quarta-feira, 3 de setembro de 2025

Um breve olhar sobre Lucas 5,1-11

O evangelho proclamado no 5º Domingo do Tempo Comum do Ano C e também na quinta-feira da 22ª semana do Tempo Comum do ano impar nos apresenta um dos relatos mais significativos da vocação dos primeiros discípulos. Às margens do lago de Genesaré, Jesus se aproxima de homens comuns, fatigados por uma noite de trabalho sem frutos, e transforma sua rotina em um sinal profético. A cena é simples e grandiosa ao mesmo tempo: barcas vazias, pescadores desanimados, uma palavra que desconcerta e uma obediência que gera abundância.

Jesus entra na barca de Simão e pede que ele se afaste um pouco da margem. De dentro da barca, ensina a multidão. Depois, dirige-se a Simão com uma ordem paradoxal: “Avança para águas mais profundas e lançai as vossas redes para a pesca” (Lc 5,4). Pedro reage com lógica humana: “Mestre, trabalhamos a noite inteira e nada pescamos” (Lc 5,5). Aqui está o pretexto da narrativa: a experiência do esforço inútil, da fadiga sem resultado, do cansaço que paralisa. Quantos de nós não conhecemos esse mesmo sentimento em nossas vidas pessoais, familiares, pastorais e sociais?


Mas Pedro não para no cansaço. Ele dá um salto de confiança: “Mas em atenção à tua palavra, lançarei as redes” (Lc 5,5). O milagre acontece: redes cheias a ponto de se romper, barcos quase a afundar. O fracasso se transforma em abundância. A cena não é mero relato de sucesso profissional, mas símbolo da missão cristã: quando obedecemos à Palavra, mesmo contra a lógica humana, a graça se manifesta em plenitude.

Esse relato encontra paralelos em Mateus 4,18-22 e Marcos 1,16-20, onde a narrativa é mais direta: Jesus chama os irmãos pescadores, e eles o seguem imediatamente. Em João 21,1-14, após a ressurreição, a cena se repete com a pesca milagrosa, lembrando aos discípulos que a missão só é fecunda quando obediente à voz do Ressuscitado. O Antigo Testamento também ilumina essa passagem. Elias, ao chamar Eliseu (1Rs 19,19-21), encontra um homem ocupado no trabalho que larga tudo para segui-lo. Jonas resiste ao chamado, mas depois obedece e evangeliza Nínive (Jn 1–3). Israel, ao atravessar o mar (Ex 14), aprende que só a confiança em Deus pode abrir caminhos no meio do impossível. O salmo 107 descreve os que trabalham no mar e clamam ao Senhor em meio às ondas, e Ele os salva (Sl 107,23-30).

O simbolismo das águas é central. Nas culturas semitas, o mar é lugar do caos e do perigo, mas também da vida e da purificação. Avançar para águas mais profundas é, portanto, metáfora existencial: deixar a superficialidade e enfrentar o mistério. Aqui a filosofia nos ajuda: Kierkegaard falaria do salto da fé, esse movimento que vai além da razão; Heidegger lembraria que a autenticidade exige sair da mesmice do impessoal; Hannah Arendt diria que se trata de um ato de natalidade, de um novo começo. Jesus convida Pedro e convida a nós: ousem, arrisquem, não fiquem presos ao raso, mergulhem no profundo da vida em Deus.

A psicologia nos mostra a dimensão humana desse relato. Pedro expressa a frustração de quem já tentou e falhou. Esse é um retrato das crises que vivemos: no casamento, no trabalho, na comunidade. Mas a atitude de Pedro é terapêutica: ele reconhece sua limitação e se abre à confiança. O medo que sente ao reconhecer o poder de Jesus — “Afasta-te de mim, Senhor, porque sou um pecador” (Lc 5,8) — não é rejeição, mas consciência da própria pequenez. O medo é curado pela palavra de Jesus: “Não tenhas medo. De agora em diante serás pescador de homens” (Lc 5,10). A confiança transforma o medo em missão.

Na sociologia, a escolha de pescadores é profundamente significativa. Jesus não chama os sábios da sinagoga, nem os ricos ou poderosos, mas trabalhadores anônimos, explorados por um sistema econômico que os oprimia com impostos e tributos. A missão começa na periferia, não no centro. Isso ecoa a lógica de toda a Escritura: Deus escolhe Abraão, um velho sem filhos; Moisés, um fugitivo; Davi, o menor dos irmãos; Maria, uma jovem de Nazaré. O chamado divino sempre reverte expectativas.

Do ponto de vista da teologia, o núcleo da passagem é a vida comunitária. Lucas ressalta que Pedro precisa chamar os companheiros para ajudá-lo, e todos participam da abundância. O milagre não enriquece um indivíduo, mas envolve toda a comunidade. Contra a teologia da prosperidade, que transforma a fé em busca de bênçãos pessoais, o evangelho mostra que a graça de Deus é para todos. Contra a teologia do domínio, que vê a missão como conquista e poder, o evangelho mostra que ser pescador de homens não é capturar para dominar, mas resgatar para libertar. Contra a fé como mercadoria, que vende milagres e bênçãos, o evangelho recorda que a graça é dom gratuito, acessível na obediência confiante.

Esse texto também denuncia o clericalismo. Jesus não centraliza sua missão em si nem delega apenas aos sacerdotes do templo. Ele chama trabalhadores comuns e os faz protagonistas da missão. O Concílio Vaticano II, em Lumen Gentium, recorda que todos os batizados participam do sacerdócio comum. A Evangelii Gaudium insiste que o clericalismo sufoca a iniciativa dos leigos e enfraquece a Igreja. Uma Igreja missionária precisa ser povo de Deus em comunhão, não pirâmide de poder.

Os Padres da Igreja leram essa passagem com profundidade. Santo Agostinho via a barca como imagem da Igreja que atravessa o mar da história. São João Crisóstomo sublinhava que a abundância não vinha da técnica de Pedro, mas da obediência à palavra de Cristo. Orígenes interpretava a pesca como o anúncio do Evangelho que reúne povos de todas as nações. Gregório Magno comparava a paciência do pescador à paciência necessária ao cuidado pastoral. Tertuliano dizia que os cristãos são “peixinhos” que nascem nas águas do batismo.

A ciência histórica nos ajuda a não romantizar o episódio. A Galileia era explorada economicamente pelo império romano, e os pescadores sofriam com tributos pesados. A cena mostra que Jesus não chama para uma espiritualidade alienada, mas para uma missão enraizada na realidade social. A abundância de peixes é símbolo de uma nova economia da graça, não de lucro, mas de partilha.

Esse texto, lido hoje, é convite e denúncia. Convida a sair da margem da fé superficial e a lançar-se na profundidade da Palavra. Denuncia o cristianismo reduzido a espetáculo, a consumo religioso, a mercadoria vendida em templos e redes sociais. Denuncia o clericalismo que sufoca os leigos e a teologia da prosperidade que transforma o Evangelho em barganha. Denuncia também o individualismo religioso que esquece a comunidade e só busca benefícios pessoais.

Os documentos da Igreja reforçam esse chamado. A Dei Verbum (n. 21) lembra que a Palavra é alimento da alma. A Gaudium et Spes nos recorda que as alegrias e esperanças, as tristezas e angústias dos homens são também as da Igreja. A Christus Vivit fala aos jovens: “Não tenhas medo de arriscar e lançar-se em águas profundas” (cf. n. 132-134). O Documento de Aparecida (n. 362) insiste: a Igreja deve estar em estado permanente de missão. A Fratelli Tutti sonha com uma fraternidade universal que rompe muros e constrói pontes.

O evangelho de Lucas 5,1-11 é, portanto, uma palavra profética para hoje. Somos convidados a reconhecer nossos cansaços e fracassos, mas a confiar na Palavra que nos pede o impossível. Somos chamados a obedecer mesmo contra a lógica, a avançar para águas profundas, a viver uma fé que não é mercadoria, mas graça gratuita. Somos chamados a formar comunidades missionárias, não elites religiosas. Somos chamados a transformar redes vazias em abundância compartilhada.

Assim, repetimos as palavras de Jesus a Pedro: “Não tenhas medo”. Não tenhamos medo de enfrentar nossos fracassos, de sair de nossas zonas de conforto, de arriscar no mar aberto da vida. Quem obedece à Palavra experimenta a abundância. Quem segue Jesus, mesmo na fraqueza, se torna pescador de homens e mulheres, não para aprisionar, mas para libertar. Avancemos, pois, para águas mais profundas.



DNonato – Teólogo do Cotidiano


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