A liturgia constantemente coloca Romanos como leitura. Seja no Sábado Santo, quando proclamamos a vitória pascal em Romanos 6, seja no Pentecostes, quando o Espírito aparece em Romanos 8, ou em tantos domingos do Tempo Comum, a carta nos fala da vida no Espírito, da justificação pela fé, da esperança que não decepciona. Ela é alimento permanente, não apenas reflexão; é vida celebrada. Nas bodas, Romanos 12 recorda que o amor deve ser sincero; nas exéquias, Romanos 8 proclama que nada pode nos separar do amor de Deus; na Vigília Pascal, Romanos 6 nos mergulha no batismo que é morte e ressurreição.
Sabemos que Carta aos Romanos ocupa um lugar singular no cânon bíblico e na vida da Igreja. Não é apenas o escrito mais longo de Paulo, mas também aquele em que o apóstolo expõe de modo mais sistemático a densidade de sua teologia. É como se reunisse, em uma só obra, a síntese de sua experiência missionária, espiritual e intelectual.
Foi escrita provavelmente em Corinto por volta do ano 57 d.C., Paulo se dirige a uma comunidade que ainda não conhecia pessoalmente, composta por cristãos vindos do judaísmo e do mundo gentílico. Essa comunidade nascente atravessava tensões com raízes históricas e políticas: o édito do imperador Cláudio, em 49, havia expulsado os judeus de Roma; somente após sua morte, em 54, eles puderam regressar. Ao voltar, encontraram comunidades cristãs já lideradas por convertidos de origem pagã. O retorno gerou conflitos sobre identidade, costumes, observância da Lei mosaica e a centralidade de Cristo.
Paulo escreve, portanto, em um contexto marcado por feridas sociais e eclesiais, onde a fé precisava ser compreendida como dom universal de Deus, e não como privilégio de um grupo. Esse pretexto histórico revela uma carta que, embora profundamente teológica, é também pastoral e política. Paulo busca unificar uma comunidade fragmentada, lembrando que a justiça de Deus não é herança étnica, mas graça derramada sobre todos.
A motivação mais imediata de Paulo é dupla: preparar sua viagem a Roma, ponto de apoio para a missão à Espanha, e apresentar sua visão do Evangelho a uma comunidade que não o conhecia, conquistando sua confiança e comunhão. A carta funciona como um testamento antecipado, um compêndio que resume o coração do Evangelho. Paulo não escreve como acadêmico isolado em biblioteca, mas como alguém profundamente marcado por encontros e embates. Sua linguagem é ardente, cheia de retórica, perguntas, exclamações e diálogos imaginários. É o grito de quem experimentou na própria carne a força da graça que derruba muralhas e reconfigura a história.
Do ponto de vista exegético, Romanos apresenta uma estrutura percebida em blocos: Paulo introduz sua tese (1,16-17), afirmando que “o Evangelho é poder de Deus para todo aquele que crê, judeu ou grego”. Em seguida, demonstra a universalidade do pecado (1,18–3,20), denunciando tanto a idolatria dos gentios quanto a presunção dos judeus. Depois, anuncia a justificação pela fé como dom gratuito (3,21–5,21), fazendo de Abraão o exemplo daquele que acreditou contra toda esperança (4,18).
Em um segundo movimento, Paulo mostra as consequências da justificação: somos libertos do pecado e da morte (6–8), mas ainda vivemos entre gemidos e dores, aguardando a plenitude da redenção. Nos capítulos 9 a 11, reflete sobre o mistério de Israel, reconhecendo a eleição irrevogável, mas também a abertura aos gentios. Por fim, nos capítulos 12 a 15, traduz sua teologia em ética concreta, pedindo que a comunidade não se conforme com este mundo, mas se transforme pela renovação da mente. O capítulo 16 é a saudação final, em que a teologia se faz carne em nomes, rostos, amizades e serviços.
Sob a lente da hermenêutica contemporânea, Romanos não fala apenas de doutrinas abstratas, mas toca as feridas mais profundas da condição humana. Paulo descreve, em Romanos 7, o drama de todo ser humano: “Não faço o bem que quero, mas o mal que não quero, esse faço” (Rm 7,19). Essa tensão entre desejo e realidade, entre vocação e fracasso, não é apenas religiosa, mas antropológica. Freud diria que o inconsciente nos trai; Ricoeur falaria da hermenêutica da suspeita; Hannah Arendt lembraria da banalidade do mal que se infiltra nas estruturas sociais.
Paulo, porém, não se detém no diagnóstico: aponta para Cristo, que rompe o ciclo e inaugura nova liberdade. A luta interior do ser humano conecta-se à luta social. Se o pecado escraviza, o faz individualmente e estruturalmente. A escravidão antiga encontra eco hoje na precarização do trabalho, na exploração que corrói vidas em nome do lucro, no racismo que perpetua exclusões. Quando Romanos afirma que “o salário do pecado é a morte”, denuncia também os salários injustos do nosso tempo.
O paralelo entre a justiça de Deus e a justiça imperial é central. O Império Romano sustentava-se na pax romana, paz imposta pela violência das legiões. Paulo contrapõe a essa paz falsa a verdadeira justiça, que vem de Deus, não como repressão, mas como reconciliação. Ao dizer “não há judeu nem grego, nem escravo nem livre”, mina as bases de um sistema de desigualdade. Hoje, nossas idolatrias são outras, mas igualmente perversas: o mercado absolutizado, a política autoritária travestida de messianismo, a religião transformada em espetáculo, os algoritmos que moldam consciências. Quando Paulo diz “não vos conformeis com este mundo”, soa como grito para nós: não nos conformemos com a manipulação digital, com a banalização da verdade, com a indiferença social que torna pobres descartáveis.
A Carta aos Romanos possui uma dimensão política e ideológica profunda, que vai muito além de uma reflexão espiritual individual. Ao afirmar que “não há judeu nem grego, nem escravo nem livre”, Paulo desafia as estruturas de poder do Império Romano, um sistema que sustentava privilégios, segregações e desigualdades por meio da força militar, da cidadania hierarquizada e da imposição de leis sociais. Essa declaração não é apenas um conceito teológico abstrato, mas uma crítica à lógica de exclusão que organiza sociedades: ela subverte privilégios históricos e econômicos e coloca em diálogo a fé com a justiça social. Ideologicamente, Paulo confronta a naturalização das hierarquias, mostrando que qualquer tentativa de justificar a dominação como “ordem natural” ou “desígnio divino” é incompatível com o Evangelho. Sua teologia transforma a justiça de Deus em projeto comunitário e político, que exige reconciliação, solidariedade e cuidado com os mais vulneráveis. Essa leitura de Romanos nos convoca hoje a questionar não apenas governos autoritários ou estruturas econômicas exploratórias, mas também ideologias que naturalizam a exclusão — o racismo, a concentração de riqueza, a marginalização de minorias, a manipulação de massas por discursos de ódio ou promessas falsas de prosperidade. Em um mundo marcado por polarizações e desigualdades, Paulo nos desafia a viver uma fé que não se conforma, que denuncia a idolatria do poder e do lucro, e que, por meio da fraternidade e do compromisso ético, constrói pontes de justiça e liberdade em meio a sistemas que ainda buscam manter muros de separação.
A leitura de Romanos também nos desafia a criticar ideologias contemporâneas que se apresentam como moralmente legítimas, mas que, na prática, reproduzem exclusão e violência. A extrema-direita, em suas múltiplas formas, busca justificar privilégios de grupos específicos, transforma medo em controle social e promove a idolatria do poder, da ordem e do lucro em detrimento da dignidade humana. Paulo, ao proclamar que “não há judeu nem grego, nem escravo nem livre”, nos lembra que qualquer política ou discurso que segregue, oprima ou instrumentalize pessoas para fortalecer elites é incompatível com a justiça de Deus. Essa crítica não é apenas teórica: é profética. Denuncia manipulação de consciências, autoritarismo travestido de moralidade, e a tentação de reduzir o Evangelho a instrumento de poder ou espetáculo. Romanos nos convida a resistir a esses discursos, a promover fraternidade e justiça, e a lembrar que a fé que não transforma a sociedade corre o risco de se tornar vazia e alienante.
Não apenas a tradição católica se alimentou da Carta aos Romanos. Igrejas evangélicas também a tomaram como fundamento de pregação e espiritualidade. A ênfase de Paulo na justificação pela fé (Rm 3,28) foi central para a Reforma Protestante, tornando-se o eixo hermenêutico de Lutero em sua crítica às indulgências. Mas há risco de reduzi-la a discurso individualista, sem consequências sociais. A fé justifica, mas a justiça que brota dela é sempre comunitária, reconciliadora e transformadora, como insiste Paulo ao falar da unidade entre judeus e gentios e da prática concreta do amor como cumprimento da lei (Rm 13,10).
A leitura patrística reforça essa visão. Santo Agostinho encontra em Romanos 13,13-14 o chamado à conversão: “Revesti-vos do Senhor Jesus Cristo”. Lutero redescobre a justificação pela fé, mas o Concílio de Trento afirma a cooperação entre graça e liberdade. Hoje, o Magistério, da Dei Verbum à Evangelii Gaudium, recorda que a Palavra é viva e eficaz, que a fé liberta para a missão, e que o Evangelho deve ser anunciado não como peso, mas como alegria que transforma. A Gaudium et Spes denuncia estruturas que oprimem; a Fratelli Tutti recorda a fraternidade universal. Romanos é alicerce desses ensinamentos: a justiça que vem de Deus cria pontes, não muros.
Do ponto de vista antropológico, Romanos lê a humanidade como um todo: todos pecaram e carecem da glória de Deus. A universalidade do pecado não esmaga, mas revela a universalidade da graça. O ser humano, em busca de sentido, absolutiza ídolos: na Antiguidade, de pedra; hoje, digitais, ideológicos, mercadológicos. Abraão nos lembra que a fé é confiança radical, rompendo a lógica do cálculo. Em um mundo guiado por estatísticas e algoritmos, Romanos é escândalo: o futuro não é previsível, mas aberto à promessa.
A carta culmina em visão cósmica. A criação geme em dores de parto, aguardando a manifestação dos filhos de Deus (Rm 8,22). Aqui, ecologia, teologia e antropologia se entrelaçam. A terra sofre porque foi submetida à vaidade — hoje lemos isso na devastação ambiental, na crise climática, na exploração desenfreada. O gemido da criação une-se ao clamor dos pobres. Paulo vê a esperança como aquilo que ainda não vemos, mas aguardamos com perseverança. Romanos nos convida a esperar contra toda esperança, pois a promessa de Deus é maior que qualquer cálculo humano.A carta termina em nomes, rostos e histórias. Paulo saúda Priscila e Áquila, Junia, Andrônico, Maria e tantos outros. A teologia se encarna em carne e sangue, em comunidades concretas que resistem e esperam. Já mirando a Espanha, Paulo nos lembra que a missão é sempre para além, nunca se encerra em si mesma.
Assim, a Carta aos Romanos permanece como sopro profético. Denuncia idolatrias de ontem e de hoje. Revela a condição humana ferida. Anuncia graça gratuita. Conclama à fraternidade universal. Envia em missão. A justiça de Deus, revelada em Cristo, não é abstração, mas poder que reconcilia e transforma. Quando a liturgia a proclama, é como se Paulo falasse outra vez: o Evangelho é poder de Deus para todo aquele que crê. Um poder humilde, paradoxal, da cruz, que faz nascer uma humanidade nova.
✍️ DNonato – Teólogo do Cotidiano



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