sexta-feira, 5 de setembro de 2025

Um breve olhar sobre São Lucas 6,1-5

O texto do sábado da 22ª semana do Tempo Comum  nos coloca diante de uma cena aparentemente simples, mas profundamente reveladora do coração da fé. Jesus passa por plantações em dia de sábado, e seus discípulos colhem espigas para comer, sendo criticados pelos fariseus que os observam com olhar rígido, buscando neles a falha. A resposta de Jesus remete a Davi e seus companheiros que comeram os pães da proposição, destinados apenas aos sacerdotes, mostrando que a lei, quando se torna instrumento de exclusão, perde o seu sentido mais profundo. Este episódio, situado no capítulo 6 do Evangelho segundo São Lucas, é proclamado também em paralelo com os relatos de Mateus 12,1-8 e Marcos 2,23-28, e aparece ainda em outro contexto litúrgicos, quando se celebra a centralidade da misericórdia sobre os sacrifícios, ecoando a profecia de Oséias 6,6: “Quero amor, e não sacrifício, conhecimento de Deus, mais que holocaustos.”

Se olharmos bem, Lucas, com seu estilo peculiar, não apenas narra um incidente. Ele introduz um conflito fundamental entre uma leitura legalista da fé e uma abertura para a plenitude da vida que Jesus inaugura. Aqui se encontra o “contexto e o pretexto” da cena. O contexto imediato é o sábado, o dia de descanso, que no judaísmo é sinal da Aliança, recordação da libertação do Egito (cf. Dt 5,15) e do repouso de Deus após a criação (cf. Gn 2,2-3). O pretexto é a denúncia feita contra os discípulos: ao colher espigas e debulhá-las com as mãos, eles estariam violando a lei. Mas o verdadeiro sentido em jogo não é a colheita em si, e sim a visão de Deus que se transmite. Jesus responde com sabedoria profética: não é o sábado que rege o homem, mas o homem que dá sentido ao sábado, porque “o Filho do Homem é senhor também do sábado” (Lc 6,5).

Exegese e hermenêutica caminham juntas aqui. O gesto dos discípulos é um gesto de fome, de necessidade, e a fome não espera o relógio da lei. O sábado, em sua intenção original, era dom de libertação, descanso, justiça social, proteção dos pobres e dos trabalhadores, até mesmo dos animais (cf. Ex 20,8-11). Mas no curso da história, foi sendo recoberto por camadas de interpretações rígidas, transformando-se em peso. Jesus denuncia essa distorção: o que deveria ser sinal de vida e liberdade se tornou instrumento de controle e opressão. O paralelo com Marcos 2,27 é ainda mais explícito: “O sábado foi feito para o homem, e não o homem para o sábado.” Essa afirmação é revolucionária, porque coloca a dignidade humana acima de qualquer ritualismo que negue a vida. Jeremias já havia advertido contra a falsa compreensão do sábado, recordando que ele não deve ser mero fardo (cf. Jr 17,21-22), e Miqueias 6,8 proclamava: “O que o Senhor te pede é apenas praticar a justiça, amar a misericórdia e caminhar humildemente com o teu Deus.”

Há aqui uma lição antropológica profunda. O ser humano é mais do que suas práticas exteriores. Somos seres de desejo, de fome, de carência, e também de transcendência. O sábado deveria nutrir esse duplo aspecto — o descanso do corpo e a abertura do espírito — e não reprimir a vida. Mas quantas vezes, ao longo da história, vemos a religião transformada em instrumento de poder? Santo Irineu já advertia no século II: “A glória de Deus é o ser humano vivo, e a vida do ser humano é a visão de Deus” (Adversus Haereses, IV,20,7). Quando se usa o nome de Deus para esmagar vidas, trai-se a própria revelação.

Esse evangelho também nos provoca, o olhar dos fariseus sobre os discípulos é o olhar que julga a partir da aparência, fixo na norma, incapaz de ver a necessidade, a fome, a fragilidade. É o olhar que se alimenta da acusação, do policiamento dos gestos alheios, que Freud chamaria de expressão do superego tirânico, e que a sociologia de Michel Foucault analisaria como dispositivo de controle. É o olhar do poder que vigia, e que se sente seguro não na liberdade do outro, mas na sua submissão. Jesus, ao contrário, educa um olhar diferente: não o olhar que condena, mas o olhar que discerne, que enxerga as motivações, que acolhe a necessidade humana.

Podemos perceber que aqui está em jogo a relação entre lei e vida. Kant falaria do imperativo categórico, mas Jesus vai além: não basta a universalidade da norma; é preciso que a norma esteja a serviço da vida. Hegel diria que o espírito supera a letra, e que a liberdade é a verdade da lei. São Tomás de Aquino já havia afirmado que a lei humana e a lei religiosa devem ser ordenadas ao bem comum, e que quando uma lei não conduz à justiça, perde seu caráter de lei. O que Jesus realiza é o cumprimento dessa intuição filosófica e teológica: a lei do sábado deve ser interpretada a partir da vida, e não o contrário.

 Se fwz necessário  lembrar que o sábado, em tempos de opressão estrangeira, era sinal de resistência identitária do povo judeu. Guardar o sábado significava afirmar: “Nós somos o povo da Aliança, e não servos de César.” Mas com o tempo, essa resistência se cristalizou em rigidez. Jesus não abole o sábado, mas o reconduz à sua raiz libertadora. Isso nos ajuda a compreender que toda instituição corre o risco de se corromper quando perde de vista sua razão de ser. A mesma dinâmica acontece na Igreja: quando o culto se torna espetáculo, quando a liturgia vira performance estética desvinculada da vida, quando a fé é reduzida a mercadoria de consumo, perdemos o sentido original do Evangelho. 

É nesse ponto que a crítica às falsas teologias se faz necessária. A teologia da prosperidade promete bênçãos materiais em troca de sacrifícios financeiros, transformando Deus em banqueiro e a fé em contrato de mercado. A teologia do domínio prega que os cristãos devem conquistar as estruturas de poder para impor sua moral ao mundo, reduzindo o Evangelho a ideologia política. A fé individualista, por sua vez, transforma a relação com Deus em experiência solitária, descompromissada com o próximo e com a justiça. E a fé-mercadoria é aquela que transforma ritos, objetos e experiências religiosas em produtos a serem vendidos, numa lógica de marketing espiritual. Todas essas distorções se assemelham aos fariseus que vigiam os discípulos: preocupam-se com a forma, mas não com a vida.

O clericalismo é outro fruto amargo dessa mesma árvore. Quando o sacerdote se coloca acima do povo, como se fosse dono do sagrado, transforma-se em guardião da lei opressora, e não em ministro da graça. O Papa Francisco, em diversas ocasiões, chamou o clericalismo de “a peste da Igreja”. O Concílio Vaticano II, na Gaudium et Spes (n. 63-66), recorda que a missão da Igreja é ler os sinais dos tempos à luz do Evangelho, e não se fechar em legalismos. Na Evangelii Gaudium (n. 49), Francisco insiste que “prefiro uma Igreja acidentada, ferida e enlameada por ter saído pelas estradas, a uma Igreja enferma pelo fechamento e a comodidade de se agarrar às próprias seguranças.” O Evangelho de hoje ilustra essa opção: Jesus prefere discípulos famintos colhendo espigas a discípulos paralisados pelo medo da lei.

Santo Agostinho, comentando os Salmos, dizia que a lei sem o Espírito mata, mas o Espírito vivifica. Orígenes lembrava que o sábado é figura do repouso em Deus, mas que esse repouso só existe quando o coração está em paz com o próximo. Crisóstomo denunciava os cristãos que, em nome da religião, desprezavam os pobres, chamando-os de “piores que os fariseus”. Ambrósio de Milão afirmava: “Não é o alimento reservado que agrada a Deus, mas o pão repartido.” Basílio de Cesareia pregava que “o pão que tu guardas pertence ao faminto, o manto que escondes no armário pertence ao nu.” A tradição da Igreja nunca foi unânime em torno de rigidez legal, mas sempre buscou interpretar a lei à luz da caridade.

Quando Jesus afirma que o Filho do Homem é senhor do sábado, ele está proclamando que a vida humana, iluminada pelo Espírito, é mais importante que qualquer código fechado. Isso é escandaloso para os legalistas, mas libertador para os que têm fome. E não é apenas fome de pão, mas fome de justiça, fome de dignidade, fome de reconhecimento. O profeta Isaías já havia denunciado um jejum hipócrita, em que se afligia o corpo mas se explorava o trabalhador (cf. Is 58,3-6). Amós criticava os comerciantes que mal esperavam o sábado passar para explorar os pobres (cf. Am 8,4-6). Jesus, ao interpretar o sábado, realiza a mesma denúncia: o descanso verdadeiro é aquele que liberta, não aquele que oprime.

Hoje, quantas vezes não repetimos os erros dos fariseus? 

Quando julgamos a vida alheia a partir das aparências, quando reduzimos a religião a um conjunto de regras externas, quando transformamos Deus em opressor, esquecemos que Ele é Pai amoroso. A psicologia nos lembra que esse tipo de religião gera ansiedade, culpa tóxica, neurose, medo. A sociologia mostra que sistemas religiosos de controle alimentam desigualdades e mantêm privilégios. A antropologia revela que toda sociedade cria ritos, mas quando os ritos se absolutizam, perdem seu poder de gerar vida e se tornam instrumentos de dominação. O Evangelho, porém, insiste: o sábado existe para que todos, inclusive os pobres e marginalizados, possam descansar e viver.

Assim, o texto deste sábado da 22ª semana do Tempo Comum nos recorda que a lei só tem sentido quando promove a vida. Jesus não é contra o sábado; ele é contra o uso do sábado como arma contra os famintos. Ele nos convida a olhar para além da letra, a discernir as motivações, a priorizar o amor. Essa é a Boa Nova: Deus não é um ditador em busca de súditos subservientes, mas Pai amoroso que quer filhos livres e vivos. Seguir Jesus é aprender a ser senhor do sábado, a colocar a vida no centro, a não temer os olhares acusadores, mas a responder com liberdade e misericórdia.



DNonato – Teólogo do Cotidiano


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