Os fariseus e mestres da Lei tinham feito do jejum e das práticas ascéticas um critério de identidade e status. O problema não era o jejum em si, já recomendado pelos profetas como Isaías (cf. Is 58,6-7), mas a forma como ele era usado: como espetáculo de piedade, instrumento de exclusão e medida de superioridade espiritual. Jesus responde com uma imagem desconcertante: “Podem fazer jejuar os convidados do casamento enquanto o esposo está com eles? Dias virão em que o esposo lhes será tirado; então jejuarão”. A festa nupcial era, no imaginário bíblico, o símbolo da aliança de Deus com seu povo (cf. Os 2,16-22; Is 62,4-5). Jesus se apresenta como o Esposo: sua presença inaugura a festa do Reino. Jejuar na festa seria negar a alegria de um Deus que visita o seu povo.
Aqui já se percebe a ruptura entre duas concepções religiosas: de um lado, a religião do controle, do luto perpétuo, da disciplina rígida que sufoca; do outro, a religião da vida, da celebração, da comunhão que transborda. O filósofo Nietzsche criticava o cristianismo dizendo que os cristãos “não tinham cara de ressuscitados”. É essa caricatura de fé sisuda, triste e sem alegria que Jesus desmonta. Ele não rejeita o jejum, mas o coloca em seu devido lugar: como expressão de busca, e não como moeda de prestígio. O verdadeiro jejum é o que rompe correntes de injustiça, liberta os oprimidos, reparte o pão com os famintos (cf. Is 58,6-7).
A parábola do remendo e dos odres prolonga essa crítica. Remendo novo em pano velho rasga ainda mais; vinho novo em odre velho se perde. A novidade do Evangelho não cabe em estruturas endurecidas, sejam elas rituais, sociais ou mentais. Paulo dirá em 2Coríntios 3,6 que “a letra mata, mas o Espírito vivifica”. E em Jeremias 31,31-34 Deus já havia prometido uma nova aliança, não escrita em pedra, mas gravada no coração. O vinho novo é essa vida no Espírito, anunciada também por Joel 2,28, quando Deus derramaria seu Espírito sobre toda carne, jovens e velhos, homens e mulheres, escravos e livres.
A patrística entendeu isso com força. São João Crisóstomo ensinava que “o jejum verdadeiro é afastar-se do mal, refrear a língua, dominar a cólera, afastar a concupiscência, caluniar menos, jurar menos, mentir menos” (Homiliae in Matthaeum). Orígenes via no vinho novo o próprio Cristo, que não se deixa aprisionar em categorias velhas. Santo Agostinho afirmava: “Amemos, e façamos o que quisermos”, porque o amor é o único odre capaz de conter a plenitude do Evangelho. Basílio Magno alertava que quem jejuava apenas da comida, mas devorava o próximo com fofocas e injustiças, não entendia nada do espírito de Cristo.
O ser humano precisa de ritos, mas também precisa de sentido. Quando o rito se transforma em peso sem alma, torna-se alienação. A psicologia mostra que práticas religiosas podem tanto libertar quanto adoecer, dependendo se estão a serviço da vida ou da repressão. A sociologia confirma: quando a religião se torna instrumento de poder e de distinção social, ela gera exclusão e desigualdade. Historicamente, sabemos que o judaísmo do tempo de Jesus estava dividido entre grupos que disputavam quem interpretava melhor a Lei. Nesse ambiente, a proposta de Jesus soa radical: não se trata de competir na rigidez, mas de anunciar um Deus que é festa, presença, amor que transborda.
Esse texto nos coloca diante de uma crítica urgente às teologias distorcidas de hoje. A teologia da prosperidade transforma o Evangelho em barganha e faz do jejum um investimento para obter bens materiais. A teologia do domínio, muito comum nos discursos da extrema-direita religiosa, usa a fé como arma de poder político, exigindo sacrifícios que alimentam o ego dos líderes, mas não libertam o povo. O individualismo religioso reduz tudo à busca de uma espiritualidade de bem-estar, transformando a fé em mercadoria. E o clericalismo, como denuncia o Papa Francisco, é “uma perversão” que aprisiona a novidade do Espírito em odres velhos de poder e privilégio. Nesse contexto, o Evangelho de hoje é uma pancada profética: o vinho novo de Cristo não cabe nesses odres corrompidos.
A Gaudium et Spes (n. 63-66) denuncia a mercantilização da vida, mostrando que o ser humano vale mais pela dignidade do que pelo consumo. A Evangelii Gaudium insiste que a Igreja não pode ser alfândega que controla, mas casa aberta que acolhe. A Fratelli Tutti recorda que a verdadeira religião gera fraternidade, não muros de exclusão. Tudo isso ecoa o mesmo chamado: odres novos para o vinho novo.
Mas quem são os odres novos hoje?
Não são as estruturas rígidas, nem os palácios dourados do clero, nem os pregadores digitais que vendem bênçãos online. Os odres novos são o povo pobre, que com sua fé simples acolhe a novidade do Evangelho. É a mãe que reparte o pouco alimento, o jovem que resiste à lógica da violência, o trabalhador que não perde a esperança. É entre os pobres que o vinho novo do Reino encontra espaço para transbordar.
Amós já havia denunciado os que “vendem o justo por prata e o pobre por um par de sandálias” (Am 8,6). Jesus, ao purificar o Templo, denuncia a religião como mercado (Jo 2,13-17). Hoje, vemos a mesma cena se repetir quando igrejas se transformam em empresas e padres ou pastores em gestores de marketing religioso. O vinho novo de Cristo não cabe nesse sistema. Ele rompe, derrama, transborda para as ruas, para as casas, para a vida.
Não nos enganemos: é mais fácil continuar remendando pano velho do que deixar-se renovar. A mudança dói, porque exige conversão. Mas o Espírito sopra. Como dizia Santo Irineu, “a glória de Deus é o ser humano vivo”. Um ser humano vivo não cabe em esquemas de morte.
O final do Evangelho é provocador: “Ninguém que bebeu o vinho velho quer o novo, pois diz: o velho é melhor”. Jesus conhece nossa resistência. Preferimos a segurança do velho, mesmo que morto, à ousadia do novo que exige risco. Mas o Reino não espera. O vinho novo já foi derramado. Como em Caná da Galileia (Jo 2,1-11), ele é melhor, mais abundante, mais surpreendente. Ele é sinal de que Deus não nos dá migalhas, mas transborda em graça.
Eis o chamado deste Evangelho: deixar-se transformar em odres novos, capazes de acolher o vinho da alegria, da justiça e do amor. Que nossa vida não seja remendo em pano velho, mas veste nova do Espírito. Que nosso jejum não seja espetáculo, mas reconciliação. Que nossa religião não seja mercado, mas festa do Esposo. Que não devoremos nossos irmãos com a boca, enquanto nos vangloriamos de abstinências exteriores. Que sejamos Igreja em saída, odres novos, pobres com os pobres, para que o vinho novo do Reino transborde sobre toda a terra.


Nenhum comentário:
Postar um comentário
Obrigado pelo seu comentário.