multiplicar justiça, partilha e solidariedade, resistindo à indiferença e à omissão, não exaltando o sucesso humano. A teologia da prosperidade, a lógica do domínio, o individualismo e a fé como mercadoria são frontalmente confrontados: a fé verdadeira se traduz em serviço, entrega e comunhão, nunca em cálculo de retorno.

A crítica ao clericalismo emerge com força. Quantos dons e carismas são enterrados pelo medo de perder poder ou pelo controle centralizado de estruturas eclesiais? O servo infiel revela uma Igreja que sufoca os leigos, desconfia das mulheres e monopoliza os carismas comunitários. O Papa Francisco adverte que “o clericalismo anula a personalidade dos cristãos, destrói a iniciativa e mata a coragem” (Discurso aos leigos da Ação Católica, 27/4/2017). O talento enterrado é criatividade contida; o talento multiplicado é a Igreja que ousa, doa-se, produz frutos concretos na história da salvação.

A patrística interpreta a parábola em chave escatológica. São João Crisóstomo via nos talentos a palavra de Deus e a graça, alertando para a necessidade de frutificar, de não permitir que a pregação se perca. Santo Agostinho aponta o servo preguiçoso como imagem daqueles que, por medo ou comodismo, calam-se diante da missão de evangelizar. Enterrar talentos é esconder a Palavra, silenciar o Evangelho. Multiplicar talentos é assumir protagonismo, sem desculpas, sem medo, com entrega total à missão de Deus. Irineu reforça: “a glória de Deus é o ser humano vivo”, indicando que a fidelidade se manifesta na ousadia criativa de viver e agir em comunhão, sendo agentes do Reino.

A parábola também revela que a liberdade humana e o sentido da existência. O talento é a vida confiada; a vida só se realiza quando se entrega. Heidegger fala do “ser-para-a-morte”, mas o Evangelho nos mostra o “ser-para-o-dom”: a existência se completa na entrega, não na preservação. O talento enterrado é vida não vivida; o talento multiplicado é vida aberta, fecunda e arriscada. A filosofia da esperança, em Ernst Bloch, ecoa aqui: o futuro se transforma quando nos engajamos, apostando na ação responsável. Esperar passivamente é morrer antes da hora; agir é transformar o mundo pelo amor e pela fidelidade.

Mateus 25,14-30 encontra ecos nos sinóticos. Lucas apresenta parábolas semelhantes sobre o uso fiel do que é confiado (Lc 19,11-27) e sobre a administração das riquezas para o Reino (Lc 16,1-13), mostrando que a lógica divina subverte a humana: não importa o tamanho do talento, mas a fidelidade ao que se recebeu. Marcos, embora menos detalhista, reforça a vigilância e a diligência (Mc 13,34-37), indicando que a fidelidade cotidiana molda o destino eterno. O paralelo com os trabalhadores chamados em horários diversos (Mt 20,1-16) lembra que não se mede generosidade ou fidelidade pelo tamanho do dom, mas pela resposta amorosa e responsável ao chamado.

A parábola questiona o individualismo e a meritocracia: não se trata de medir sucesso ou prestígio, mas de transformar dons em frutos para a comunidade. A fé não é mercadoria; é serviço, entrega e multiplicação do bem comum. Cada talento multiplicado é testemunho de justiça, solidariedade e criatividade da graça, resistindo à lógica do poder e da acumulação.

Sabemos que o talento, equivalente a 34 quilos de prata, representava riqueza considerável; porém, Jesus desloca o foco da economia para a ética e a responsabilidade moral. A antropologia confirma: o ser humano é chamado a corresponder ao dom recebido, viver em comunidade e agir com coragem. Psicologia e filosofia convergem aqui: superar medo e passividade é condição para realização pessoal e comunitária. A parábola é, portanto, pedagogia integral: viver de forma responsável, ativa e frutífera é a resposta ao chamado divino.

Esse  evangelho  nos recorda que a cada um de nós o Senhor confiou talentos, dons e virtudes que se multiplicam na medida em que os colocamos a serviço da comunidade. O Senhor rico é Jesus, que nos deixou seus bens — ensinamentos, Palavra, graça — para que façamos deles sementes de transformação. O tempo de espera é nossa vida no mundo; cada gesto de fidelidade, cada ato de serviço, cada multiplicação do talento é um passo na construção do Reino. No dia final, seremos chamados a prestar contas, não pela quantidade, mas pela fidelidade, coragem e amor com que usamos o dom recebido. Pouco ou muito, tudo que se doa pelo bem do próximo se multiplica e ecoa na eternidade.

A vida, como nos ensina a parábola, é oportunidade de ousar, servir, multiplicar e amar, até que o Senhor volte e nos receba como servos bons e fiéis, multiplicadores de Sua graça. Cada talento transformado em ação concreta é testemunho de uma fé que se encarna, se entrega e se arrisca, construindo justiça, comunhão e esperança. O Evangelho nos desafia: não é a quantidade que mede a fidelidade, mas a generosidade com que acolhemos a graça, a coragem de agir com amor e a ousadia de viver cada dia como multiplicadores dos dons recebidos. Que sejamos servos bons e fiéis, que não enterrem talentos, mas façam da vida um contínuo dom para Deus e para a humanidade, manifestando na prática o Reino que já começou e que um dia se consumará em plenitude.

DNonato - Teólogo do Cotidiano 




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