Jesus entra na barca de Simão e pede que ele se afaste um pouco da margem. De dentro da barca, ensina a multidão. Depois, dirige-se a Simão com uma ordem paradoxal: “Avança para águas mais profundas e lançai as vossas redes para a pesca” (Lc 5,4). Pedro reage com lógica humana: “Mestre, trabalhamos a noite inteira e nada pescamos” (Lc 5,5). Aqui está o pretexto da narrativa: a experiência do esforço inútil, da fadiga sem resultado, do cansaço que paralisa. Quantos de nós não conhecemos esse mesmo sentimento em nossas vidas pessoais, familiares, pastorais e sociais?
Mas Pedro não para no cansaço. Ele dá um salto de confiança: “Mas em atenção à tua palavra, lançarei as redes” (Lc 5,5). O milagre acontece: redes cheias a ponto de se romper, barcos quase a afundar. O fracasso se transforma em abundância. A cena não é mero relato de sucesso profissional, mas símbolo da missão cristã: quando obedecemos à Palavra, mesmo contra a lógica humana, a graça se manifesta em plenitude.
Esse relato encontra paralelos em Mateus 4,18-22 e Marcos 1,16-20, onde a narrativa é mais direta: Jesus chama os irmãos pescadores, e eles o seguem imediatamente. Em João 21,1-14, após a ressurreição, a cena se repete com a pesca milagrosa, lembrando aos discípulos que a missão só é fecunda quando obediente à voz do Ressuscitado. O Antigo Testamento também ilumina essa passagem. Elias, ao chamar Eliseu (1Rs 19,19-21), encontra um homem ocupado no trabalho que larga tudo para segui-lo. Jonas resiste ao chamado, mas depois obedece e evangeliza Nínive (Jn 1–3). Israel, ao atravessar o mar (Ex 14), aprende que só a confiança em Deus pode abrir caminhos no meio do impossível. O salmo 107 descreve os que trabalham no mar e clamam ao Senhor em meio às ondas, e Ele os salva (Sl 107,23-30).
O simbolismo das águas é central. Nas culturas semitas, o mar é lugar do caos e do perigo, mas também da vida e da purificação. Avançar para águas mais profundas é, portanto, metáfora existencial: deixar a superficialidade e enfrentar o mistério. Aqui a filosofia nos ajuda: Kierkegaard falaria do salto da fé, esse movimento que vai além da razão; Heidegger lembraria que a autenticidade exige sair da mesmice do impessoal; Hannah Arendt diria que se trata de um ato de natalidade, de um novo começo. Jesus convida Pedro e convida a nós: ousem, arrisquem, não fiquem presos ao raso, mergulhem no profundo da vida em Deus.
A psicologia nos mostra a dimensão humana desse relato. Pedro expressa a frustração de quem já tentou e falhou. Esse é um retrato das crises que vivemos: no casamento, no trabalho, na comunidade. Mas a atitude de Pedro é terapêutica: ele reconhece sua limitação e se abre à confiança. O medo que sente ao reconhecer o poder de Jesus — “Afasta-te de mim, Senhor, porque sou um pecador” (Lc 5,8) — não é rejeição, mas consciência da própria pequenez. O medo é curado pela palavra de Jesus: “Não tenhas medo. De agora em diante serás pescador de homens” (Lc 5,10). A confiança transforma o medo em missão.
Na sociologia, a escolha de pescadores é profundamente significativa. Jesus não chama os sábios da sinagoga, nem os ricos ou poderosos, mas trabalhadores anônimos, explorados por um sistema econômico que os oprimia com impostos e tributos. A missão começa na periferia, não no centro. Isso ecoa a lógica de toda a Escritura: Deus escolhe Abraão, um velho sem filhos; Moisés, um fugitivo; Davi, o menor dos irmãos; Maria, uma jovem de Nazaré. O chamado divino sempre reverte expectativas.
Do ponto de vista da teologia, o núcleo da passagem é a vida comunitária. Lucas ressalta que Pedro precisa chamar os companheiros para ajudá-lo, e todos participam da abundância. O milagre não enriquece um indivíduo, mas envolve toda a comunidade. Contra a teologia da prosperidade, que transforma a fé em busca de bênçãos pessoais, o evangelho mostra que a graça de Deus é para todos. Contra a teologia do domínio, que vê a missão como conquista e poder, o evangelho mostra que ser pescador de homens não é capturar para dominar, mas resgatar para libertar. Contra a fé como mercadoria, que vende milagres e bênçãos, o evangelho recorda que a graça é dom gratuito, acessível na obediência confiante.
Esse texto também denuncia o clericalismo. Jesus não centraliza sua missão em si nem delega apenas aos sacerdotes do templo. Ele chama trabalhadores comuns e os faz protagonistas da missão. O Concílio Vaticano II, em Lumen Gentium, recorda que todos os batizados participam do sacerdócio comum. A Evangelii Gaudium insiste que o clericalismo sufoca a iniciativa dos leigos e enfraquece a Igreja. Uma Igreja missionária precisa ser povo de Deus em comunhão, não pirâmide de poder.
Os Padres da Igreja leram essa passagem com profundidade. Santo Agostinho via a barca como imagem da Igreja que atravessa o mar da história. São João Crisóstomo sublinhava que a abundância não vinha da técnica de Pedro, mas da obediência à palavra de Cristo. Orígenes interpretava a pesca como o anúncio do Evangelho que reúne povos de todas as nações. Gregório Magno comparava a paciência do pescador à paciência necessária ao cuidado pastoral. Tertuliano dizia que os cristãos são “peixinhos” que nascem nas águas do batismo.
A ciência histórica nos ajuda a não romantizar o episódio. A Galileia era explorada economicamente pelo império romano, e os pescadores sofriam com tributos pesados. A cena mostra que Jesus não chama para uma espiritualidade alienada, mas para uma missão enraizada na realidade social. A abundância de peixes é símbolo de uma nova economia da graça, não de lucro, mas de partilha.
Esse texto, lido hoje, é convite e denúncia. Convida a sair da margem da fé superficial e a lançar-se na profundidade da Palavra. Denuncia o cristianismo reduzido a espetáculo, a consumo religioso, a mercadoria vendida em templos e redes sociais. Denuncia o clericalismo que sufoca os leigos e a teologia da prosperidade que transforma o Evangelho em barganha. Denuncia também o individualismo religioso que esquece a comunidade e só busca benefícios pessoais.
Os documentos da Igreja reforçam esse chamado. A Dei Verbum (n. 21) lembra que a Palavra é alimento da alma. A Gaudium et Spes nos recorda que as alegrias e esperanças, as tristezas e angústias dos homens são também as da Igreja. A Christus Vivit fala aos jovens: “Não tenhas medo de arriscar e lançar-se em águas profundas” (cf. n. 132-134). O Documento de Aparecida (n. 362) insiste: a Igreja deve estar em estado permanente de missão. A Fratelli Tutti sonha com uma fraternidade universal que rompe muros e constrói pontes.
O evangelho de Lucas 5,1-11 é, portanto, uma palavra profética para hoje. Somos convidados a reconhecer nossos cansaços e fracassos, mas a confiar na Palavra que nos pede o impossível. Somos chamados a obedecer mesmo contra a lógica, a avançar para águas profundas, a viver uma fé que não é mercadoria, mas graça gratuita. Somos chamados a formar comunidades missionárias, não elites religiosas. Somos chamados a transformar redes vazias em abundância compartilhada.
Assim, repetimos as palavras de Jesus a Pedro: “Não tenhas medo”. Não tenhamos medo de enfrentar nossos fracassos, de sair de nossas zonas de conforto, de arriscar no mar aberto da vida. Quem obedece à Palavra experimenta a abundância. Quem segue Jesus, mesmo na fraqueza, se torna pescador de homens e mulheres, não para aprisionar, mas para libertar. Avancemos, pois, para águas mais profundas.
DNonato – Teólogo do Cotidiano


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