Nos paralelos sinóticos, Mateus 14,1-12 reforça a mesma tensão, acentuando a figura de Herodíades como motor da intriga, enquanto Lucas 9,7-9 mostra Herodes intrigado com Jesus, confundindo-o com João Batista ressuscitado ou com Elias. Essa confusão não é casual, mas indica que a voz profética não se cala mesmo quando silenciada pela violência: “a palavra de Deus não está acorrentada” (2Tm 2,9). O destino de João antecipa o de Jesus, que também será entregue por covardia política e pressão social. O evangelista Marcos, ao narrar a morte de João em meio a um banquete de aparências, prepara o leitor para compreender que a cruz de Cristo é a resposta ao sistema de morte que devora os profetas.
A tradição bíblica nos mostra que João Batista é o último elo de uma corrente profética que atravessa o Antigo Testamento. O paralelo com Elias é explícito: em 2 Reis 1,8, Elias é descrito como “um homem vestido de pelos, com um cinto de couro em torno dos rins”, descrição que Marcos retoma em 1,6 para apresentar João. Jesus mesmo reconhece essa identidade simbólica: “Elias já veio, e fizeram com ele tudo o que quiseram, como está escrito a seu respeito” (Mc 9,13). Elias enfrentou Acab e Jezabel denunciando a idolatria e a injustiça social, e João enfrenta Herodes e Herodíades denunciando o adultério e a corrupção do poder. Ambos representam a fidelidade a Deus em meio à perseguição, ambos incomodam o poder estabelecido, ambos são sinais de que o Espírito de Deus não se curva diante das estruturas humanas. A antropologia religiosa mostra como as figuras proféticas encarnam a alteridade radical, sendo estranhas ao sistema porque denunciam suas contradições. A psicologia das massas também ajuda a compreender como líderes frágeis como Herodes, para manter o favor social, se deixam levar por manipulações, ainda que em seu íntimo reconheçam a verdade do profeta.
O episódio do martírio de João tem também uma profunda dimensão sociológica: mostra a tensão entre poder político e religioso, entre a busca de prestígio e a verdade. Herodes, representante de um poder dependente de Roma, é retratado como um governante sem autonomia, frágil, escravo das aparências. A execução de João, realizada para satisfazer um pedido num banquete, demonstra como as estruturas políticas, sociais e religiosas podem transformar a vida humana em moeda de troca. É nesse sentido que a crítica à teologia da prosperidade, do domínio e do individualismo se torna necessária: elas reproduzem, no campo religioso, a mesma lógica que Herodes encarnava — usar a fé como instrumento de autopromoção, manipulação e poder, em vez de como caminho de libertação.
O magistério da Igreja tem sido firme na denúncia dessas distorções. A Evangelii Gaudium (n. 55) recorda que a idolatria do dinheiro e do poder cria uma “economia da exclusão” que sacrifica vidas humanas, exatamente como no banquete de Herodes. A Gaudium et Spes (n. 27) afirma que “tudo quanto atenta contra a vida, como o homicídio, o genocídio, o aborto, a eutanásia, bem como qualquer violação da dignidade humana, desonra profundamente o Criador”. João foi morto por se opor a um sistema de morte que reduzia a vida a capricho de conveniência. Hoje, a teologia da prosperidade e do domínio faz algo semelhante ao pregar que vidas valem pelo sucesso ou pelo poder que conquistam, esquecendo a lógica da cruz e da solidariedade.
Os Padres da Igreja também se detiveram neste episódio. Orígenes via no martírio de João um sinal de que a verdade não pode ser aprisionada pelos homens, ainda que a voz profética seja calada fisicamente. Santo Agostinho, em seus sermões, lembrava que João não apenas anunciou Cristo, mas seguiu o mesmo caminho de perseguição, tornando-se modelo para os discípulos de todos os tempos. A patrística, nesse sentido, interpreta a morte do Batista como antecipação da Páscoa de Jesus, porque revela que a verdade provoca perseguição e que a justiça exige coragem até o extremo testemunho.
Do ponto de vista filosófico, a cena questiona a ética do poder. Herodes é o retrato do homem dividido, dilacerado entre a consciência do justo e a pressão social, entre a verdade interior e o desejo de agradar. Hannah Arendt diria que sua covardia é expressão da banalidade do mal: não foi por convicção, mas por fraqueza, que mandou matar. A psicologia social revela como a necessidade de aprovação pode gerar cumplicidade com a injustiça. Esse retrato ecoa em nossos dias, quando governantes e líderes religiosos se deixam levar por conveniências, silenciam diante da corrupção ou sacrificam a vida dos pobres em nome de alianças políticas.
A crítica ao clericalismo também se impõe. Se Herodes representa a política corrompida, Herodíades encarna a manipulação, e a corte simboliza o círculo de bajuladores, hoje vemos setores eclesiais que se comportam de maneira semelhante, alimentando a vaidade, buscando aplausos e perseguindo profetas que denunciam os escândalos de poder e abuso dentro da própria Igreja. A Fratelli Tutti (n. 115) nos adverte contra as formas de fechamento e de idolatria do poder que destroem a fraternidade. João, por sua vez, nos convida a permanecer na verdade sem medo, mesmo que isso custe a perseguição.
A história confirma que a lógica do martírio acompanha todos os que ousam denunciar as injustiças. Desde Elias até João, de Jesus até os mártires da Igreja primitiva, de Santo Oscar Romero até tantas vítimas de regimes autoritários, a verdade exige sangue. A antropologia da religião mostra como o martírio se torna um “memorial perigoso”, no sentido de que recorda sempre a tensão entre o poder e a verdade, entre o Reino de Deus e os reinos humanos. A Igreja, ao celebrar o martírio de João Batista, não exalta a violência sofrida, mas proclama que a última palavra pertence à fidelidade de Deus e não ao poder dos homens.
Por isso, celebrar João Batista é pedir coragem profética em nosso tempo. É reconhecer que a verdade não pode ser negociada, que a justiça não pode ser relativizada, que a fé não é mercadoria nem espetáculo. É assumir, como discípulos de Cristo, que a perseguição não é sinal de fracasso, mas de fidelidade. É fazer ecoar nas ruas de hoje a mesma voz que clamava no deserto: “Preparai o caminho do Senhor” (Mc 1,3). Assim como Elias enfrentou Jezabel, assim como João enfrentou Herodíades, assim como Jesus enfrentou Pilatos e o Sinédrio, somos chamados a enfrentar as estruturas de injustiça e de mentira, ainda que isso custe nossa tranquilidade e nossa vida.
O martírio de João Batista permanece um espelho profético para nossa geração. Ele nos recorda que o Reino de Deus não se constrói com banquetes de vaidade, mas com a entrega generosa da vida. Ele nos desafia a não sermos Herodes, covardes diante da verdade, nem Herodíades, manipuladores por interesse, nem convidados de banquete, indiferentes à injustiça. Ele nos chama a ser discípulos que permanecem fiéis até o fim, porque “felizes os que são perseguidos por causa da justiça, porque deles é o Reino dos Céus” (Mt 5,10)
DNonato - Teólogo do Cotidiano
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