Se olharmos bem, Lucas, com seu estilo peculiar, não apenas narra um incidente. Ele introduz um conflito fundamental entre uma leitura legalista da fé e uma abertura para a plenitude da vida que Jesus inaugura. Aqui se encontra o “contexto e o pretexto” da cena. O contexto imediato é o sábado, o dia de descanso, que no judaísmo é sinal da Aliança, recordação da libertação do Egito (cf. Dt 5,15) e do repouso de Deus após a criação (cf. Gn 2,2-3). O pretexto é a denúncia feita contra os discípulos: ao colher espigas e debulhá-las com as mãos, eles estariam violando a lei. Mas o verdadeiro sentido em jogo não é a colheita em si, e sim a visão de Deus que se transmite. Jesus responde com sabedoria profética: não é o sábado que rege o homem, mas o homem que dá sentido ao sábado, porque “o Filho do Homem é senhor também do sábado” (Lc 6,5).
Exegese e hermenêutica caminham juntas aqui. O gesto dos discípulos é um gesto de fome, de necessidade, e a fome não espera o relógio da lei. O sábado, em sua intenção original, era dom de libertação, descanso, justiça social, proteção dos pobres e dos trabalhadores, até mesmo dos animais (cf. Ex 20,8-11). Mas no curso da história, foi sendo recoberto por camadas de interpretações rígidas, transformando-se em peso. Jesus denuncia essa distorção: o que deveria ser sinal de vida e liberdade se tornou instrumento de controle e opressão. O paralelo com Marcos 2,27 é ainda mais explícito: “O sábado foi feito para o homem, e não o homem para o sábado.” Essa afirmação é revolucionária, porque coloca a dignidade humana acima de qualquer ritualismo que negue a vida. Jeremias já havia advertido contra a falsa compreensão do sábado, recordando que ele não deve ser mero fardo (cf. Jr 17,21-22), e Miqueias 6,8 proclamava: “O que o Senhor te pede é apenas praticar a justiça, amar a misericórdia e caminhar humildemente com o teu Deus.”
Há aqui uma lição antropológica profunda. O ser humano é mais do que suas práticas exteriores. Somos seres de desejo, de fome, de carência, e também de transcendência. O sábado deveria nutrir esse duplo aspecto — o descanso do corpo e a abertura do espírito — e não reprimir a vida. Mas quantas vezes, ao longo da história, vemos a religião transformada em instrumento de poder? Santo Irineu já advertia no século II: “A glória de Deus é o ser humano vivo, e a vida do ser humano é a visão de Deus” (Adversus Haereses, IV,20,7). Quando se usa o nome de Deus para esmagar vidas, trai-se a própria revelação.
Esse evangelho também nos provoca, o olhar dos fariseus sobre os discípulos é o olhar que julga a partir da aparência, fixo na norma, incapaz de ver a necessidade, a fome, a fragilidade. É o olhar que se alimenta da acusação, do policiamento dos gestos alheios, que Freud chamaria de expressão do superego tirânico, e que a sociologia de Michel Foucault analisaria como dispositivo de controle. É o olhar do poder que vigia, e que se sente seguro não na liberdade do outro, mas na sua submissão. Jesus, ao contrário, educa um olhar diferente: não o olhar que condena, mas o olhar que discerne, que enxerga as motivações, que acolhe a necessidade humana.
Podemos perceber que aqui está em jogo a relação entre lei e vida. Kant falaria do imperativo categórico, mas Jesus vai além: não basta a universalidade da norma; é preciso que a norma esteja a serviço da vida. Hegel diria que o espírito supera a letra, e que a liberdade é a verdade da lei. São Tomás de Aquino já havia afirmado que a lei humana e a lei religiosa devem ser ordenadas ao bem comum, e que quando uma lei não conduz à justiça, perde seu caráter de lei. O que Jesus realiza é o cumprimento dessa intuição filosófica e teológica: a lei do sábado deve ser interpretada a partir da vida, e não o contrário.
Se fwz necessário lembrar que o sábado, em tempos de opressão estrangeira, era sinal de resistência identitária do povo judeu. Guardar o sábado significava afirmar: “Nós somos o povo da Aliança, e não servos de César.” Mas com o tempo, essa resistência se cristalizou em rigidez. Jesus não abole o sábado, mas o reconduz à sua raiz libertadora. Isso nos ajuda a compreender que toda instituição corre o risco de se corromper quando perde de vista sua razão de ser. A mesma dinâmica acontece na Igreja: quando o culto se torna espetáculo, quando a liturgia vira performance estética desvinculada da vida, quando a fé é reduzida a mercadoria de consumo, perdemos o sentido original do Evangelho.
É nesse ponto que a crítica às falsas teologias se faz necessária. A teologia da prosperidade promete bênçãos materiais em troca de sacrifícios financeiros, transformando Deus em banqueiro e a fé em contrato de mercado. A teologia do domínio prega que os cristãos devem conquistar as estruturas de poder para impor sua moral ao mundo, reduzindo o Evangelho a ideologia política. A fé individualista, por sua vez, transforma a relação com Deus em experiência solitária, descompromissada com o próximo e com a justiça. E a fé-mercadoria é aquela que transforma ritos, objetos e experiências religiosas em produtos a serem vendidos, numa lógica de marketing espiritual. Todas essas distorções se assemelham aos fariseus que vigiam os discípulos: preocupam-se com a forma, mas não com a vida.
O clericalismo é outro fruto amargo dessa mesma árvore. Quando o sacerdote se coloca acima do povo, como se fosse dono do sagrado, transforma-se em guardião da lei opressora, e não em ministro da graça. O Papa Francisco, em diversas ocasiões, chamou o clericalismo de “a peste da Igreja”. O Concílio Vaticano II, na Gaudium et Spes (n. 63-66), recorda que a missão da Igreja é ler os sinais dos tempos à luz do Evangelho, e não se fechar em legalismos. Na Evangelii Gaudium (n. 49), Francisco insiste que “prefiro uma Igreja acidentada, ferida e enlameada por ter saído pelas estradas, a uma Igreja enferma pelo fechamento e a comodidade de se agarrar às próprias seguranças.” O Evangelho de hoje ilustra essa opção: Jesus prefere discípulos famintos colhendo espigas a discípulos paralisados pelo medo da lei.
Santo Agostinho, comentando os Salmos, dizia que a lei sem o Espírito mata, mas o Espírito vivifica. Orígenes lembrava que o sábado é figura do repouso em Deus, mas que esse repouso só existe quando o coração está em paz com o próximo. Crisóstomo denunciava os cristãos que, em nome da religião, desprezavam os pobres, chamando-os de “piores que os fariseus”. Ambrósio de Milão afirmava: “Não é o alimento reservado que agrada a Deus, mas o pão repartido.” Basílio de Cesareia pregava que “o pão que tu guardas pertence ao faminto, o manto que escondes no armário pertence ao nu.” A tradição da Igreja nunca foi unânime em torno de rigidez legal, mas sempre buscou interpretar a lei à luz da caridade.
Quando Jesus afirma que o Filho do Homem é senhor do sábado, ele está proclamando que a vida humana, iluminada pelo Espírito, é mais importante que qualquer código fechado. Isso é escandaloso para os legalistas, mas libertador para os que têm fome. E não é apenas fome de pão, mas fome de justiça, fome de dignidade, fome de reconhecimento. O profeta Isaías já havia denunciado um jejum hipócrita, em que se afligia o corpo mas se explorava o trabalhador (cf. Is 58,3-6). Amós criticava os comerciantes que mal esperavam o sábado passar para explorar os pobres (cf. Am 8,4-6). Jesus, ao interpretar o sábado, realiza a mesma denúncia: o descanso verdadeiro é aquele que liberta, não aquele que oprime.
Hoje, quantas vezes não repetimos os erros dos fariseus?
Quando julgamos a vida alheia a partir das aparências, quando reduzimos a religião a um conjunto de regras externas, quando transformamos Deus em opressor, esquecemos que Ele é Pai amoroso. A psicologia nos lembra que esse tipo de religião gera ansiedade, culpa tóxica, neurose, medo. A sociologia mostra que sistemas religiosos de controle alimentam desigualdades e mantêm privilégios. A antropologia revela que toda sociedade cria ritos, mas quando os ritos se absolutizam, perdem seu poder de gerar vida e se tornam instrumentos de dominação. O Evangelho, porém, insiste: o sábado existe para que todos, inclusive os pobres e marginalizados, possam descansar e viver.
Assim, o texto deste sábado da 22ª semana do Tempo Comum nos recorda que a lei só tem sentido quando promove a vida. Jesus não é contra o sábado; ele é contra o uso do sábado como arma contra os famintos. Ele nos convida a olhar para além da letra, a discernir as motivações, a priorizar o amor. Essa é a Boa Nova: Deus não é um ditador em busca de súditos subservientes, mas Pai amoroso que quer filhos livres e vivos. Seguir Jesus é aprender a ser senhor do sábado, a colocar a vida no centro, a não temer os olhares acusadores, mas a responder com liberdade e misericórdia.
DNonato – Teólogo do Cotidiano
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