segunda-feira, 1 de setembro de 2025

A Salve Rainha

 

Em nossa caminhada  construímos três textos que recomendando  a leitura   o texto  sobre os dogmas que foi provocador do texto Credo Niceno-Constantinopolitano   e  o símbolo dos Apóstolos depois ou antes  de ler sobre a Salve Rainha

A oração Salve Rainha é um grito que atravessa séculos e culturas, nascido do coração humano que se sabe pequeno diante da imensidão da vida, mas não se resigna ao desespero. Sua origem medieval, atribuída ao monge Hermann de Reichenau no século XI, já revela muito: ela brota da fragilidade de um corpo enfermo e de uma época marcada por pestes, guerras e instabilidade. Porém, mais do que expressão de um tempo, sua essência é universal: traduz a condição humana em todos os séculos, de peregrinos que caminham por um vale de lágrimas, mas que ousam clamar por consolo e esperança. Por isso ecoou nos mosteiros beneditinos, nas catedrais góticas, nos caminhos coloniais da América Latina, nos terços rezados em cozinhas humildes, em funerais e vigílias de resistência popular: sempre como clamor coletivo que se levanta das entranhas da vida.

“Salve, Rainha, Mãe de Misericórdia, vida, doçura e esperança nossa, salve!”

Esse início é saudação e clamor, como o “Hosana ao Filho de Davi!” (Mt 21,9), quando o povo recebe Jesus em Jerusalém. Não se trata de triunfo de poder, mas de ternura. Chamar Maria de Rainha não é colocá-la nos moldes dos reis que Jesus criticou por dominarem como senhores (Mc 10,42-45), mas reconhecê-la como Rainha do serviço e da compaixão. Sua coroa é o Magnificat (Lc 1,46-55), onde proclama a queda dos poderosos e a exaltação dos humildes. A patrística já intuía isso: Santo Irineu via em Maria a “causa de salvação para todo o gênero humano”, e Santo Bernardo de Claraval, ao difundir esta oração, fazia dela a voz de uma humanidade frágil que encontra na misericórdia materna o sinal da esperança.

“A vós bradamos, os degredados filhos de Eva”

Aqui ecoa o exílio babilônico: “Às margens dos rios de Babilônia, sentávamos e chorávamos, lembrando-nos de Sião” (Sl 137,1). É o grito de um povo desterrado de sua plenitude, que se sabe peregrino. Esse brado é universal, porque cada ser humano experimenta o exílio interior da limitação e da morte. É também coletivo: não rezamos como indivíduos isolados, mas como filhos e filhas de Eva, unidos pela condição comum de fragilidade. Psicologicamente, esse brado exprime a consciência da falta e a abertura ao outro; sociologicamente, é a voz dos pobres, migrantes, favelados, refugiados. Teologicamente, é confissão de que não somos autossuficientes. Contra o individualismo religioso, que privatiza a fé, aqui a oração afirma: ninguém se salva sozinho.

“A vós suspiramos, gemendo e chorando neste vale de lágrimas”

O vale de lágrimas não é metáfora ultrapassada: é o mundo real, das mães que choram filhos assassinados, dos povos indígenas ameaçados, dos migrantes afogados, dos trabalhadores explorados. O gemido humano é também o gemido cósmico: “a criação inteira geme em dores de parto” (Rm 8,22). Jesus se compadece das multidões cansadas e abatidas (Mt 9,36), e ali se insere nossa súplica. A antropologia reconhece aqui o símbolo universal da dor; a psicologia, a necessidade de elaborar o luto; a sociologia, a denúncia das estruturas injustas. Contra a teologia da prosperidade, que nega a dor, a Salve Rainha confessa que a vida passa pela cruz, mas não sem horizonte. Contra a fé-mercadoria, que promete soluções instantâneas, ela proclama que a esperança se constrói no meio da noite, com lágrimas e perseverança.

“Eia, pois, advogada nossa, esses vossos olhos misericordiosos a nós volvei”

Pedir o olhar de Maria é desejar o olhar de Cristo. É pedir aprender a ver como ela, com olhos que se detêm na dor e a transformam em cuidado. “Ao vê-la, o Senhor teve compaixão dela” (Lc 7,13), diz o evangelho sobre a viúva de Naim. Santo Efrém chamava Maria de “olho puro que contempla o invisível”. A Igreja a chama de intercessora não porque substitui o Filho, mas porque ensina a olhar como Ele. A Evangelii Gaudium a proclama “Mãe da Igreja evangelizadora” (EG 288). Contra o clericalismo, que olha com controle, a oração nos recorda: o olhar de Maria é ternura e libertação, não vigilância.

“E depois deste desterro, mostrai-nos Jesus, bendito fruto do vosso ventre”

Aqui a súplica se abre para o horizonte escatológico: não fuga da história, mas esperança no fim dela. Como os discípulos de Emaús suplicam “Fica conosco, Senhor” (Lc 24,29), também nós pedimos contemplar Jesus como fruto da história humana. É o Cristo dos pobres, não o falso messias dos projetos de poder. A oração critica, portanto, a teologia do domínio e os messianismos políticos que querem sequestrar Jesus como bandeira ideológica. O fruto bendito do ventre de Maria é o crucificado-ressuscitado, não um Cristo triunfalista fabricado para legitimar impérios.

“Ó clemente, ó piedosa, ó doce sempre Virgem Maria”

O desfecho é ternura. Antropologicamente, o ser humano precisa de símbolos de cuidado; psicologicamente, esse suspiro final é alívio e consolo. Teologicamente, é confissão de que a misericórdia e a ternura são linguagem de Deus. A Fratelli Tutti recorda que só a compaixão constrói fraternidade (FT 66). Contra o moralismo frio e a religião sem misericórdia, a Salve Rainha proclama: Deus se revela em ternura.

Rezar a Salve Rainha hoje é ato profético. É confessar que vivemos no vale de lágrimas, mas não desistimos. É afirmar que a fé não é mercadoria nem espetáculo, mas clamor popular. É denunciar que nenhum poder terreno pode capturar Maria ou Jesus para legitimar domínios. É proclamar que a misericórdia é mais forte do que a morte e que, ao fim, veremos o rosto de Cristo, bendito fruto do ventre de Maria. É deixar que nossos olhos se tornem misericordiosos como os dela, e que nossa vida, como a sua, seja sinal de serviço, ternura e esperança no coração do mundo.

DNonato- Teólogo do Cotidiano 


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