Este texto é proclamado na liturgia da terça-feira da 22ª semana do Tempo Comum, mas também ressoa em outros momentos do ciclo litúrgico, especialmente quando se recorda o início do ministério de Jesus. Faz parte de um conjunto de textos em que a Igreja nos apresenta Cristo como Aquele que, ungido pelo Espírito em Nazaré, agora passa a realizar concretamente a libertação prometida. É como se a liturgia quisesse nos recordar, em meio à rotina dos dias, que a missão da Igreja é prolongar esta autoridade que liberta e não que aprisiona, que cura e não que controla, que gera vida e não exploração.
O contexto imediato é importante: em Nazaré, Jesus havia lido o rolo de Isaías, proclamando que fora enviado para anunciar a boa-nova aos pobres, libertar os cativos, devolver a vista aos cegos e proclamar o ano da graça do Senhor (Lc 4,18-19). Os seus conterrâneos não aceitaram sua palavra e tentaram matá-lo. Diante da rejeição, Ele segue para Cafarnaum, e ali sua palavra encontra espaço e produz libertação. A rejeição em Nazaré contrasta com a acolhida em Cafarnaum, revelando que a missão de Jesus só pode frutificar onde há abertura de coração.
Os sinóticos nos ajudam a alargar a compreensão. Marcos 1,21-28 narra a mesma cena: Jesus ensina na sinagoga, e o povo fica admirado com sua autoridade, pois até os espíritos impuros lhe obedecem. Mateus, embora não traga esse episódio, termina o Sermão da Montanha com a mesma nota: “Ele ensinava como quem tem autoridade, e não como os escribas” (Mt 7,29). Essa convergência mostra que, desde o início, os evangelistas querem sublinhar que a autoridade de Jesus não está ligada a um cargo ou a uma instituição, mas à sua própria pessoa, à sua vida coerente e à sua união com o Pai.
A questão hermenêutica fundamental é: de onde vem a autoridade de Jesus? Não era uma autoridade política, porque não ocupava cargos. Não era uma autoridade religiosa institucional, porque não fazia parte da elite sacerdotal nem do grupo dos escribas. Sua autoridade vinha do Espírito Santo, que o ungiu no batismo e o conduziu no deserto. Vinha da coerência entre a sua palavra e a sua vida. Vinha do amor que se tornava concreto em compaixão, em cuidado, em proximidade. É por isso que as pessoas simples o reconhecem, enquanto as elites o rejeitam.
O grito do espírito impuro — “Que tens a ver conosco, Jesus de Nazaré? Vieste para nos destruir?” — ecoa como resistência do mal diante da luz. Psicologicamente, podemos ver nesse grito a reação da sombra, aquilo que Jung descreve como a parte reprimida e não integrada do ser humano. Quando a luz de Cristo se aproxima, nossas sombras não suportam, e se agitam. O processo de libertação passa pela revelação daquilo que estava oculto. Não há cura sem desvelamento. Jesus obriga o mal a se mostrar, a sair das sombras, para que o homem possa ser restituído à sua verdadeira identidade.
Sociologicamente, esse “espírito impuro” pode ser lido como símbolo das ideologias e estruturas que oprimem os povos. Pode ser a idolatria do mercado que transforma a fé em mercadoria, como vemos na teologia da prosperidade que promete bênçãos em troca de dízimos, transformando Deus em um contrato comercial. Pode ser a teologia do domínio, que busca o poder político para impor a fé, negando a liberdade de consciência. Pode ser o individualismo, que fecha cada pessoa em seu próprio mundo e a impede de viver a comunhão. Pode ser também o clericalismo, esse mal dentro da própria Igreja, que transforma o ministério em privilégio, que fala em nome de Deus, mas oprime o povo com pesos que ele mesmo não carrega. Esse espírito impuro está dentro da sinagoga, no espaço religioso. E não é justamente isso que vemos hoje, quando a Igreja se deixa contaminar por ideologias de poder, quando o altar se torna palco, quando a liturgia vira espetáculo?
Do ponto de vista filosófico, é útil recordar a distinção entre potestas e auctoritas já feita no mundo romano. Potestas é o poder imposto pela força; auctoritas é o reconhecimento de uma vida que inspira confiança. Jesus não tem potestas, mas tem auctoritas. Sua palavra não precisa de coerção porque é verdade. Hannah Arendt dizia que a autoridade só existe onde há reconhecimento, e que desaparece quando precisa se impor pela violência. A autoridade de Jesus não é violenta, mas gera adesão. É a força da verdade que atrai.
A patrística ilumina ainda mais. São Cirilo de Jerusalém lembrava que os demônios reconhecem Jesus como “Santo de Deus”, mas não por amor, e sim por medo. Saber quem Ele é não basta: é preciso segui-lo. Santo Irineu dizia que “a glória de Deus é o homem vivo”, e aqui vemos a glória de Deus quando o homem liberto volta a ser ele mesmo, não mais escravo do mal. São João Crisóstomo sublinhava que a palavra de Cristo é simples, mas poderosa, porque nasce da coerência entre vida e anúncio. É um convite para a Igreja hoje: mais do que discursos pomposos, precisamos de testemunho coerente.
O Magistério da Igreja ressoa essa mensagem. A Gaudium et Spes (n. 37) recorda que “toda a história humana está impregnada por uma luta tremenda contra as potências das trevas”. A Evangelii Gaudium denuncia a tentação de transformar a missão em negócio, advertindo contra a “mundanidade espiritual” que esvazia a força do Evangelho. A Fratelli Tutti insiste que a verdade deve ser buscada sempre no amor e na fraternidade, contra toda manipulação e mentira. Quando olhamos para a cena da sinagoga de Cafarnaum, vemos que ela continua a se repetir na história: o Cristo liberta, mas os poderes resistem; o povo se admira, mas muitos preferem a escravidão.
Há também um paralelo litúrgico a destacar. Quando rezamos o Pai-Nosso e pedimos: “Não nos deixeis cair em tentação, mas livrai-nos do mal”, estamos ecoando a experiência daquele homem da sinagoga. Ele foi liberto porque o Cristo estava presente. Na liturgia, Cristo continua presente, sua palavra continua a expulsar os demônios que nos cercam. Mas é preciso abrir-se a Ele, deixar que sua autoridade toque nossa vida.
É também importante recordar os paralelos com outras expulsões de demônios. O possesso geraseno (Mc 5,1-20; Lc 8,26-39) mostra que o mal pode escravizar não apenas uma pessoa, mas toda uma comunidade, representada pela legião. A libertação gera medo, e a cidade expulsa Jesus, preferindo conviver com os porcos a acolher a liberdade. Em Mateus 12,28, Jesus diz: “Se é pelo Espírito de Deus que eu expulso os demônios, então chegou a vós o Reino de Deus”. Cada exorcismo é um sinal escatológico: o Reino está presente, e as forças do mal perdem espaço.
Hoje, esse Evangelho é uma convocação profética. Ele nos chama a não ter medo do mal, mas a cultivar o bem. A autoridade de Jesus não se compra, não se negocia, não se impõe; ela se acolhe. É preciso deixar que essa autoridade nos liberte também de nossos próprios demônios: a ganância, o ódio, a indiferença, a tentação de manipular a fé. É preciso deixar que sua palavra nos contamine de amor, para que possamos contagiar o mundo com a força do bem.
O povo exclamava: “Que palavra é esta?” Essa pergunta continua aberta. O que a palavra de Jesus é para nós? Espetáculo ou vida? Curiosidade ou seguimento? O espírito impuro grita: “Que tens a ver conosco, Jesus de Nazaré?” E nós, que resposta damos? Queremos mantê-lo à distância ou deixamos que Ele nos toque e nos liberte?
O mal pode gritar, mas não terá a última palavra. A última palavra é sempre de Deus, e essa palavra é vida, é liberdade, é amor. É a autoridade de Cristo que continua a nos libertar. Que hoje, ao ouvir este Evangelho, possamos acolher essa autoridade em nós, e viver como testemunhas de um Reino que não se compra, não se negocia e não se vende, mas que se constrói na coerência entre palavra e vida.
DNonato – Teólogo do Cotidiano
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